1 INTRODUÇÃO
A apresentação do preso em flagrante diretamente ao juiz, acompanhado do advogado (particular ou defensor público) e promotor de justiça, constitui grande avanço na efetivação dos direitos fundamentais, tendo em vista a consagração de importantes princípios constitucionais que norteiam todo ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo do devido processo legal, a não culpabilidade, o juízo natural, a imparcialidade do julgador, a liberdade, dentre inúmeros outros.
O Brasil, embora signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica ou CADH), o qual, inclusive, fora devidamente incorporado no Ordenamento Jurídico através da ratificação pelo Congresso Nacional no ano de 1992, conforme o Decreto-Lei 678/1992, as disposições contidas na Convenção eram desconhecidas e pouco eficazes, especialmente pela ausência de publicidade e interesse dos Tribunais Pátrios e da sociedade em dar aplicabilidade no sistema judiciário, sobretudo a previsão do Tratado Internacional com relação à obrigatoriedade de realização da audiência de custódia.
O interesse sobre o tema, entretanto, ganhou destaque no cenário nacional com o debate pelo Supremo Tribunal Federal de medidas que possibilitassem sanear o sistema carcerário brasileiro e diminuir a população de presos provisórios quando do julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 347 pelo Supremo Tribunal Federal, em medida cautelar, que reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro e garantiu a toda pessoa detida ou retida o direito de ser conduzido à presença de um Juiz, baseando, a Suprema Corte, no que dispõe o art. 7º, item 5º, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica ou CADH), promulgada por meio do Decreto-Lei 678, de 06.11.1992 e que adquiriu o status supralegal.
A audiência de custódia implementada por ativismo judicial perscrutado pelo Supremo Tribunal Federal tornou-se realidade na política criminal e processual brasileira com a finalidade precípua de sanear o sistema carcerário e diminuir a população de provisórios que cresce a níveis alarmantes, despontando o Brasil nas primeiras colocações do ranking das maiores populações carcerário do mundo e com prejuízos evidentes a dignidade da pessoa humana.
Com o presente trabalho, buscou-se analisar os aspectos e perspectivas da implantação da audiência de custódia como uma nova ferramenta jurídica que beneficiará tanto o indivíduo quando o Estado, compreendida entre a proteção dos direitos fundamentais dos custodiados e o desafogamento do sistema penitenciário com a diminuição da população de presos provisórios, especialmente sob as perspectivas dos dados iniciais colhidos no Estado de São Paulo pelo Conselho Nacional de Justiça e o próprio Tribunal de Justiça do Estado, de forma a comparar a perspectiva de mudança com a apresentação do preso à presença física do juiz como forma de diminuir a população de presos provisórios e garantir o respeito aos direitos humanos.
Dessa forma, por meio da revisão da literatura existente e disponível, pretendeu-se explorar os estudos acerca do Direito Processual Penal e Direito Constitucional no direito brasileiro, especialmente mediante consulta de livros, dissertações e monografias publicadas por autores brasileiros e estrangeiros, pesquisas jurisprudenciais das Cortes Estrangeiras, nacionais e internacionais e dados estatísticos colhidos no Estado de São Paulo pelo CNJ e o TJ/SP.
Iniciou-se, no primeiro capítulo, comentando sobre a audiência de custódia, identificando a sua origem, suas principais características, quem deve ser apresentado e, ainda, avaliando a finalidade da apresentação do preso imediatamente ao juiz como forma de garantir o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Em seguida, no segundo capítulo, com o objetivo de contextualizar o leitor sobre o tema, demonstraram-se os problemas enfrentados pelo sistema carcerário brasileiro, principalmente em relação à superlotação enfrentada por culpa da numerosa população de presos provisórios, ao tempo que se examina se a audiência de custódia é capaz de promover o desafogamento do sistema penitenciário com a diminuição da população de presos provisórios através da análise dos dados estatísticos e comparativos do Estado de São Paulo.
