Sumário: 1. Introdução; 2. A criminalização dos defensores de direitos humanos; 3. A criminalização das lideranças indígenas; 4. Considerações Finais; 5. Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A criminalização de defensores de direitos humanos é um processo que tem intensa relação com aspectos históricos e se manifesta através de inúmeras práticas, que envolvem diversos atores sociais e instituições e, deste modo, submetem indivíduos ao poder punitivo estatal em razão das questões socioculturais e políticas que defende. Nesse contexto, em meio ao crescente discurso anti-indígena associado a um discurso anti-ambientalista, ocorre a criminalização das lideranças indígenas, através da deturpação da sua história e da sua desqualificação, sendo o povo indígena Xukuru importante exemplo elucidativo de grupo étnico vítima do processo de criminalização.
Os eventos que envolvem o povo indígena Xukuru e defensores dos direitos humanos envolvidos na defesa dos direitos desse povo possibilitam o dimensionamento desse problema, que, além de complexo, mostra-se reiterado, com impacto sociocultural, político e jurídico, decorrente das ações de diversas instituições, principalmente do Poder Judiciário.
Esse quadro fático e as situações apresentadas, aqui com um recorte central na criminalização dos defensores dos direitos humanos, delimita o trabalho, que tratará do processo de criminalização dos defensores de direitos humanos, direcionando-se, de modo especial, às lideranças indígenas, tendo como objetivo central analisar como vem ocorrendo a criminalização de lideranças indígenas no contexto brasileiro. Diante do objetivo apresentado a problematização do tema consiste em: “como se consubstancia o processo de criminalização de lideranças indígenas no Brasil?”.
Assim como não são raros os casos de desrespeito aos direitos humanos, no âmbito de diversos setores da sociedade, não são excepcionais as afrontas àqueles que lutam pela garantia de referidos direitos. Nesse contexto, a discussão tem relevo e, assume ainda mais notoriedade, ao ter como enfoque o processo de criminalização de defensores de direitos humanos, o qual se manifesta através de inúmeras práticas, que evolvem diversos atores sociais e instituições e, deste modo, submetem indivíduos ao poder punitivo estatal em razão das questões sociais e políticas que defende.
Em relação aos povos indígenas, soma-se o fato de que em decorrência de noções equivocadas presentes no senso comum, muitas das particularidades inerentes a sua etnia não são observadas e tal situação se torna ainda mais grave quando as instituições estatais não as observam.
Nesse sentido, a hipótese primária da pesquisa baseia-se na percepção de que a valoração e criação de estereótipos negativos dos defensores de direitos humanos, evidenciados pelas estruturas de poder hegemônico, tornam tais sujeitos alvos do poder punitivo estatal, e as singularidades, típicas da diversidade sociocultural, como a dos indígenas, não são observadas, levando a uma invisibilidade e homogeneização dos tratamentos dispensados às questões que envolvem os direitos humanos e seus defensores.
O trabalho empreenderá essa discussão, por intermédio de pesquisa bibliográfica desenvolvida por meio de abordagem qualitativa, realizada entre novembro de 2021 e dezembro de 2023, tendo sido subdivido em duas seções. A primeira descreverá a criminalização dos defensores de direitos humanos, delineando este processo no contexto brasileiro e como ele atinge os que defendem os direitos humanos; a segunda analisará como o processo de criminalização vem se consubstanciando especificamente em relação às lideranças indígenas no país.
2 A CRIMINALIZAÇÃO DOS DEFENSORES DE DIREITOS HUMANOS
O processo de criminalização tem relação com aspectos históricos, como a escravidão, a formação do Estado nacional e as ditaduras políticas. Na América Latina, os Estados nacionais foram formados com a supressão da cidadania política bem como de diversos direitos à maior parte da população e, no Brasil, não foi diferente, na sua formação como Estado nacional, os não-cidadãos eram maioria3. Assim, a formação dos Estados nacionais na América Latina é permeada por interesses particulares de parte constituída do poder político e econômico e a distinção entre cidadãos e não-cidadãos se associa às raças e às classes sociais, com a exclusão de escravos, indígenas e camponeses pobres, da cidadania política, em nome dos próprios direitos políticos e sociais4, contexto em que surgem os dispositivos para punir e disciplinar os não-cidadãos e, além deles, aqueles que lutam para transformar a sua realidade5. Como destacam Zaffaroni e Santos: “criminalização, vitimização e policização caem predominantemente sobre os mais humildes setores sociais, não sendo difícil estimular o ódio entre eles a partir da criação de uma realidade midiática para gerar violência que impede qualquer diálogo”6. Aliás, em países da América Latina, a exemplo do Brasil, os monopólios de mídia disseminam narrativas racistas, atribuindo-as a uma suposta inferioridade inerente à população7.
