Introdução
A sífilis é uma infeção crónica sistémica, maioritariamente de transmissão sexual, causada pela espiroqueta Treponema pallidum.1 Em Portugal, os dados mais recentes são referentes ao ano de 2017, no qual a taxa de incidência de casos notificados de sífilis não congénita foi de 8,8/100 000 habitantes, resultados superiores aos dados referentes ao ano de 2016 (7,5/100 000 habitantes) e 2015 (7,6/100 000 habitantes).2
Esta infeção progride por estádios, os quais apresentam manifestações clínicas consideravelmente diferentes.1 No estádio primário, ocorre geralmente a formação de uma úlcera na região genital ou perianal. No estádio secundário, múltiplas manifestações, maioritariamente cutâneas, podem surgir. Após um período de latência que pode durar várias décadas, um estádio mais avançado pode surgir, no qual a pele, coração e sistema nervoso são particularmente afetados.3 Apesar dos estádios tardios serem atualmente raros, a sífilis pode ter consequências devastadoras se não identificada e tratada. O seu tratamento varia consoante o estadio da doença. Na sífilis primária, secundária ou latente precoce, a benzilpenicilina benzatínica 2,4 milhões de unidades internacionais em toma única intramuscular é o tratamento de primeira linha. No caso da sífilis latente tardia, terciária ou de duração indeterminada, preconiza-se a utilização do mesmo fármaco e dose, mas com administração semanal ao longo de três semanas consecutivas.4
Em aproximadamente 10%-35% dos casos de tratamento da sífilis, ocorre a reação de Jarisch-Herxheimer (JH). Trata-se de uma reação febril, aguda e autolimitada que ocorre geralmente nas primeiras 24 horas após o doente receber tratamento para uma infeção provocada por espiroquetas.5 Apesar de geralmente autolimitada, a reação de JH pode revelar-se confundidora de uma patologia já por si conhecida como “a grande imitadora”. O caso clínico apresentado revela uma forma rara de apresentação desta reação, com dor abdominal e sinais de disfunção hepatocelular.
Caso Clínico
Homem de 33 anos, com antecedentes pessoais de rinite alérgica e asma, medicado com salbutamol em SOS. Fumador (9 UMA), sem outros hábitos alcoólicos ou toxicofílicos.
Solicitou teleconsulta com o seu médico assistente por aparecimento de lesões no tronco, dorso, mãos e escroto com uma semana de evolução. Optou-se por requerer avaliação analítica (Tabela 1) e agendar consulta presencial urgente, na qual, após questionado, referia cerca de um mês antes, aparecimento de ferida no escroto à esquerda, que cicatrizou espontaneamente. Referia ainda relação sexual heterossexual desprotegida dois meses antes. Objetivamente apresentava temperatura corporal 37,3ºC, tensão arterial 117/75 mmHg, frequência cardíaca 72 bpm. Auscultação cardíaca e pulmonar sem alterações; abdómen inocente. Apresentava um eritema maculopapular no tronco e palmas das mãos, não pruriginoso. No escroto, à esquerda, apresentava uma mácula dura ao toque, indolor. Eram palpáveis adenopatias inguinais moles, móveis e indolores.
Foi assumida sífilis secundária, pelo que foi feita notificação SINAVE e administrada toma única de benzilpenicilina benzatínica 2,4 milhões de unidades internacionais/6,5 mL. Cerca de três horas depois, recorreu novamente a consulta presencial urgente por dor no quadrante superior direito do abdómen. Ao exame objetivo apresentava-se febril (temperatura timpânica 38,5ºC), normotenso e normocárdico. O abdómen apresentava-se doloroso à palpação do hipocôndrio direito. Era ainda evidente um agravamento do eritema prévio. Foi referenciado ao Serviço de Urgência, onde realizou estudo complementar com eletrocardiograma, radiografia do tórax e abdómen e ecografia abdominal, os quais não revelaram alterações. A Tabela 2 sumariza os resultados analíticos obtidos, dos quais se destacava discreta leucocitose com neutrofilia e disfunção hepatocelular com elevação da TGO, TGP e GGT cerca de três vezes o valor de referência. Realizou ainda teste SARS-CoV-2, que se revelou negativo.
O doente foi medicado com metamizol magnésico, com alívio da dor. Teve alta do Serviço de Urgência, referenciado para a consulta externa de Medicina Interna. Após dois dias, foi feita reavaliação telefónica pelo médico assistente, apresentando-se o doente melhorado clinicamente. Solicitado estudo analítico de reavaliação da função hepática, que o doente apenas realizou após seis meses e que se encontra sumarizado na Tabela 3. Verificou-se uma normalização da função hepática, bem como uma resposta adequada ao tratamento.
