Introdução
O cancro da próstata (CaP) é a neoplasia mais prevalente e a segunda com maior incidência nos homens em todo o mundo.1 Os avanços no tratamento têm contribuído para uma redução da mortalidade ao longo dos últimos 22 anos, no entanto, aproximadamente 30%-50% dos doentes submetidos a tratamento definitivo apresentam recorrências.2
Embora a metformina continue a ser a terapêutica de primeira linha na diabetes mellitus (DM) tipo 2,3 o seu potencial anti-neoplásico tem sido evidenciado em vários tipos de cancro, incluindo pulmão, cólon-retal, pâncreas, fígado, mama e próstata.4 No CaP em particular, o uso de metformina tem demonstrado não só redução da sua incidência, mas também resultados positivos a nível do seu prognóstico, nomeadamente na diminuição da progressão e recorrência, e na melhoria da sobrevivência. No entanto, muitos destes estudos apresentam ainda resultados inconclusivos ou controversos.5-11
Assim, o objetivo desta revisão será avaliar especificamente a evidência mais recente sobre o uso da metformina na redução da recorrência e no aumento da sobrevivência dos doentes com CaP, em comparação com doentes que não realizem este tratamento.
Métodos
Inicialmente, as investigadoras procederam à elaboração da pergunta de investigação, atendendo ao modelo PICO. A estruturação da mesma encontra-se na Tabela 1.
Após esta etapa, foi realizada uma pesquisa de normas de orientação clínica e artigos científicos nas bases de dados PubMed, Cochrane Library, Database of Abstracts of Review of Effects (DARE), National Guideline Clearinghouse, Canadian Medical Association, Practice Guidelines, Infobase e Evidence Based Medicine Online. Foram incluídas publicações de 1 de janeiro de 2010 a 9 de maio de 2022, nas línguas inglesa e portuguesa, e foram utilizados os termos MeSH "metformin", "prostate cancer" e "therapy". Os critérios de exclusão empregados consistiram em artigos que incluíssem doentes tratados com metformina associada a outros antidiabéticos orais ou doentes com outros tipos de cancros que não o CaP, estudos em animais, artigos de revisão, artigos repetidos ou incluídos em revisões sistemáticas ou meta-análises previamente selecionadas, estudos que não respondessem à pergunta de investigação inicialmente colocada e artigos redigidos noutras línguas que não o português e o inglês.
Posteriormente, foi realizada a análise dos artigos selecionados, utilizando a escala Strenght Of Recomendation Taxonomy (SORT) da American Family Physician. Esta escala permite atribuir diferentes níveis de evidência (NE 1-3), tendo em conta a qualidade dos estudos, e distintos graus de força de recomendação (FR A-C), em função da consistência das evidências disponíveis.12 A classificação da escala SORT encontra-se na Tabela 2.
População | Doentes com CaP |
Intervenção | Tratamento com metformina |
Comparação | Sem tratamento com metformina |
Outcome | Recorrência e sobrevivência |
Níveis de Evidência | |
1 | Evidência orientada para o doente de boa qualidade. |
2 | Evidência orientada para o doente com qualidade limitada. |
3 | Outras evidências: guidelines de consenso, extrapolações, prática clínica, opiniões, evidência orientada para a doença ou séries de casos. |
Graus de Força de Recomendação | |
A | Evidência consistente e de boa qualidade, orientada para o doente (resultados de mortalidade, morbilidade, melhoria sintomática, redução de custos e qualidade de vida). |
B | Evidência inconsistente e de qualidade limitada, orientada para o doente (resultados de mortalidade, morbilidade, melhoria sintomática, redução de custos e qualidade de vida). |
C | Baseado em consensos, prática clínica, opinião de expertos, evidência orientada para a doença (parâmetros fisiológicos ou intermédios que podem não ter impacto na melhoria dos resultados orientados para o doente, como por exemplo, pressão arterial), ou séries de casos. |
Resultados
Atendendo aos critérios de exclusão previamente mencionados, e após a aplicação dos filtros “ensaio clínico randomizado”, “estudo coorte/caso-controlo”, “revisão sistemática” e “meta-análise”, obtiveram-se na pesquisa inicial um total de 17 artigos. Através da leitura do título e resumo, foram excluídos 10 artigos, por não responderem à pergunta de investigação previamente formulada, e 4 por estarem já incluídos numa meta-análise (MA) selecionada. Assim, restaram 3 MA para leitura integral, tendo sido todas incluídas. As características destes estudos encontram-se resumidas na Tabela 3.