A criminalização tem vínculo com o dispositivo da periculosidade. Como aponta Foucault, em meio a um contexto no qual a sociedade e a política demandavam por reação e repressão ao crime, a ser observada no âmbito da criminalidade médico-legal, o enfoque da intervenção punitiva, que até então era a responsabilidade, desloca-se para a periculosidade8. Assim, a partir do século XIX, há uma tendência a dar prioridade ao indivíduo perigoso como centro da intervenção punitiva9. Isto é, há o deslocamento, nas palavras de Foucault: “(;...) do crime ao criminoso, do ato efetivamente cometido ao perigo virtualmente implícito no indivíduo, da punição modulada do réu à proteção absoluta dos outros”10.
No Brasil, conforme salienta Coimbra, as subjetividades que indicam periculosidade já se apresentavam nas concepções das elites do final do século XIX11. Aliás, ainda presente na sociedade brasileira, o dispositivo da periculosidade afirma que assim como tem relevância o que determinado indivíduo já fez, é relevante o que ele está propenso a fazer12. Conforme Coimbra: “É o controle das virtualidades; importante e eficaz instrumento de desqualificação e menorização que institui certas essências, certas identidades”13. Nessa concepção, o indivíduo será considerado propenso ao cometimento de atos perigosos e à criminalidade, a depender de uma característica que lhe é inerente, como a condição financeira, a cor da pele, o nível de escolaridade e o local de sua moradia14.
Assim, o processo de criminalização envolve diversas práticas e atuações, sendo descrito pela doutrina em duas etapas: a criminalização primária e a criminalização secundária. Conforme Zaffaroni et al.: “Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fim de impor-lhes uma pena.”15. Nesse ínterim, esclarecem os autores, a criminalização ocorre por meio da elaboração de leis penais que incriminem ou possibilitem a punição de determinados indivíduos (criminalização primária), de modo geral exercida pelas agências políticas, isto é, pelos poderes legislativo e executivo e também se manifesta através da punição concreta de determinadas pessoas (criminalização secundária), exercida por agências como a polícia, promotores, advogados, o Poder Judiciário e agentes penitenciários16.
Tendo em vista a criminalização primária tratar-se de uma seleção abstrata, é com a criminalização secundária que a seleção se concretiza, tanto em relação aos criminalizados quanto aos vitimizados17. E, nesse contexto, embora as agências policiais tenham uma atuação especial, é importante destacar que a seleção também tem influência de outras agências como as de comunicação social18. Deste modo, apontam Zaffaroni et al., são selecionadas pessoas as quais, em razão do seu distanciamento do poder político e econômico bem como da comunicação massiva, não são capazes de causar grandes problemas19. As agências de comunicação social divulgam as condutas mais grosseiras praticadas justamente por essas pessoas que não tem um acesso à comunicação social, tornando tais atos os únicos delitos e tais pessoas, os únicos delinquentes, criando um estereótipo no imaginário da coletividade que se associa a classe social, etnia, estética e ao gênero e se torna critério determinante na seleção das agências de criminalização secundária20.
Assim, esclarecendo a respeito da criminalização dos defensores de direitos humanos, no Relatório “Na Linha de Frente: Defensores de Direitos Humanos no Brasil (2006-2012)”, a Justiça Global traz importantes apontamentos. A criminalização é uma das estratégias de deslegitimação da atuação dos defensores, na qual, o indivíduo ou o grupo é criminalizado21. De tal modo, ao imputar condutas criminosas a determinados grupos sociais, levar o protesto social ao Poder Judiciário, coibir ações de forma direta e militarizá-las, as questões sociais e as reinvindicações políticas passam a esfera de atuação das agências de controle formais, tornando possível a sua punição, coerção e repressão22.
Ainda, de acordo com a Justiça Global é importante observar que há outras estratégias de deslegitimação da atuação dos defensores, que também podem criar um ambiente favorável à criminalização, tais quais: a) desqualificação - distorção dos sentidos e objetivos do que é demandado por determinados indivíduos ou grupos sociais, bem como dos seus discursos e atuação; b) invisibilização - tentativa de impedir que as reinvindicações, o contexto social ou as manifestações de indivíduos ou grupos sociais ganhem publicidade; c) inferiorização - redução ou desprezo da legitimidade da distinção inerente a determinados indivíduos ou grupos sociais, bem como da legitimidade da sua história, cultura, da sua dignidade, ou, ainda, do seu desempenho social; d) não-reconhecimento de direitos - obstáculo à legitimação social de certos indivíduos ou grupos sociais, em razão da inexistência de direitos no âmbito jurídico-institucional; e) omissão - quando, diante de contumaz, flagrante ou iminente violação de Direitos Humanos em desfavor de certos indivíduos ou grupos sociais, o Estado permanece inerte; f) cooptação - quando, com o intento de dissuadir, dividir determinados indivíduos ou grupos sociais, ou de controlar suas demandas, são oferecidas vantagens econômicas e/ou políticas; g) despolitização ou individualização - afastamento do viés político que possui uma luta social, com a atribuição da sua responsabilidade a um único indivíduo23.