Com atenção especial para a aplicabilidade dos direitos humanos na política criminal e a proteção do custodiado como elemento intransponível da legitimidade da persecução penal no Estado Democrático de Direito foram dadas as conclusões do trabalho e do estudo realizado no sentido de que a apresentação do preso provisório a presença física do juiz embora atue na diminuição de presos provisórios, ao menos, no primeiro momento de sua implantação, se mostra apenas mais uma política pública ineficaz caso não haja mudança na cultura do encarceramento.
2 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: ORIGEM, CARACTERÍSTICAS E FINALIDADE
Ferrajoli (2010, p. 483) defende que o processo, antes de tudo e num Estado Democrático de Direito, existe por causa do réu e se justifica como forma de frear as arbitrariedades e tutelar o direito dos inocentes. Portanto, não existe para condenar, pelo contrário, existe para garantir que, se punição houver, será precedida das garantias constitucionais na sua mais ampla cognição.
Paradoxalmente, o processo penal brasileiro prevê que o preso em flagrante é conduzido à autoridade policial onde é formalizado o auto de prisão em flagrante e posteriormente encaminhado ao juiz, que decidirá, nos termos do art. 310 do Código de Processo Penal, se homologa ou relaxa a prisão em flagrante (em caso de ilegalidade) e a continuação, decidirá sobre o pedido de prisão preventiva ou medida cautelar diversa (CPP, art. 319).
Acontece que, tudo isso ocorre de forma burocrática e sem a presença do detido, ou seja, o juiz não tem contato com o cidadão preso e, se decretar a prisão preventiva, somente irá ouvi-lo no interrogatório muito tempo depois, depois de concluído toda a fase investigativa e instrutória da ação penal, pois o interrogatório (oportunidade em que se procede com a oitiva do acusado) é o último ato do procedimento da instrução, com inegável vantagem para o direito de defesa, mas com imenso sacrifício da liberdade.
Nessa ordem, o processo não pode ser tratado como somente um registro procedimental de condenação, apenas mais um dado para alimentar as estatísticas, mas, sim, como verdadeira forma de autorizar o cumprimento do dever estatal de punir aqueles que praticam infrações contra a lei e a legitimar à renúncia dos cidadãos de sua liberdade natural. Sem a humanização do processo, com a observância de todas as garantias e direitos fundamentais do homem, especialmente o contraditório, ampla defesa, igualdade de tratamento entre as partes, dentre tantos outros, não há que se falar em devido processo legal ou democrático.
A realização da audiência de custódia com a oitiva do custodiado logo depois da prisão pretende sanar e humanizar as relações processuais, dando um rosto ao processo e lembrando ao julgador que está a se tratar de uma vida humana, a liberdade de um homem. A consumação do direito de apresentação, embora tardiamente introduzida a realidade, nesse sentido, representa respeito à dignidade da pessoa humana, criando condições de possibilidade para a plena eficácia da garantia da jurisdição, consagrando a oralidade (direito de audiência e direito da autodefesa), derrubando os muros construídos nas fronteiras do Poder Judiciário e o povo, e ainda dando eficácia do direito de ser julgado em um prazo razoável.
Nesta audiência com a possível oitiva do custodiado, melhor poderá o juiz aferir os critérios de necessidade e adequação das medidas cautelares diversas ou, em último caso, da prisão preventiva. E, acima de tudo, esse interrogatório previne a prática de maus-tratos e tortura, atendendo um mínimo de evolução civilizatória e democrática, de respeito ao cidadão, que não pode ficar preso, de forma indefinida, sem sequer ser ouvido pelo juiz, rompendo a ignorância kafkiana3 sobre o processo, porquanto o acusado não sabe - muita das vezes - as razões que acarretaram a sua prisão, os fatos que lhe são imputados, quem o está acusando, quais são as provas contra ele produzidas, de modo que a sua total ignorância acaba por deslegitimar o processo.