A MA de In Cheol Hwang e colaboradores (2015)6 incluiu 8 estudos (4 coortes e 4 casos-controlo) em doentes com CaP e DM tipo 2. Em 7 deles foi reportado o número de doentes incluídos, totalizando uma população de 4100 indivíduos, dos quais 2417 estavam medicados com metformina. O tempo médio de seguimento foi de 5,2 anos, sendo que 3 dos estudos não reportaram este dado. Os parâmetros de prognóstico avaliados variaram entre os diferentes estudos, mas incluíram o risco de recorrência, a progressão da doença, a mortalidade específica por CaP e a mortalidade global. A análise mostrou que, comparativamente aos doentes com CaP e DM tipo 2 medicados com metformina, aqueles que não utilizavam metformina apresentaram um risco aumentado de recorrência do CaP [RR = 1,20; IC 95% (1,00-1,44)]. Esta tendência também se verificou para os restantes parâmetros avaliados, mas sem significância estatisticamente comprovada. Um dos pontos fortes desta MA deve-se à elevada qualidade metodológica dos estudos incluídos, que apresentaram uma média de 8,38 segundo a escala de Newcastle - Ottawa, cuja pontuação pode variar entre 0 e 9. Outros pontos fortes encontrados são a consistência dos resultados referentes à recorrência do CaP e o facto de só terem sido incluídos doentes medicados com metformina que apresentavam DM tipo 2. Algumas limitações verificadas nesta MA são: a ausência de dados relativamente à dose e duração de uso da metformina, utilização concomitante de outros antidiabéticos e duração da DM; a heterogeneidade dos estudos selecionados em relação ao estadio de cancro, aos parâmetros de prognóstico avaliados e à definição de recorrência; e o desenho dos estudos incluídos, que foram predominantemente retrospetivos. Em conclusão, esta MA evidenciou que a metformina tem papel protetor no risco de recorrência do CaP, tendo sido atribuído um NE 1.
Por outra parte, a MA realizada por AD Raval e colaboradores (2016)7 incluiu um total de 9 estudos (8 coortes e 1 caso-controlo), dos quais em 5 foram incluídos utentes diabéticos com CaP e em 4 utentes com CaP independentemente de serem diabéticos ou não. A população total avaliada foi de 38 250 indivíduos, sendo que 8284 desses indivíduos eram diabéticos e 4357 encontravam-se sob metformina. Quanto aos tratamentos antineoplásicos utilizados, 4 estudos incluíram apenas homens submetidos a prostatectomia radical, enquanto 1 estudo incluiu homens sob radioterapia. Em relação aos parâmetros de prognóstico, estes não foram unânimes nos distintos estudos, tendo, no entanto, sido avaliada a relação do uso de metformina com a recorrência bioquímica, aparecimento de metástases, mortalidade específica por CaP e mortalidade global. Os resultados obtidos revelaram que a utilização de metformina se associa a uma redução do risco de recorrência bioquímica de CaP, sendo estes resultados superiores nos que realizaram radioterapia, em comparação com doentes prostatectomizados [RR = 0,82; IC 95% (0,67-1,01)]. Uma explicação para estes resultados consiste na melhoria da sensibilidade à radioterapia das células resistentes à radiação, através da ativação da quinase ativada por monofosfato de adenosina (AMPK), que, por sua vez, desempenha um papel fundamental na regulação do ciclo celular e na sobrevivência do tumor. No entanto, apenas um único estudo avaliou os efeitos da metformina em homens submetidos à radioterapia externa, e os achados deste estudo devem ser interpretados com cautela à luz das limitações metodológicas. Por outro lado, não existe associação estatisticamente significativa quer ao aparecimento de metástases [RR = 0,59; IC 95% (0,38-1,18)], quer à mortalidade global [RR = 0,86; IC 95% (0,65-1,15)] ou mortalidade específica por CaP [RR = 1,22; IC 95% (0,58-2,56)]. Como ponto forte, destaca-se que esta MA tenha sido a primeira a avaliar a associação entre o uso de metformina e a progressão da doença em homens com CaP. De salientar ainda que os estudos foram controlados para potenciais confundidores e que a qualidade dos estudos incluídos foi avaliada através da STROBE checklist (Strengthening the Reporting of Observational studies in Epidemiology), contrariamente ao observado nas restantes MA analisadas para a elaboração desta Revisão Baseada na Evidência, cuja qualidade metodológica dos estudos incluídos foi avaliada segundo a escala de Newcastle - Ottawa. Algumas das limitações observadas prendem-se com o facto de nem todos os indivíduos diabéticos avaliados nos estudos estarem a realizar metformina como tratamento, a heterogeneidade dos estudos selecionados e estes serem maioritariamente retrospetivos. Desta forma, a MA revelou que os doentes com CaP sob metformina apresentam menor risco de recorrência bioquímica de CaP, pelo que as autoras atribuem um NE 1.
Kancheng H. e colaboradores8 elaboraram uma MA que incluiu 30 estudos de coorte, com 38 855 de doentes sob metformina, num total de 334 735 doentes, não estando medicados com outros fármacos anti-diabéticos. Relativamente a tratamentos antineoplásicos associados, verificou-se a existência de 4 estudos com doentes sob radioterapia, 4 estudos com doentes prostatectomizados, 1 estudo com doentes sob docetaxel, 1 estudo com doentes a usar terapia de privação androgénica e 8 estudos com doentes a realizar tratamento misto. De referir ainda que 2 estudos não apresentam referência a tratamentos antineoplásicos usados. Quanto aos parâmetros de prognóstico, 8 estudos avaliaram a sobrevida livre de recorrência, 7 estudos a sobrevida específica por CaP e 14 estudos a sobrevida global. Os resultados obtidos são a favor do benefício da metformina em todos os parâmetros prognósticos mencionados (sobrevida livre de recorrência: [RR = 0,6; IC 95% (0,42-0,87)]; sobrevida específica por CaP: [RR = 0,78; IC 95% (0,64-0,94)]; sobrevida global: CaP: [RR = 0,72; IC 95% (0,59-0,88)]) por comparação com doentes sem metformina a realizar um tratamento antineoplásico idêntico. Estes ganhos foram mais acentuados nos utentes que realizaram radioterapia radical. De referir que os doentes tratados com docetaxel e terapia de privação androgénica, não foram concomitantemente submetidos a radioterapia. Como ponto favorável, esta MA possui uma elevada qualidade metodológica dos estudos incluídos que varia entre 6 e 9, segundo a escala de Newcastle - Ottawa. De salientar ainda o facto de terem selecionado estudos com doentes a fazerem apenas metformina como anti-diabético. Os pontos menos positivos desta MA prendem-se com a heterogeneidade dos estudos selecionados, a presença de 2 estudos sem dados numéricos da população incluída, e com o facto de serem estudos maioritariamente retrospetivos. Por estes motivos, as autoras atribuíram a esta MA um NE 1.
Referência | Tipo de Estudo | Metodologia | Resultados | Limitações | NE |
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In Cheol Hwang et al (2015)6 | Revisão Sistemática com Meta-análise | Análise de 8 estudos: - 4 coortes - 4 casos-controlo População: - Nº doentes sob metformina: 2417* - Nº doentes total: 4100* - Apenas foram incluídos doentes com DM2 Tempo de seguimento: - Média: 5,2 anos [2,1-8,7]** Parâmetros de prognóstico avaliados: - 5: recorrência do CaP - 2: progressão do CaP - 2: mortalidade específica por CaP - 4: mortalidade global | Doentes com CaP e DMT2 que usam metformina apresentam um risco de recorrência 20% menor Foi observada a mesma tendência para os restantes outcomes, porém, sem significância estatística | - 1 estudo* sem dados numéricos da população incluída e 3 estudos** sem dados temporais (resultado final menos preciso) - Ausência de dados e heterogeneidade dos estudos selecionados (resultado final menos preciso) - Estudos maioritariamente retrospetivos (menor qualidade da evidência) | 1 |
Raval, AD et al (2015)7 | Revisão Sistemática com Meta-análise | Análise de 9 estudos: - 8 coortes - 1 caso-controlo População: - Nº doentes sob metformina: 4357 - Nº doentes total: 38 250 - Em 4 estudos, os doentes sob metformina podiam ter DM (ou não) Tratamentos antineoplásicos utilizados: - 4: doentes apenas prostatectomizados - 1: doentes sob radioterapia Parâmetros de prognóstico avaliados: - 5: recorrência bioquímica de CaP - 4: aparecimento de metástases - 5: mortalidade específica por CaP - 6: mortalidade global | Doentes com CaP sob metformina apresentaram menor risco de recorrência bioquímica do cancro (vs doentes sem metformina a realizar igual tratamento antineoplásico), sendo estes resultados superiores nos que realizaram radioterapia externa (vs utentes prostatectomizados) Não foi encontrada associação estatisticamente significativa entre o uso de metformina e a mortalidade global ou específica por CaP e o aparecimento de metástases | - Heterogeneidade dos estudos selecionados (resultado final menos preciso) - Estudos selecionados são exclusivamente em inglês (viés de linguagem) - Estudos maioritariamente retrospetivos (menor qualidade da evidência) | 1 |
Kancheng H et al (2019)8 | Revisão Sistemá tica com Meta-análise | Análise de 30 estudos coorte População: - Nº doentes sob metformina: 38 855 - Nº doentes total: 334 735 - Todos os doentes sob metformina usavam este tratamento anti-diabético em monoterapia Tratamentos antineoplásicos utilizados: - 4: doentes sob radioterapia - 4: doentes prostatectomizados - 1: doentes sob docetaxel - 1: doentes a usar terapia de privação androgénica - 8: doentes a realizar tratamento misto - 2: sem referência ao tratamento antineoplásico usado Parâmetros de prognóstico avaliados: - 8: sobrevida livre de recorrência - 7: sobrevida específica por CaP* - 14: sobrevida global* | Doentes com CaP sob metformina apresentaram benefícios na sobrevida global, específica de CaP e livre de recorrência (vs doentes sem metformina a realizar igual tratamento antineoplásico) Estes ganhos foram mais acentuados nos utentes que realizaram radioterapia radical | - Heterogeneidade dos estudos selecionados (resultado final menos preciso) - 2 estudos* sem dados numéricos da população incluída (resultado final menos preciso) - Estudos selecionados são exclusivamente em inglês (viés de linguagem) - Estudos maioritariamente retrospetivos (menor qualidade da evidência) | 1 |
* Somatório dos 7 estudos avaliados na Revisão Sistemática cujos dados quantitativos da população incluída estavam especificados. ** Tempo de seguimento determinado com base nos 5 estudos de de Revisão Sistemática que apresentavam esses dados temporais clarificados.
Discussão
Neste estudo, foi realizada uma revisão sistemática com o intuito de analisar a informação disponível sobre o efeito da metformina em vários fatores prognósticos nos utentes com CaP.
As meta-análises incluídas nesta revisão demonstraram, de forma unânime, uma diminuição da recorrência do CaP nos utentes a utilizar metformina, sendo que numa delas essa redução alcançou um risco 20% menor.8 Foi também verificada uma melhoria da sobrevivência global e específica por CaP nos utentes com CaP sob tratamento com metformina, no entanto, em apenas uma delas se demonstrou existir associação estatisticamente significativa.6
Um dos pontos fortes desta revisão é o facto de apenas terem sido utilizadas MA, que são os estudos com maior validade científica. Para além disso, em todas as MA analisadas nesta revisão foi demonstrada evidência orientada para o doente de boa qualidade (NE1). No entanto, também é importante referir que todas elas apresentam limitações importantes. É exemplo disso a heterogeneidade da população avaliada, nomeadamente no que respeita aos tratamentos anti-neoplásicos utilizados, o que poderá ter tido influência nos resultados encontrados. A ausência de informação relativamente à dose e tempo de uso de metformina é também uma limitação no que concerne à definição consensual de posologia adequada para este tipo de utentes. Cabe destacar que também é necessário esclarecer qual o tempo de seguimento adequado, uma vez que o CaP tem habitualmente uma evolução muito indolente, o que pode ser um fator confundidor nos resultados que demonstram este benefício da metformina. Outro aspeto negativo importante, é o facto de não existirem estudos na população portuguesa, que tem características distintas das avaliadas, o que poderá levar a resultados distintos.
No sentido de se conseguir um maior nível de evidência no que diz respeito ao benefício da metformina na diminuição da recorrência do CaP, assim como na melhoria da sobrevivência relativa do mesmo, seria importante a realização de novos estudos, nomeadamente de ensaios clínicos controlados aleatorizados nesta população. Para isso, propõe-se a seleção de uma amostra representativa de pacientes portugueses seguidos em consulta de oncologia por CaP, que estejam a realizar o mesmo tipo de tratamento. Estes pacientes seriam posteriormente sujeitos a uma distribuição de forma aleatória, equitativa e duplamente cega para o grupo de intervenção, que receberia a mesma dose de metformina, e para o grupo controle. Decorrido o mesmo intervalo de tempo para ambos os grupos, avaliar-se-ia a recorrência e a sobrevivência relativa ao CaP em pacientes sujeitos e não sujeitos a terapia com metformina. Desta forma, seria possível estabelecer uma relação causa-efeito menos sujeita a distorções, sejam elas populacionais, de dose farmacológica ou de tempo de terapia ou seguimento.
Conclusão
A hipótese de que o uso de metformina poderá ter resultados positivos nos utentes com CaP tem vindo a ser estudada pela comunidade científica. Trata-se de um fármaco interessante no que refere à terapia oncológica, dada a sua segurança, características farmacodinâmicas e preço reduzido.
Nesta revisão conclui-se que a utilização de metformina poderá ter impacto positivo na redução da recorrência e na melhoria da sobrevivência (global e específica) nos utentes com CaP. Ainda assim, as autoras consideram que seria necessário realizar estudos de maior robustez e qualidade, nomeadamente ensaios clínicos controlados aleatorizados, com o intuito de fazer frente às principais limitações encontradas nesta revisão, nomeadamente no que respeita à uniformização da dose e do tempo de duração de utilização da metformina, assim como o aumento do tempo de seguimento da população em estudo. Desta forma, as autoras consideram que a evidência encontrada tem uma força de recomendação B.