Assim, quando se intenta criminalizar determinado movimento social e aqueles que o representam, comumente, de maneira prévia, os seus discursos são desqualificados, há a individualização das questões sociais envolvidas, o desprezo pelas questões políticas que o movimento representa, entre inúmeras outras estratégias para a deslegitimar os defensores. Nesse contexto, se insere a criminalização das lideranças indígenas, através da deturpação da sua história e da sua desqualificação, como se passa a tratar a seguir.
3 A CRIMINALIZAÇÃO DAS LIDERANÇAS INDÍGENAS
Como é sabido, a difusão de uma cultura dominante e opressiva sobre outras resultou em um extermínio de várias culturas ocidentais, processo inicialmente justificado como necessário para a evolução da humanidade24. Essa rejeição do outro, particularmente em relação aos povos indígenas, se estabeleceu de forma permanente e atemporal, ultrapassando o período colonial25. Nas palavras de Lora Alarcón, Jesús e Cordazzo: “Em verdade, foi na suposta sociedade globalizada, pós-moderna e utópica, que o discurso da negação do outro manteve-se latente”26. Durante o colonialismo, os indígenas eram rotulados como selvagens, já no período do tardocolonialismo, a imagem do indígena é moldada como um bode expiatório, repleta de estereótipos e estigmas27. A diferença atual é que os indígenas são frequentemente vistos como ameaças para certos grupos dominantes, devido às controvérsias envolvendo terras que tradicionalmente pertencem a eles28. Como aponta Wilkerson: “desumanize-se o grupo e estará feito o trabalho de desumanizar todos os indivíduos dentro dele. Desumanize-se o grupo e ele estará isolado das massas a que se pretende conferir superioridade (;...)”29. Isto é, ter uma casta servindo de bode expiatório se revelou essencial para a manutenção do bem-estar coletivo das castas superiores bem como para o funcionamento do sistema30.
Sendo assim, no Brasil, a criminalização da população indígena manifesta o racismo institucional que intenta a destituição dos índios de seus direitos, por meio da negação de sua etnia31. É importante destacar que a utilização do termo "índio" em si já é considerada obsoleta32. Como consequência, observam-se alterações simbólicas recentes, incluindo a mudança do nome do "Dia do Índio" para "Dia dos Povos Indígenas", em 202233, e a renomeação de instituições tal qual a Fundação Nacional do Índio, que agora é conhecida como Fundação Nacional dos Povos Indígenas34. Como enfatiza Ramos:
Na sua luta em defesa própria contra o perigo da aniquilação cultural, os indígenas começam a utilizar os meios dos civilizados, seja pela via político-partidária, seja pela organização em movimentos sociais, ou lançando mão de recursos jurídicos. Mas, nem por isso deixam de ser índios. Pelo contrário, é lançando mão de mecanismos de defesa dos brancos que eles se afirmam como seus iguais. Porém uma coisa deve ser enfatizada. Ser igual aos brancos não quer dizer abrir mão de sua identidade específica, mas ser reconhecido como legitimamente diferente35.
Sendo assim, tem destaque dois tipos de políticas de não reconhecimento dos indígenas: o não reconhecimento dos direitos coletivos da população indígena, que pode ser apontada como invisibilidade legal, e o não reconhecimento ao indígena do seu direito de ser coletivo, que pode ser apontada como invisibilidade étnica36. Ambos os tipos de não reconhecimento recaem sobre os indígenas e, tendo em vista que se tratam de formas de discriminação, por meio da negação do direito indígena à diferença sociocultural e ao direito de acesso à justiça, podem ser indicados como graves violações de direitos humanos37. De tal modo, como aponta Silva, a aculturação do indígena é o ponto de partida para a descrição da questão da criminalização e do aprisionamento dos indígenas38. Esclarece o autor:
Trata-se de um poder coercitivo que se exerce em função das formas de classificação do indígena nos inquéritos policiais, julgamentos e estabelecimentos penais no Brasil, nos quais e onde os indígenas se veem obrigados a se subordinar para interagir com as instituições públicas, em geral, e com o sistema de justiça, em particular39.