Atribui-se ao Pacto de San José da Costa Rica assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em 22.11.1969, a origem da audiência de custódia, notadamente pelo fato de que este Tratado de Direitos Humanos determina, em seu art. 7º, item 5, que:
(…) toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Depois da previsão no pacto internacional, a apresentação de pessoa presa ou detida à autoridade competente passou a ser previsto em diversos documentos relacionados à matéria de Direitos Humanos, como forma de resguardar os direitos fundamentais mínimos relacionados às garantias processuais e integridade do custodiado. À luz do diploma internacional, um dos objetivos da audiência de custódia é supervisionar a atuação estatal no cerceamento da liberdade das pessoas, por meio de uma autoridade imparcial e competente para combater os eventuais abusos estatais aos direitos dos homens, sobretudo atos de violência como a tortura e os maus-tratos dos custodiados.
Nesse sentido, conforme ressaltado por Schietti Cruz (2016), a condução do preso à presença de um juiz é um instrumento de fundamental importância no enfrentamento da tortura, em razão de hábitos adquiridos desde a formação colonial para que criminosos sejam tratados e punidos com sofrimento físico e moral. Complementa o autor que além de evitar ou reprimir a prática de ato de tortura ou maus-tratos, a apresentação imediata do preso ao juiz na audiência de custódia visa analisar como ocorreu à prisão para fins de averiguação da sua legalidade.
Com a apresentação do preso, o magistrado deverá analisar a legalidade da prisão e, sendo o caso, já relaxá-la ou convertê-la em uma medida cautelar de natureza menos gravosa, evitando que a pessoa permaneça presa indevidamente. Nessa perspectiva, Oliveira (2015, p. 106):
(...) o objetivo de que a sua prisão em flagrante seja analisada, quanto a sua legalidade e necessidade e seja cessada a constrição, se ilegal, ou mesmo ratificada e fortalecida através da decretação da prisão preventiva, ou, ainda, substituída por outra medida cautelar alternativa, se cabível. Na mesma ocasião ainda é possível exercer o controle judicial sobre prática nefasta e ainda vigente, consistente em submeter o custodiado a atos de maus tratos ou de tortura.
Tão grande é a importância da apresentação da pessoa presa ou detida à presença de uma autoridade, que o referido Pacto Internacional prevê expressamente que essa apresentação deve ocorrer, o mais breve possível, ou nos seus próprios dizeres “sem que haja demora”. Embora a notória importância da audiência de custódia para fins de garantir aos custodiados do Estado o pleno gozo de seus direitos fundamentais da pessoa humana, o direito de apresentação somente se tornou realidade na prática processual brasileira depois do julgamento da ADPF 347 pelo Supremo Tribunal Federal, que garantiu que toda pessoa detida ou retida deveria ser conduzida à presença física de um Juiz, conforme disposto no art. 7º, item 5º, do Pacto San José da Costa Rica, ratificada no Brasil por meio do Decreto 678/1992.
Nesse sentido, como forma de padronizar a sua aplicação, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ publicou a Resolução 213/2015, determinando que todos os tribunais do Brasil viabilizassem a realização da audiência de custódia em todo o território nacional. A referida norma regulamenta quem deve ser apresentado na audiência de custódia, determinando que toda pessoa presa em flagrante delito seja obrigatoriamente levado à presença do Juiz competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou a sua prisão:
Art. 1º. Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.
Mais adiante, a norma reguladora editada pelo CNJ, assegura às pessoas presas em decorrência de mandados de prisão cautelar ou definitiva sejam imediatamente apresentadas ao Juiz que determinou a expedição da ordem de custódia ou competente para decidir sobre a legalidade e manutenção da prisão, confira-se:
Art. 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução. Parágrafo único. Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local.
Sob essa ótica, grandes questionamentos vêm sendo realizada sobre a amplitude do direito de apresentação ao Juiz da pessoa que tenha cerceada a sua liberdade e os seus reflexos no sistema carcerário. Eis o questionamento que provocou o surgimento do presente artigo científico.
