Introdução
A encefalopatia/encefalite ligeira com lesão reversível do corpo caloso - mild encephalitis/encephalopathy with reversible splenial lesion (MERS) é uma condição caracterizada por lesões do corpo caloso encontradas por ressonância magnética (RM).1,2 Trata-se de uma entidade clínico-radiológica rara, havendo mais casos descritos em crianças do que em adultos, a maioria deles no continente asiático (particularmente no Japão),3-5 denotando predisposição genética. Geralmente os doentes apresentam sinais e sintomas inespecíficos do sistema nervoso central, tais como cefaleias, convulsões, alteração do estado de consciência, alterações da linguagem, agitação psicomotora, irritabilidade, sonolência, monoparésias, alucinações visuais, ataxia, entre outros.1,3,6 Descrita inicialmente em 2004,7 a MERS pode ser dividida nos tipos 1 e 28: no primeiro caso as lesões são restritas ao esplénio do corpo caloso, enquanto no tipo 2 há envolvimento de todo o corpo caloso e/ou substância branca adjacente. Relativamente às lesões do corpo caloso, foram descritas três formas - arredondadas, ovais e em bumerangue8 - sem correlação com a clínica ou prognóstico.9 Apesar da etiopatogénese desconhecida, têm sido identificados vários fatores desencadeantes, destacando-se as infeções (sobretudo víricas), alterações metabólicas, vários fármacos (como antiepiléticos) ou sua suspensão, bem como privação de drogas e intoxicações.3,10 Praticamente todos os doentes, sobretudo na MERS tipo 1, recuperam de forma rápida e espontânea, clínica e imagiologicamente, sem sequelas.3,8 Apresenta-se o caso clínico de um homem que desenvolve quadro de MERS tipo 1 na sequência de síndrome gripal e, deste modo, pretende-se descrever uma entidade pouco frequente e elucidar e reforçar aspetos relevantes do diagnóstico e manuseamento apresentados na literatura.
Caso clínico
Homem, 44 anos, caucasiano, sem antecedentes patológicos, que recorre ao serviço de urgência por aparecimento súbito de cefaleias, ataxia, mioclonias e disartria. Desde o dia anterior à admissão que referia náuseas, vómitos e tonturas, bem como quadro gripal-like nos 5 dias prévios.
Análises gerais | Hemograma, INR, bioquímica sem alterações PCR 1,29 mg/dL e VS 28 mm/1ª hora |
Líquido cefalorraquidiano | Pleocitose (56 céls/μL) de predomínio mononuclear Hiperproteinorráquia (73,7 mg/dL) Glicorráquia (64 mg/dL), com razão LCR/soro de 0,64 PCR para vírus herpes simplex (VHS) 1/2 |
Serologias | Ac. VHA total +/IgM -, Ag. HBs -, Ac. HBc -, Ac. HBs +, Ac. VHC -, Ac. VIH1+2/p24 - IgG de Toxoplasma gondii, CMV e VEB + IgG/IgM VHS 1/2 - Ac. antiTreponema pallidum- |
Estudo autoimune | Ac. anti ds-DNA, ANA, c-ANCA e p-ANCA - |
À admissão estava apirético e hemodinamicamente estável, apresentando mioclonias da face e afasia global. Fez estudo analítico (Tabela 1), tomografia computorizada (TC) e angio-TC crânio-encefálicas, sem alterações relevantes. Realizada posteriormente punção lombar, com estudo do líquido cefalorraquidiano (LCR) revelando discreta pleocitose (56 células/μL) com predomínio mononuclear, glicorráquia normal (razão LCR/soro de 0,64) e discreta hiperproteinorráquia (73,7 mg/dL). Foi assumida encefalite vírica, tendo iniciado empiricamente aciclovir endovenoso 10 mg/kg 8/8 h.
No dia seguinte desenvolve quadro de desorientação, com agitação psicomotora esporádica e retenção urinária com necessidade de algaliação. É pedido estudo serológico e autoimune, que foi negativo (Tabela 1).