Em relação as lideranças indígenas (líderes e autoridades tradicionais, todos os que representam os povos indígenas e interagem com as comunidades e o Estado para a reinvindicação de seus direitos)40, é possível a identificação de diversos aspectos que influenciam na criminalização.
Além de aspectos conjunturais, como o fortalecimento do discurso anti-indígena associado a um discurso anti-ambientalista, inclusive no contexto das políticas públicas, podem ser apontados aspectos subjetivos, os quais têm relação com o sofrimento de caráter físico e psíquico enfrentado pelas lideranças indígenas, em decorrência de circunstâncias tais quais a constante preocupação com a própria segurança e a de seus familiares e o descaso no tocante a sua condição de indígena, concomitantemente à disseminação de discursos de ódio41.
Ainda, há aspectos formais que favorecem o crescimento da criminalização de povos indígenas, dentre os quais, três merecem destaque: o não cumprimento de citação judicial penal, a individualização de demandas pertencentes ao grupo social e a rotulação de indígenas como aculturados/integrados42. No tocante a citação judicial penal, o que ocorre é que, com a Constituição Federal de 1988, não há mais que se falar no paradigma da tutela dos indígenas e, portanto, para a garantia do devido processo legal, é necessária a citação pessoal43. Contudo, em algumas vezes, os mandados de citação não são entregues pessoalmente aos indígenas, mas à Fundação Nacional do Índio (Funai), que também não informa ao indígena sobre o mandado de citação, o que possibilita que o processo corra a sua revelia44.
No tocante à individualização de demandas pertencentes ao grupo social, a luz do parágrafo 6º, do artigo 11-B, da Lei nº 9.028 de 12 de abril de 1995 combinado com o parágrafo 2º, do artigo 10, da Lei nº 10.840 de 2 de julho de 2002 e com a Portaria AGU nº 839, de 18 de junho de 2010, a representação do indígena, em geral, deve ser realizada pela Procuradoria-Geral Federal (PGF) e, apenas em relação a casos que envolvam, exclusivamente, interesses individuais, a Defensoria Pública da União (DPU) poderá assumir a defesa judicial de indígenas45/46/47. Conforme Guajajara, a questão é que o que deveria ser uma exceção está sendo manejado para burlar a atuação da PGF na defesa de casos coletivos48. De maneira arbitrária ou equivocada, crimes que se relacionam a interesses coletivos são considerados como relativos a tutelas individuais, deslocando a defesa do caso para a DPU, que ainda não possui estrutura suficiente para absorver a demanda, deixando os indígenas, inúmeras vezes, desassistidos49.
A rotulação de indígenas como aculturados/integrados também contribuiu para o aumento da criminalização dos indígenas, contexto em que é possível observar graves prejuízos à garantia de direitos aos indígenas, principalmente quando interpretações relacionadas à ideia de integração são adotadas pelo Poder Judiciário. Como destacam Guajajara, Santana e Lunelli, a criminalização das lideranças indígenas pode ser compreendida como uma estratégia para intensificar a punição de indígenas pelo sistema de justiça criminal, ocorrendo através da aplicação arbitrária e discriminatória das categorias "índio integrado" e "índio aculturado" pelo judiciário50. O Poder Judiciário, por vezes, apoiado na concepção ainda presente na sociedade de que o indígena, ao ter contato com culturas diferentes da sua, perde a sua identidade, atua cerceando direitos, como quando avalia, com base nessa concepção, a necessidade de um intérprete no decorrer dos atos processuais penais51.
Nesse contexto, outra questão está associada a dispositivos da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Em seu artigo 56, caput e parágrafo único, referida Lei impõe atenuante de pena ao indígena condenado por infração penal e a preferência a ser dada ao regime de semiliberdade para o cumprimento das penas em posto de atendimento da Funai mais próximo da moradia do indígena52. Contudo, a imprecisão do dispositivo legal a respeito dos sujeitos dos direitos subjetivos previstos possibilita a adoção, pelo Poder Judiciário, de preceitos da ideologia integracionista. Segundo essa visão, conforme Souza Filho: “(;..) a única justificativa para atenuar as penas e minorar os efeitos de sua aplicação aos índios, é o fato de que eles teriam um entendimento incompleto do caráter delituoso (;...)”53. No mesmo sentido, como aponta Silva:
Como vítimas ou réus, aplicam-se aos indígenas decisões judiciais pouco afeitas aos seus interesses e influenciadas pela lógica etnocida da legislação integracionista (assimilacionista) que, ainda que superada pela ordem constitucional, reafirma-se nos discursos jurídicos racistas e etiológicos sustentados pelas agências judiciais, de reprodução ideológica e policiais54.