3 A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E OS SEUS REFLEXOS NO SISTEMA CARCERÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO
A audiência de custódia, consubstanciada no direito de todo cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade legalmente competente e imparcial, tem o objetivo de fazer cessar eventuais maus-tratos ou tortura, bem como para que se possa promover uma apreciação mais cautelosa acerca da necessidade e legalidade da prisão. Essa lógica é extraída da jurisprudência da Convenção Americana de Direitos Humanos - CIDH que apresenta como finalidade da audiência de custódia prevenir ameaças e maus-tratos e, também detectar e prevenir prisões e detenção ilegais e arbitrárias, ensinamentos que foram destacados no julgamento de Acosta Calderón vs. Equador4 pela Corte:
76. O artigo 7.5 da Convenção dispõe que qualquer pessoa sujeita a uma prisão tem direito a uma revisão judicial que a detenção sem demora como um meio de controle para evitar capturas arbitrárias e ilegais. O controle judicial imediato é uma medida destinada a evitar arbitrariedade ou ilegalidade das prisões, tendo em conta que o Estado de Direito o juiz deve garantir os direitos dos presos, autorizar medidas cautelares ou coercitivas, onde estritamente necessário, e na tentativa, em geral, de que o acusado seja tratado de modo consistente com a presunção de inocência. 77. Tanto a Corte Interamericana e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos destacaram a importância da supervisão judicial rápido de detenções. Quem é privado de liberdade sem controle judicial deve ser liberado ou ser imediatamente apresentado a um juiz. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos argumentou que, enquanto a palavra “imediatamente” deveria ser interpretada fazer de acordo com características especiais em cada caso, não há qualquer situação, por mais grave que seja, concede às autoridades o poder de indevidamente prolongar o período de detenção, porquanto violaria o Artigo 5.3 da Convenção Europeia. 78. Como tem sido apontado em outros casos, o Tribunal considera necessário alguns esclarecimentos sobre este ponto. Em primeiro lugar, as condições da garantia no artigo 7.5 da Convenção são claras quanto referir que a pessoa detida deve ser trazida imediatamente a um juiz ou autoridade judicial competente, de acordo com os princípios de controle judiciário e rapidez processual. Isto é essencial para a proteção do direito à liberdade pessoal e conceder proteção a outros direitos, como a vida e a integridade pessoal. O mero conhecimento por um juiz que uma é pessoa detida não satisfaz esta garantia. Os termos da garantia, uma vez que o detido deve aparecer pessoalmente e dar sua declaração perante o juiz ou autoridade competente5.
Em consonância com o precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, o controle judicial imediato - que proporciona a audiência de custódia - é um meio idôneo para evitar prisões arbitrárias e ilegais, mas, sobretudo tende a evitar possíveis práticas de tortura ou abuso de poder, visto que a presença física do custodiado possibilita ao julgador garantir os direitos fundamentais do detido e ouvi-lo tão logo cerceado a sua liberdade.
Noutros termos, exige a CIDH para legitimar o ato de cerceamento de liberdade e garantir a proteção dos direitos fundamentais das pessoas que o preso seja, sem demora ou o mais breve possível, apresentado fisicamente à autoridade judicial competente para julgá-lo, sob pena de ilegalidade na prática coercitiva. Observa-se, portanto, que o intérprete do disposto no artigo 7.5 da Convenção de Direitos Humanos avalia a necessidade da imediata apresentação do preso/detido a presença do juiz como uma garantia fundamental da pessoa, porquanto atua como medida de precaução contra possíveis agressões as liberdades individuais e a integridade física das pessoas, agindo o julgador imparcial como verdadeiro controlador da persecução criminal e punitiva do Estado.