Posteriormente é realizada RM crânio-encefálica (Fig. 1A) que revela lesão focal mediana no esplénio do corpo caloso, com hipersinal em T2 e restrição à difusão, sugerindo lesão transitória dessa área, sem outras alterações significativas. Assume-se possível diagnóstico de MERS tipo 1 e suspende-se o aciclovir. O doente é internado, apresentando recuperação neurológica total em dois dias, com alta uma semana após.
Realiza nova RM, dois meses após o internamento, que mostra resolução completa da lesão (Fig. 1B).
Discussão
O diagnóstico de MERS é imagiológico, com lesões em RM habitualmente mostrando hipersinal em T2 e restrição à difusão no esplénio do corpo caloso.(4,11) Dada a inespecificidade do quadro neurológico, o diagnóstico diferencial desta entidade benigna autolimitada engloba uma miríade de condições clínicas não benignas (tumores ou infeções do sistema nervoso central, lesões isquémicas, esclerose múltipla, encefalomielite aguda disseminada, …), que devem ser excluídas.11
Realça-se também a presença de sintomatologia compatível com síndrome gripal previamente ao quadro. Entre os vários precipitantes descritos na literatura, destaca-se a patologia infeciosa, particularmente vírica, embora possa haver associação com infeções bacterianas.3,10
A patogénese da MERS não está bem definida, principalmente pela natureza heterogénea das condições subjacentes,12 formulando-se hipóteses como presença de edema intramielínico, dano axonal, edema citotóxico ou stress oxidativo. Há patologias neurológicas com restrição à difusão na substância branca, provavelmente decorrentes de edema intramielínico separando as camadas de mielina, igualmente reversíveis.7 No entanto, a MERS pode ocorrer em recém-nascidos, cujo esplénio ainda se encontra desmielinizado.1 Já os valores da proteína Tau no LCR são normais nestes doentes, o que aliado ao facto de epiléticos com lesões do esplénio não apresentarem interrupção em imagens de difusão, torna menos provável a hipótese de dano axonal.13 Por outro lado, o influxo de células inflamatórias e macromoléculas, a par do edema citotóxico, podem causar diminuição do coeficiente de difusão.6 Já foi demonstrada relação entre a expressão aumentada da aquaporina-4, fortemente presente no corpo caloso, e o edema citotóxico intracelular cerebral,8 estando descrito o aumento das aquaporinas nalguns dos precipitantes da MERS, bem como a sua alteração nas fibras axonais de doentes com lesões do corpo caloso.9 Também o stress oxidativo pode ter um papel nesta patogénese, comprovado pelo aumento no LCR de alguns marcadores oxidativos (interleucinas 6 e 10) e descrição de casos com hiponatrémia,7,13 ausente neste doente.
A metilprednisolona ou a imunoglobulina humana, recomendadas para tratamento de algumas encefalopatias, não apresentam evidência científica na MERS,4 com desfecho semelhante (recuperação completa) quando utilizadas. Isto coloca em causa a utilidade destas intervenções, tal como exemplificado neste caso, em que ocorreu um desfecho favorável apenas com instituição de medidas sintomáticas.
No doente descrito, o controlo imagiológico feito aos 2 meses mostrava-se já sem evidência das lesões previamente descritas em RM (Fig. 1B). A literatura descreve um espaço temporal curto (dias a meses) para resolução das lesões.3,8
Em síntese, a MERS é uma entidade rara que apresenta uma panóplia de diagnósticos diferenciais, desde condições benignas a outras de pior prognóstico, sendo um diagnóstico de exclusão. A não necessidade de terapêutica dirigida, aliada a um desfecho favorável, são aspetos-chave a reter.
Apresentações/Presentations
O presente caso clínico foi apresentado sob a forma de e-poster no “18th European Congress of Internal Medicine”, que decorreu em Lisboa nos dias 29 a 31 de agosto de 2019, com o título “Mild Encephalitis/Encephalopathy With Reversible Splenial Lesion - A Benign Condition With Not So Benign Differentials”.