Nesse contexto, a problemática que se observa é que há uma equivocada compreensão no sentido de que aqueles indígenas considerados integrados perdem a sua identidade bem como no sentido de que os que não estão integrados tem uma compreensão reduzida, capaz de torná-los inimputáveis. A relação dos indígenas à figura da inimputabilidade deve-se à uma interpretação por parte da doutrina e da jurisprudência no sentido de que os atos infracionais praticados por indígenas são consequência da sua cultura, uma vez que influencia em seu desenvolvimento mental55.
Ocorre que, a lei penal brasileira não prevê a identidade indígena como causa para qualquer grau de inimputabilidade. Nos moldes do artigo 26, caput e parágrafo único, do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), cuja redação foi dada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, o que se associa à inimputabilidade é a saúde e o desenvolvimento mental do indivíduo56. Aliás, o artigo 56, caput e parágrafo único, do Estatuto do Índio, Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, prevê a possibilidade da condenação penal de indígenas, nos seguintes termos:
Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola. Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado57.
Contudo, nesse contexto, o artigo 1º, parágrafo único, da lei indigenista prevê o princípio da isonomia, dispondo que os indígenas terão as mesmas proteções legais que os demais brasileiros, preservadas as condições inerentes ao povo indígena reconhecidas na lei58. Nesse ínterim, destaca Lacerda, o princípio da isonomia, concomitantemente, possibilita a condenação de indígenas e determina o tratamento diferenciado no tocante a penalidade59.
Portanto, é possível concluir que a interpretação a respeito da inimputabilidade dos indígenas não tem conexão com a base legal e vem sendo utilizada para a perpetuar discursos racistas, os quais ocultam o crescente número de processos criminais contra os índios e a sua inclusão em penitenciárias60. Consoante Lacerda: “O mito da irresponsabilidade penal dos indígenas tem funcionado, ao longo do tempo, como um manto que torna invisível o movimento crescente de criminalização dos indígenas e o aumento de sua presença em meio à população carcerária do país.”61. Desde o momento em que constituído o inquérito, os indígenas não têm a sua condição étnica reconhecida, e, portanto, o julgamento é permeado por complicações operacionais tais quais as demandas por intérpretes e peritos, em um contexto de invisibilidade promovida pela polícia e pelas instâncias judiciais62. Nesse contexto, destaca Silva: “O que essa descaracterização étnica faz, na verdade, é não reconhecer o status legal diferenciado dos indígenas enquanto tais desde a abertura do inquérito até seu aprisionamento.”63.
A ideologia integracionista não pode ser utilizada nem como uma forma de discriminação à etnia indígena, ao compreender um indivíduo como inimputável simplesmente pelo fato de ser da etnia indígena e não estar integrado à sociedade, e nem como uma forma de alegar que, uma vez o indígena é integrado, ele perde sua identidade e, portanto, os direitos inerentes a sua etnia. A Constituição Federal assegura a todos os indígenas proteção igualitária, dissociando o valor da inclusão social comunitária da perda de identidade ou da diminuição de traços culturais64.
Assim, como é possível observar, as lideranças indígenas precisam resistir à uma série de violações de direitos e permanecer na luta por eles. Aliás, foi durante o regime político de exceção, período em que os indígenas se encontravam mais vulneráveis, que o surgimento de lideranças indígenas se intensificou65. Pode-se apontar uma dupla e alarmante tendência na criminalização de lideranças indígenas no Brasil66. Observa-se um aumento na mobilização social dessas lideranças em resposta a questões políticas, como a proposição de leis para regular atividades econômicas relacionadas ao comércio internacional de commodities, a mineração em territórios indígenas e a flexibilização das leis ambientais67. Também nesse contexto, a mentalidade predominante no judiciário ainda se baseia em práticas consideradas obsoletas e em subclassificações legislativas que resultam na violação de direitos fundamentais68.
Sendo assim, lideranças indígenas tornaram-se conhecidas em âmbito nacional e internacional, tanto em razão do destaque que tiveram as suas atuações quanto tendo em vista o seu trágico fim69. Dentre essas lideranças de destaque, estão Mario Juruna, primeiro deputado federal indígena que lutava pela demarcação das terras indígenas e denunciava a corrupção existente nos poderes legislativo e executivo, e Marçal Tupã ́í, que denunciou as atrocidades sofridas pelos indígenas ao Papa João Paulo II70. Nas palavras de Silva: “Menos conhecidas, contudo, são as histórias de inúmeros líderes indígenas em sua luta diária pela sobrevivência e pelo reconhecimento de seus direitos”71.