Talvez por esses fundamentos que a CIDH entendeu que a mera comunicação da prisão ao juiz é insuficiente para a observância das garantias do custodiado, ao declarar que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”. Nesse sentido, segundo Lopes Jr. e Rosa (2015) a simples comunicação da prisão ao juiz não atende as exigências da CAHD, em razão da expressa necessidade de controle judicial efetivo da restrição de liberdade do cidadão contida no artigo 7.5. da referida Convenção, especialmente a prevenção dos maus-tratos e possíveis abusos praticados no exercício da atividade persecutória.
O Estado Brasileiro embora tenha ratificado os termos da Convenção Americana de Direitos Humanos que prevê a realização da audiência de custódia por meio do Decreto-Lei 678/1992, ou seja, há quase 27 (vinte e sete) anos, descumpria deliberadamente os seus preceitos, não internalizando o procedimento da audiência de custódia em seu processo criminal a despeito do Texto Internacional e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Prova disso, é que o art. 306, § 1º do Código de Processo Penal6, com a nova redação dada pela Lei Federal 12.403/2011, segue apenas a orientação constitucional prevista no art. 5º, LXII, a qual estabelece tão somente a imediata comunicação ao juiz de que alguém foi detido, bem como a posterior remessa do auto de prisão em flagrante para homologação ou relaxamento. Nada diz a legislação processual penal brasileira, em total revelia da previsão do CAHD, sobre o direito de apresentação física do preso ao juiz quando detido.
Assinala Paiva e Lopes Jr. (2015):
A mudança cultural é necessária para atender às exigências dos arts. 7.5 e 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, mas também para atender, por via reflexa, a garantia do direito de ser julgado em um prazo razoável (art. 5º, LXXVIII da CF), a garantia da defesa pessoal e técnica (art. 5º, LV da CF) e também do próprio contraditório recentemente inserido no âmbito das medidas cautelares pessoais pelo art. 282, § 3º, do CPP. Em relação a essa última garantia - contraditório - é de extrema utilidade no momento em que o juiz, tendo contato direto com o detido, poderá decidir qual a medida cautelar diversa mais adequada (art. 319) para atender a necessidade processual. São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.
Mesmo com tais fundamentos, a implantação da audiência de custódia na prática do direito brasileiro teve como foco, ao menos preliminarmente, a oportunidade para se reduzir o número de presos provisórios no país, ou seja, a apresentação física do preso ao juiz seria a solução dos problemas enfrentados pelo sistema carcerário brasileiro, os quais contam com números alarmantes de mais de 600 (seiscentas) mil pessoas custodiadas pelo Estado7.
Isso porque devido a crescente população carcerária de presos provisórios e a falta de estrutura física e humana para efetivação de tratamento digno aos custodiados, segundo dados apresentados pelo Infopen8, no ano de 2014, haviam 563.526 (quinhentos e sessenta e três mil, quinhentos e vinte e seis) pessoas presas, entre as quais 41% estariam recolhidas provisoriamente, ocupando o Brasil o quarto lugar entre os países com o maior contingente de pessoas presas. Sendo que, no período entre os anos de 1990 e 2013, a população carcerária no Brasil cresceu 507%, sendo a segunda maior taxa de crescimento prisional do mundo.
Com o intuito de combater as violações de direitos do homem relacionados ao tratamento desumano aplicado aos presos e ao crescente número de pessoas presas provisoriamente, tornou-se realidade no Brasil a realização da audiência de custódia, com a apresentação pessoal do preso perante o juiz. O primeiro passo foi o incentivo dado pelo Conselho Nacional de Justiça à realização de audiência de custódia, tendo como Projeto Piloto o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que editou o Provimento Conjunto 3/2015, obrigando os Delegados de Polícia a apresentarem as pessoas detidas em flagrante em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão, para audiência de custódia. Esse provimento fora questionado no Supremo Tribunal Federal pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), na Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 5240, tendo sido declarada constitucional pela Suprema Corte.