Discussão
A reação de JH é uma reação inflamatória transitória que surge tipicamente em até 24 horas após o tratamento de uma infeção por espiroquetas.6 Apesar do mecanismo fisiopatológico por detrás da reação de JH não estar completamente estabelecido, pensa-se que resulte da fagocitose acelerada por parte dos leucócitos polimorfonucleares, seguida de libertação de lipoproteínas, citocinas e complexos imunes de microrganismos mortos.5-7 Consistentemente, no caso da sífilis, esta reação é mais frequentemente observada em doentes com títulos superiores nos testes não-treponémicos.6 É, portanto, mais frequente em casos de sífilis primária e secundária, sendo rara na sífilis latente e muito rara na sífilis tardia.8
Apesar de raramente associada a morbilidade a longo prazo, esta reação pode ser sintomaticamente grave, manifestando-se sob a forma de sintomas constitucionais (febre, tremores, cefaleia, mialgias) e agravamento do eritema inicial.6,8,9 Pela sua apresentação, é frequentemente confundida com uma alergia medicamentosa.9 Manifestações menos comuns incluem meningite, insuficiência respiratória, renal ou hepática, alterações do estado de consciência, síndrome coronária aguda, acidente vascular cerebral e contrações uterinas na gravidez, podendo estar associada à indução de trabalho de parto.6,10
Apesar da sua apresentação súbita e inespecífica, é geralmente transitória, apresentando reversão espontânea em até 24 horas. Não é conhecida qualquer forma de prevenção do seu aparecimento, sendo que paracetamol ou anti-histamínicos prévios à administração de penicilina não mostraram prevenir esta reação.6 Foram também utilizados corticoesteroides, contudo, não é claro que o seu efeito seja suficientemente benéfico para que sejam recomendados.10 Anti-inflamatórios não esteroides e outros antipiréticos podem ser usados para alívio sintomático, no sentido de reduzir a gravidade dos sintomas e duração da reação.8
Diferentes antibióticos usados em infeções por espiroquetas encontram-se em estudo como alternativas no tratamento da sífilis para reduzir a incidência da reação de JH, não existindo ainda evidência do seu benefício. Estratégias preventivas com agentes mais recentes tais como anticorpos anti-TNFα parecem promissoras, contudo a sua utilidade não foi ainda comprovada.8
Não podendo ser prevenida, a reação de JH pode, contudo, ser antecipada, pelo que os doentes devem ser informados dos possíveis sinais e sintomas e aconselhados a contactar o seu médico assistente caso uma reação grave ocorra.8 Paralelamente, para o clínico que não se encontre alerta para esta possível reação, o diagnóstico diferencial pode revelar-se complexo e a investigação adicional infrutífera, existindo possibilidade de diagnósticos erróneos, nomeadamente de alergia a penicilina. O presente trabalho tem como objetivo alertar para esta reação e sua abordagem, por forma a obviar erros de diagnóstico ou terapêutica e para que seja feito a correta abordagem destas situações.
Parâmetro | Valor |
---|---|
Hemoglobina (N= 13-18 g/dL) | 14,7 g/dL |
Leucócitos (N= 4-11 x 103/μL) | 8,13 x 103/μL |
Neutrófilos (N= 4-11 x 103/μL) | 7,5 x 103/μL (59,7%) |
Plaquetas (N= 4-11 x 103/μL) | 342 x 103/μL |
VDRL | Positivo (1/128) |
TPHA | Reativo (1/2560) |
Anticorpos HIV 1 e 2 | Negativos |
Anticorpo anti-HCV | Negativo |
Antigénio HBs | Negativo |
Anticorpo anti-HBc | Negativo |
Anticorpo anti-HBe | Negativo |
Anticorpo anti-HBs | Positivo |
Parâmetro avaliado | Valor obtido |
---|---|
Hemoglobina (N= 13-18 g/dL) | 14,4 g/dL |
Leucócitos (N= 4-11 x 103/μL) | 11,7 x 103/μL |
Neutrófilos (N= 1,600-8,000/μL) | 10,1x 103/μL (86,7%) |
Plaquetas (N= 150-450 x 103/μL) | 345x 103/μL |
Bilirrubina total (N< 1,2 mg/dL) | 0,88 mg/dL |
Bilirrubina direta (N< 0,3 mg/dL) | 0,22 mg/dL |
AST/TGO (N= 15-37 Ul/L) | 252 Ul/L |
ALT/TGP (N= 30-65 Ul/L) | 156 Ul/L |
GGT (N= 5-85 Ul/L) | 768 Ul/L |
FA (N= 45-117 Ul/L) | 229 Ul/L |
LDH (N= 84-246 Ul/L) | 364 Ul/L |
PCR (N< 3 mg/L) | 59,7 mg/dL |
Pesquisa SARS-CoV-2 | Negativo |
Parâmetro avaliado | Valor obtido |
---|---|
Hemoglobina (N= 13-18 g/dL) | 15,7 g/dL |
Leucócitos (N= 4-11 x 103/μL) | 10,31 x 103/μL |
Neutrófilos (N= 1,600-8,000/μL) | 5,22x 103/μL (86,7%) |
Plaquetas (N= 150-450 x 103/μL) | 361 x 103/μL |
Bilirrubina total (N< 1,2 mg/dL) | 0,4 mg/dL |
Bilirrubina direta (N< 0,3 mg/dL) | 0,2 mg/dL |
AST/TGO (N= 15-37 Ul/L) | 25 Ul/L |
ALT/TGP (N= 30-65 Ul/L) | 48 Ul/L |
GGT (N= 5-85 Ul/L) | 52 Ul/L |
FA (N= 45-117 Ul/L) | 94 Ul/L |
LDH (N= 84-246 Ul/L) | 174 Ul/L |
Albumina (N= 3,5-5,2 g/dL) | 5,0 g/dL |
VDRL | Positivo (1/1) |