Tendo em vista a relação intrínseca das vidas indígenas com o território e a natureza, para as lideranças indígenas, o direito à terra (à proteção dos territórios demarcados e à demarcação dos que ainda não o foram) é direito primordial a ser assegurado, já que, apenas se observado tal direito, os demais direitos podem ser garantidos72. Assim, nas palavras de Guajajara:
Ser uma liderança diante desse contexto da resistência, ante um modelo de desenvolvimento econômico que destrói não somente o ambiente - com desmatamentos, queimadas, contaminação dos solos e das águas com projetos mineradores - mas seus próprios corpos, é lutar não apenas contra a destruição da vida da coletividade indígena, mas também por causas e valores de toda a sociedade global73.
Nesse contexto, tem grande destaque a luta do povo indígena Xukuru, o qual, conforme destaca Neves, habita a denominada Serra do Ororubá, região situada em Pernambuco, entre o agreste e o sertão74. A luta dos Xukurus envolve não só o direito à propriedade de suas terras quanto a integridade física de lideranças, a qual foi levada até a Corte Interamericana de Direitos Humanos, dando origem ao caso Povo Indígena Xukuru e seus membros vs. Brasil. Como apontam Oliveira, Neves e Fialho: “O Caso Xukuru na Corte Interamericana é considerado paradigmático e inspirador para o exercício de garantia dos direitos fundamentais no Brasil”75. Aliás, a inclusão de artigos relativos aos direitos indígenas na Constituição Federal, o que permitiu que os indígenas começassem a vislumbrar a possibilidade de recuperar seu território, resultou da intensa mobilização indígena durante o período da Assembleia Constituinte, uma vez que os Xukuru marcaram presença e exerceram influência ativa em Brasília, representados por suas lideranças e pelo Cacique Xicão76.
Desde a colonização, os indígenas Xukurus vem sofrendo intensas expropriações de terras e, além de inúmeros problemas instaurados no território, especialmente tendo em vista se tratar de local de antiga colonização, outra questão que complica a garantia do território indígena diz respeito ao longo decurso de tempo entre as etapas do processo administrativo para regularização das terras indígenas77. Inicialmente, a mobilização Xukuru foi caracterizada por intenso medo, em um contexto em que o anseio por reconhecimento da sua identidade étnica e dos direitos territoriais convivia com as poderosas resistências à sua mobilização étnica78. Como destacam Almeida, Lôbo e Advincula:
O caso Xukuru é, então, mais um desses casos exemplares de processos malconduzidos com consequências nefastas, a partir do qual podemos visualizar o ônus de um processo negligenciado pelo Estado Brasileiro em várias de suas etapas79.
No ano de 2002, uma petição foi apresentada por organizações não-governamentais à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em desfavor da República Federativa do Brasil, alegando dano ao povo indígena Xukuru e aos seus membros em razão de violações aos artigos 21, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no tocante ao direito à propriedade coletiva e às garantias e proteção judiciais bem como aos artigos 1.1 e 2 da Convenção em questão, no contexto das obrigações gerais de respeito aos direitos e de adoção de disposições de direito interno80. A violação ao direito à propriedade, conforme a petição, deve-se à lentidão do processo de demarcação do território indígena Xukuru, à ineficácia da proteção judicial para a garantia de referido direito bem como à ausência de recursos judiciais com eficácia e acessibilidade81.
Simultaneamente à apresentação da petição, as organizações não-governamentais requereram medidas cautelares para a garantia da vida e da integridade de liderança do povo indígena Xukuru, e de sua mãe, em razão de ameaças que, supostamente, ambos sofreram82.
Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu sentença favorável aos Xukurus, na qual condenou o Brasil: a realizar a retirada dos não indígenas do território índigena Xukuru, efetuando o pagamento das indenizações por benfeitorias de boa-fé; à garantia ao povo Xukuru, em até 18 meses, do domínio pleno e efetivo do seu território; à criar fundo para financiar o desenvolvimento da comunidade Xukuru, para compensar o dano material sofrido pelos indígenas83.
No tocante às violações à integridade física da liderança indígena e de sua mãe, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu sentença desfavorável aos indígenas Xukurus. A Corte compreendeu pela impossibilidade de se concluir acerca da violação estatal ao direito à integridade física, uma vez que não se comprovou tal alegação84. Em tal aspecto, a decisão deixou a desejar. Contudo, como destacam Almeida, Lôbo e Advincula, uma vez que a Corte condenou o Brasil pela violação de direitos tais quais à garantia judicial de prazo razoável, à proteção judicial e à propriedade, já se evidencia as violações seculares enfrentadas pelos povos indígenas, no âmbito de direitos fundamentais85.
Nesse contexto, Almeida, Lôbo e Advincula apontam que o processo de criminalização ocorreu de forma intensa no decorrer da apreciação da petição apresentada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em uma tentativa incessante de deslegitimação do povo indígena Xukuru, por meio de uma compilação preparada para a instrução dos autos dos processos criminais bem como pelo manejo de uma ampla bibliografia sobre o grupo étnico em questão86. Aliás, os Xukurus são importante exemplo elucidativo de grupo étnico vítima de tal processo. Nesse contexto, em uma concepção de criminalização que se refere especificamente a aspectos objetivos observados no registro de tramitação dos processos criminais, Oliveira, Neves e Fialho, apontam que, de um modo geral, a linha de investigação inicial invariavelmente apontava para a culpabilidade das lideranças indígenas como a explicação mais provável, sem que outra possibilidade investigativa fosse considerada87.
A complexidade se evidenciou na abordagem adotada pelo Estado, particularmente pela Polícia Federal, que sustentava a existência de uma coordenação entre supostos indígenas para desordem, envolvendo retomadas de terras e furtos de gado88. Como mencionam Oliveira, Neves e Fialho, a título exemplificativo, no contexto do emblemático Caso Chicão, processo nº2002.83.00.02442-1, aspecto crucial foi a influência que um discurso discriminatório, por parte de alguns não-indígenas em Pesqueira, exerceu sobre os policiais federais, especialmente no que tange à compreensão da estrutura social Xukuru89. Ainda, os policiais federais também se basearam em acusações provenientes de uma carta que imputava aos indígenas uma série de crimes, sem apresentar provas concretas dessas acusações, a qual teria sido supostamente emitida por uma Comissão de Justiça e Paz da Diocese, cuja autoria foi posteriormente desmentida pela própria Diocese90.
No mesmo sentido, em relação ao Caso atentado contra o cacique Marcos e assassinato de dois jovens - Jozenilson José dos Santos e José Ademílson Brabosa da Silva (Processos Nº 2003.83.00.011297-6 e 2003.83.00.008677-1), apesar da existência de relatórios técnicos que destacam a complexidade do caso, tanto a Polícia Federal quanto o Ministério Público Federal falharam em contextualizar as acusações contra o cacique, ignorando o fato de que a administração municipal de Pesqueira estava associada a grupos políticos e econômicos opostos à luta do povo Xukuru em busca de recuperar o seu território tradicional91.
O processo demarcatório do território do povo indígena Xukuru foi permeado pela morte de diversas lideranças, entre elas a do líder Chico Quelé, ocorrida no ano de 2001, ano em que se findou o processo demarcatório92. A partir de então, foram utilizadas novas táticas para a exploração das terras indígenas, como a tentativa de convencer os Xukurus a consentirem a construção de um santuário religioso que, na verdade, se tratava de um empreendimento de interesse de fazendeiros da região93. Contudo, destaca Silva, entre outras lideranças que se opunham à construção do santuário, estavam o líder Chico Quelé e o vice-cacique José Barbosa dos Santos, conhecido como Zé da Santa94.
Nesse ínterim, durante as investigações, somente foram ouvidos aqueles que se posicionaram a favor da construção do santuário e, 15 dias após a morte de Chico Quelé, a Polícia Federal concluiu a investigação, alegando ter constatado que o homicídio do líder indígena teria sido a mando de Zé da Santa, tendo em vista que a vítima tinha a intenção de denunciar o mandante por desvio de recursos direcionados à educação95. Contudo, aponta Silva, no julgamento, ocorrido em julho de 2012, foi provado que o recurso destinado à educação não era administrado pelos indígenas e Zé da Santa foi inocentado96. O homicídio do líder Xukuru e a acusação do vice-cacique atenderam aos anseios dos que exploravam suas terras, circunstâncias as quais, dentre outras, desmobilizava o povo Xukuru e o tornava vulnerável97.
Como é possível observar, o povo indígena Xukuru foi vitimado com diversas perdas e também sofreu intensamente o processo de criminalização, como a criminalização do vice-cacique Xukuru, acusado de matar o líder Chico Quelé, além das intensas tentativas de deslegitimação do povo Xukuru diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar nos direitos humanos como uma realidade passível de concretização pelas normas prevista ou pelos procedimentos legais estabelecidos, ainda se constitui numa utopia98 inserida na realidade distópica vivida e vivência pelas pessoas minorizadas, como o povo Xukuru, seus lideres e todos aqueles que se colocam em defesa de causa que envolvem direitos humanos.
O problema delineado no início deste artigo, partiu das evidências conhecidas, sentidas e vividas pelos povos indígenas e por outros sujeitos minorizados e vulnerabilizados, que só tem acesso à dimensão virtual e simbólica dos direitos humanos, mas, no entanto, devem se sujeitar a dimensão material e concreta da dimensão criminal-sancionatória do Estado.
Entre a revisão de literatura desenvolvida e a análise descritiva do caso do povo Xukuru, percebe-se que o processo de criminalização é complexo e plurifacetado, possui diversas matrizes e não pode ser percebido e estudado apenas pela perspectiva jurídica.
Nesse sentido, tal espécie de criminalização é um processo que tem intensa relação com aspectos históricos, como a escravidão, a formação do Estado Nacional e as ditaduras políticas, bem como com o dispositivo da periculosidade, contexto em que, consoante exposto por Foucault, o centro da intervenção punitiva está no indivíduo perigoso99.
Nesse contexto, é possível concluir que a seleção dos indivíduos perigosos, a partir das noções apresentadas por Zaffaroni et al., se concretiza na criminalização secundária, exercida por agências como a polícia, promotores, advogados, o Poder Judiciário e agentes penitenciários, com a influência de outras agências como as de comunicação social100.
Como é delineado pela Justiça Global, a criminalização é uma das estratégias de deslegitimação da atuação dos defensores, na qual, o indivíduo ou o grupo é criminalizado, havendo diversas outras estratégias deslegitimadoras que também podem criar um ambiente favorável à criminalização101. De tal modo, as questões sociais e as reinvindicações políticas passam a esfera de atuação das agências de controle formais, tornando possível a sua punição, coerção e repressão102.
Outro aspecto relevante é que em meio ao crescente discurso anti-indígena associado a um discurso anti-ambientalista103, se insere a criminalização das lideranças indígenas, através da deturpação da sua história e da sua desqualificação. Há inúmeros aspectos que favorecem o crescimento da criminalização de povos indígenas, dentre os quais, tem grande destaque, como apontado por Guajajara, a rotulação de indígenas como aculturados/integrados104.
A equivocada compreensão no sentido de que aqueles indígenas considerados integrados perdem a sua identidade bem como no sentido de que os que não estão integrados tem uma compreensão reduzida, capaz de torná-los inimputáveis.
Ademais, a ideologia integracionista não pode ser utilizada nem como uma forma de discriminação à etnia indígena, ao compreender um indivíduo como inimputável simplesmente pelo fato de ser desta etnia e não estar integrado à sociedade, e nem como uma forma de alegar que uma vez que o indígena é integrado, ele perde sua identidade e, portanto, os direitos inerentes a sua etnia.
Como destaca Guajajara, para as lideranças indígenas, o direito à terra é direito primordial a ser assegurado, já que, apenas se observado tal direito, os demais direitos podem ser garantidos105. Nesse contexto, tem grande destaque a luta do povo indígena Xukuru que envolve além do direito à propriedade de suas terras, à integridade física de lideranças, sendo os Xukurus importante exemplo elucidativo de grupo étnico vítima do processo de criminalização.
A luta do povo Xukuru foi levada até a Corte Interamericana de Direitos Humanos, dando origem ao caso Povo Indígena Xukuru e seus membros vs. Brasil e a decisão proferida como apontam Almeida, Lôbo e Advincula evidencia as violações seculares enfrentadas pelos povos indígenas, no âmbito de direitos fundamentais106.
O povo indígena Xukuru foi vitimado com diversas perdas e também sofreu intensamente o processo de criminalização, como no caso do vice-cacique Xukuru, acusado de matar o líder Chico Quelé. Ainda, no próprio decurso da apreciação da petição apresentada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, é possível identificar o processo de criminalização do povo indígena Xukuru, através de uma tentativa incessante de sua deslegitimação107.
Num plano geral a hipótese aventada como resposta à problematização se confirma, pois tem prevalecido, nas práticas sociais e jurídicas a valoração e criação de estereótipos negativos dos defensores de direitos humanos, evidenciados pelas estruturas de poder hegemônico, tornam tais sujeitos alvos do poder punitivo estatal e singularidade, típicas da diversidade sociocultural, como a dos indígenas, não são observadas, levando a uma invisibilidade e homogeneização dos tratamentos dispensados às questões que envolvem os direitos humanos e seus defensores.
Como é possível observar, as lideranças indígenas, assim como todos os defensores de direitos humanos, precisam resistir à uma série de violações de direitos e permanecer na luta por eles. É um caminho longo que exige constante acompanhamento do meio acadêmico, pois há a expectativa de que uma vez delineada a questão, em profundidade, se torne possível pensar em soluções.