Posteriormente, a audiência de custódia tornou-se protagonista na discussão do Judiciário brasileiro quando o Supremo Tribunal Federal ao deferir parcialmente o pedido liminar na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 347 proposta em face da crise do sistema penitenciário brasileiro, reconheceu expressamente o “Estado de Coisa Inconstitucional” e garantiu, em medida cautelar, a implantação da audiência de custódia em todo o território brasileiro para fins de viabilizar a apresentação do preso perante a autoridade judiciária num prazo de até 24 horas, conforme disposto no art. 7º, item 5º, da CADH9.
O Estado de Coisa Inconstitucional, segundo Cunha Jr. (2016a, p. 582), tem origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana e fundamenta-se diante da constatação de violações generalizadas, contínuas, e sistemáticas de direitos fundamentais que afeta a um número amplo e indeterminada de pessoas derivado principalmente da omissão do Poder Público.
A audiência de custódia, nesses termos, tornou-se realidade no Brasil como política pública capaz de amenizar os problemas do sistema carcerário, mormente por causa dos altos índices de presos provisórios que se encontram custodiados nas penitenciárias brasileiras. Contrapondo a solução adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando o julgamento das medidas cautelares da ADPF 347/DF, segundo a ótica de Andrade e Alflen (2016, p. 53) a audiência de custódia não se presta ao objetivo de política pública de descarcerização e reestruturação do sistema penitenciário brasileiro, uma vez que:
(...) a audiência de custódia não se presta a abrandar a forma como cada juiz interpreta os requisitos legais para aqueles tipos de prisão cautelar, muito menos, para diminuir o contingente de presos provisórios que temos no país. Em suma, há um intento de distorção ideológica do juiz com atuação nesse ato, a exemplo do que já foi alertado em relação a outro projeto de lei - o projeto do novo CPP -, com a proposição do nome juiz das garantias ao magistrado com atuação exclusiva na fase de investigação.
A princípio, a defesa da impropriedade da correlação entre a audiência de custódia e a diminuição de prisões provisórias decretadas, uma vez que, no Brasil, cerca de 40% das pessoas privadas de liberdade são presos sem condenação. Significa dizer que quatro a cada dez presos estão encarcerados sem terem sido julgados e condenados, de modo que possa ser exagerado enxergar a finalidade da audiência de custódia como remédio para a diminuição da população carcerária e a precariedade do sistema penitenciário se apenas visualizarmos os dados estatísticos que representam um elevado índice de prisões provisórias decretadas sob a vigência e aplicabilidade da apresentação do preso ao juiz.
A observância da garantia de apresentação do preso ao juiz, em primeiro plano, não representou significativa transformação nos elevados índices de prisões provisórias, conforme se evidencia os dados estatísticos do Estado de São Paulo levantados pelo CNJ10, que demonstram que mais de 50% (cinquenta por cento) das audiências realizadas, entre o período de 24.02.2015 a 31.07.2017, os custodiados tiveram contra si a prisão preventiva decretada, o que representou a entrada de mais de 23.341 presos provisórios ao sistema penitenciário paulistano, conforme se vislumbra da tabela abaixo:
Porém, em que pese compreendermos que não seja a finalidade da audiência de custódia a salvaguarda ao sistema penitenciário, a realidade mostrou, à primeira vista, a sua eficácia como política pública de diminuição de entradas de presos provisórios no sistema penitenciário de acordo com os dados estatísticos colhidos pelo Estado de São Paulo com a aplicabilidade do direito a apresentação física do custodiado ao juiz e a mera comunicação da prisão.
Embora não seja a finalidade precípua da audiência de custódia, isso não significa dizer que paulatinamente a apresentação do preso não venha provocar uma mudança da cultura do encarceramento enraizada no sistema penal brasileiro, de modo a promover a humanização da atuação do Estado no tratamento dos custodiados e, consequentemente, diminuir os elevados índices de presos provisórios.
A apresentação do custodiado em frente ao magistrado traz maiores possibilidades de apreciação da necessidade de manutenção da prisão cautelar, uma vez que é oportunizada a humanização, a autodefesa e a verificação dos elementos da medida cerceadora da liberdade em relação às demais medidas cautelares diversas da prisão, de tal modo, serviria o direito de apresentação do preso/detido à presença física do juiz como forma de solução para a diminuição dos elevados índices de prisões cautelares decretadas país afora e o prolongamento de pessoas presas aguardando o julgamento definitivo, já que a autoridade judiciária teria uma melhor compreensão e oportunidade de aplicar medidas cautelares diversas da prisão, amenizando, consequentemente, a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro.
Nesse comparativo o Estado de São Paulo registrou uma redução de 36,93% das inclusões de presos provisórios em seu sistema carcerário ao comparar o período depois da realização de audiências de custódia com antes do início das realizações de audiências de custódia no estado, o que representou a não entrada de 4.271 custodiados provisórios e o livramento das penitenciárias e delegacias paulistanas conforme os dados colhidos entre 24.02.2014 a 30.09.2014 e 24.02.2015 a 30.09.2015, conforme dados estatísticos colhidos pelo Grupo Regional de Ações e Movimentações e Informações Carcerárias - GRAMIC.
Fonte: Secretaria da Administração Penitenciária, Grupo Regional de Ações e Movimentações e Informações Carcerárias - GRAMIC
Dessa forma, garantindo-se o direito de apresentação do preso ao juiz, eleva-se a efetividade dos direitos fundamentais das pessoas ao mesmo tempo em que permite um maior controle do Poder Judiciário sobre eventuais arbitrariedades e ilegalidades praticadas no âmbito da atividade de persecução penal, ao mesmo tempo em que poderia desafogar o sistema carcerário, especialmente a população de presos provisórios aguardando o definitivo julgamento.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos onde se idealiza a efetivação dos direitos básicos das pessoas humanas, a lei não pode desamparar o seu povo, deixando à mercê de direitos e garantias individuais tão valiosos. Assim, visando atender as novas demandas sociais e defender a efetivação dos preceitos fundamentais, a efetivação do direito de apresentação ao juiz como forma de proteção da pessoa quando cerceada a sua liberdade, ainda que temporariamente, pelo Estado.
A audiência de custódia consiste no direito de todo cidadão preso/detido ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade legalmente competente e imparcial, tem o objetivo de fazer cessar eventuais maus-tratos ou tortura, bem como para que se possa promover uma apreciação mais cautelosa acerca da necessidade e legalidade da prisão.
A apresentação do preso em flagrante diretamente ao juiz, acompanhado do advogado (defensor público) e promotor de justiça, constitui, assim, grande avanço na efetivação dos direitos fundamentais, especialmente porque consagra importantes princípios constitucionais que norteiam todo ordenamento jurídico brasileiro, destaca-se, principalmente, o devido processo legal, e seus corolários, os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Embora não seja objetivo essencial da audiência de custódia, as análises dos dados colhidos no Estado de São Paulo demonstraram que a apresentação do preso veio a provocar uma mudança da cultura do encarceramento enraizada no sistema penal brasileiro, de modo a promover a humanização da atuação do Estado no tratamento dos custodiados e, consequentemente, diminuir os elevados índices de presos provisórios paulatinamente.
A apresentação do custodiado em frente ao magistrado traz maiores possibilidades de apreciação da necessidade de manutenção da prisão cautelar, uma vez que é oportunizada a humanização, a autodefesa e a verificação dos elementos da medida cerceadora da liberdade em relação às demais medidas cautelares diversas da prisão, de modo que, sob o prisma da nova ordem constitucional, com a implementação de novas garantias processuais aos custodiados, serviria o direito de apresentação do preso/detido à presença física do juiz como forma de solução para a diminuição dos elevados índices de prisões cautelares decretadas país afora e o prolongamento de pessoas presas aguardando o julgamento definitivo, já que a autoridade judiciária teria uma melhor compreensão e oportunidade de aplicar medidas cautelares diversas da prisão, amenizando, consequentemente, a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro.