Introdução
O envelhecimento populacional está intrinsecamente associado ao aumento da prevalência de patologias crónicas, com consequente aumento da morbilidade e incapacidade atribuível - Years Lost Disability (YLD).1 Em concordância com o panorama internacional, em Portugal, a carga de morbilidade atribuível a doenças crónicas é de 86%.2
Muitos dos doentes dependentes vivem com o apoio de cuidador informal. Um cuidador informal é um indivíduo que proporciona algum tipo de assistência a uma pessoa com incapacidade quer a nível de atividades de vida diária ou instrumentais. O cuidador geralmente tem uma relação com o doente, sendo frequentemente familiar. A importância social do cuidador tem sido enaltecida nos últimos tempos, pois estas pessoas podem ser consideradas importantes componentes de um serviço de saúde.3,4
Em relação ao enquadramento sociocultural, Portugal apresenta uma elevada taxa de cuidados domiciliários informais face ao contexto europeu (12,4%).5
Segundo a literatura disponível, os cuidadores informais apresentam maior probabilidade de reportar sintomas de depressão e outros sintomas relacionados.4 A escala de Zarit é uma ferramenta para avaliação do impacto físico, emocional e social nos cuidadores que tem como objetivo a identificação dos fatores que levam à exaustão do cuidador para, posteriormente, se poder proporcionar respostas adequadas às suas necessidades.6 Está descrita associação entre o resultado da aplicação da escala Zarit e existência de depressão no cuidador, além desta ter também valor preditivo na identificação de cuidadores em risco de depressão futura.7
Com este estudo os autores pretendem caracterizar os doentes dependentes e seus cuidadores informais quanto às suas características sociodemográficas, determinar a sobrecarga dos cuidadores e perceber se existe associação entre a sobrecarga do cuidador, o grau de dependência do doente e os antecedentes de patologia depressiva do cuidador.
Material e Métodos
Realizou-se um estudo de investigação original, observacional, transversal e descritivo entre julho e setembro de 2019, previamente aprovado pelo Conselho Geral da USF, pelo Conselho Clínico e de Saúde do ACeS Matosinhos e pela Comissão de Ética da ULS Matosinhos.
A população em estudo incluiu os cuidadores informais dos utentes dependentes da USF, que foi determinada através da obtenção da lista de domicílios realizados pelas equipas de saúde familiares (n=157). Da seleção inicial foram excluídos cuidadores de utentes falecidos, transferidos, institucionalizados ou hospitalizados durante o período do estudo, cuidadores de utentes com apoio domiciliário formal ou cuja prestação de cuidados fosse inferior a oito horas por dia e utentes que recusaram participar.
Posteriormente, os cuidadores informais foram abordados por carta e telefonicamente para a apresentação do estudo e confirmação do seu interesse na participação. Para salvaguardar a adesão à participação no estudo optou-se por agendar diretamente com cada cuidador um domicílio. Em cada visita foram obtidos os consentimentos informados por escrito tanto do cuidador como do doente (ou do seu representante legal) e realizada a aplicação do questionário 1 (dados sobre o cuidador e escala de Graffar) e questionário 2 (escala de Zarit). A colheita de dados foi posteriormente complementada através da recolha de informação presente nos processos clínicos dos doentes.
As variáveis estudadas sobre o cuidador foram o género, o tipo de relação com o doente, a idade, a escolaridade, o número de anos como cuidador (categorizada em intervalos), o número de horas dedicadas em média por dia (categorizada em intervalos), a existência de apoio em algumas tarefas específicas, o nível de sobrecarga (escala de Zarit) e a existência de antecedentes de perturbação depressiva. Em relação aos doentes dependentes foram analisadas a idade, a freguesia de residência, a principal patologia que levou a dependência e o seu grau de dependência (escala de Barthel).
Através da aplicação da escala de Zarit os cuidadores foram classificados como sem sobrecarga (pontuação menor que 46), sobrecarga ligeira (pontuação entre 46 e 56) e com sobrecarga intensa (pontuação superior a 56).
Os dados foram organizados numa base de dados no programa Microsoft Office Excel® e a análise estatística descritiva e inferencial foi realizada no programa IBM® SPSS® Statistics 19.
Resultados
Dos 157 cuidadores inicialmente identificados, foram excluídos 71 segundo os critérios de exclusão definidos, 22 por falecimento do utente durante a realização do estudo, 12 por se encontrarem institucionalizados e 44 por recusa dos cuidadores em participarem. Os utentes dependentes apresentam uma idade média de 80,2 anos, máximo de 98 e mínimo 23, sendo a maioria do sexo feminino (66,2%). Em relação ao grau de dependência, a média do resultado da escala de Barthel é de 41,2 pontos (Fig. 1). As patologias que causam com maior frequência a dependência do doente enquadram-se, segundo a classificação Internacional de Cuidados de Saúde Primários - ICPC-2, nos capítulos K “aparelho circulatório” (31,6%), P “psicológico” (28,9%) e L “sistema musculoesquelético” (15,8%). A distribuição das patologias por todos os capítulos encontra-se disponível na Fig. 2.
A média de idades dos cuidadores é de 53,9 anos, estando compreendidas num intervalo entre 28 e 87 anos. A grande maioria são do sexo feminino, com uma percentagem de 87,3% do total. A escolaridade mais frequente foi a conclusão do 1º ciclo (40,8%), no entanto é importante salientar que 9,9% frequentaram o ensino superior. Relativamente à classificação social, pertencem maioritariamente ao grupo III do Graffar. Todos os cuidadores apresentam alguma relação de parentesco com o utente, sendo que 50,7% eram o filho/filha do utente e 28,2% cônjuge. A prevalência de depressão foi reportada por 33,8% dos cuidadores.
A maioria desempenhava o papel de cuidador há 2-5 anos (35,2%) e 5-10 anos (33,8%). O desempenho desta função corresponde a 24 horas por dia em 63,4% dos cuidadores estudados. A maioria dos cuidadores não tem qualquer apoio nas tarefas associadas (62%), sendo que nos casos em que este existe, a higiene foi o tipo de apoio mais reportado (76,9%).
Após aplicação da escala de Zarit, verificou-se que em 39,4% dos casos o grau de sobrecarga para os cuidadores era categorizado como “intensa” e em 28,2% como “ligeira”, perfazendo um total de 67,6% dos cuidadores com sobrecarga (Fig. 3).
Há relação estatisticamente significativa (p=0,001) entre o grau de sobrecarga dos cuidadores e a existência de depressão. Por outro lado, não se verifica uma relação estaticamente significativa entre o grau de dependência e o grau de sobrecarga (p=0,977).
Discussão e Conclusão
De modo a promover a adesão, os autores optaram pelo envio de carta e contacto telefónico individual com os cuidadores. No entanto, uma limitação deste estudo prende-se com a recusa de participação em 28% dos casos. Uma sugestão de melhoria passaria por pedir apoio a cada Médico de Família para realizar a abordagem inicial, uma vez que a relação de confiança previamente existente poderia melhorar a adesão.
Optou-se pela escala de Zarit, uma vez que esta tem o objetivo concreto de avaliar a sobrecarga dos cuidadores, sendo as perguntas mais direcionadas para perceber o impacto psicológico e social que a função como cuidador tem na sua vida e também perguntas específicas sobre a relação cuidador e pessoa dependente. Trata-se de um instrumento validado para a população portuguesa e foi utilizada nos principais estudos de investigação realizados em Portugal sobre este tema. No entanto, comparativamente à versão reduzida do Questionário de Avaliação da Sobrecarga do Cuidador Informal (QASCI) apresenta desvantagem de ser mais moroso na sua aplicação.
As causas de dependência dos utentes seguidos em domicílio são maioritariamente de etiologia cardiovascular, psicológico e osteoarticular (percentagem cumulativa >50%). Embora não se possa extrapolar diretamente, uma vez que neste estudo não foram analisados subgrupos de patologias do ICPC-2, estes resultados parecem ir de encontro ao observado previamente num estudo em que os principais determinantes de incapacidade nos idosos dependentes foram demência, acidente vascular cerebral e fratura do fémur.8
Neste estudo, a maioria dos cuidadores são mulheres e apresenta um grau de parentesco próximo com o utente. Estes dados correspondem à realidade descrita em outros estudos realizados anteriormente em Portugal.9,10
O grau de sobrecarga do cuidador encontrado também é sobreponível ao referido num estudo prévio, em que a maioria apresentava algum nível de sobrecarga.9) De acordo com a literatura, a existência de qualquer tipo de apoio, mesmo que de forma esporádica, aumenta positivamente a qualidade de vida do cuidador.5 Neste estudo, foi relatado pela maioria dos cuidadores não ter qualquer tipo de apoio nas tarefas desempenhadas, o que pode contribuir diretamente para explicar o nível de sobrecarga encontrado.
A existência de uma associação estatisticamente significativa entre a sobrecarga e o diagnóstico de depressão, indica que a utilização da escala de Zarit pode ser uma forma útil para identificar os cuidadores em risco de depressão. Uma das limitações para a interpretação desta associação é o facto de a existência de depressão ter sido obtida por resposta direta do cuidador, sem consulta ao processo clínico ou aplicação de alguma escala.
Neste grupo de cuidadores estudados não se encontrou relação estatisticamente significativa entre o grau de dependência e a sobrecarga do cuidador, tal como se verificou em outros dois estudos.9,10 Uma das explicações possíveis passa por algumas doenças não provocarem um grau de dependência física no início da sua história natural, permitindo ao doente manter a maioria das suas atividades de vida diária. Desta forma, a escala de Barthel pode subvalorizar o grau de dependência global de um utente.
O processo de sobrecarga é algo que resulta de um contributo multifatorial. Além das variáveis estudadas, outros fatores podem contribuir para a existência de sobrecarga do cuidador com a resiliência do cuidador, o contexto familiar, a relação prévia entre cuidador-dependente, a existência de experiência anterior do cuidador ou expectativa de vida do doente. Assim, são necessários novos estudos para averiguar o verdadeiro impacto de cada um destes elementos na relação entre doente e cuidador.
Face aos resultados apresentados, e tendo em conta as implicações biopsicossociais sobre os cuidadores informais, é crucial haver uma intervenção multidisciplinar, quer ao doente, quer ao cuidador, sendo necessário articular desde cedo os cuidados do médico de família, enfermeiro de família e outros profissionais de saúde como assistente social, psicólogo ou fisioterapeuta, sempre que clinicamente justificável. Várias medidas podem ser implementadas por iniciativa governamental ou autárquica, de modo a tentar diminuir a prevalência deste problema. De forma complementar, é importante em cada consulta serem transmitidas várias medidas preventivas, como incentivar a intersubstituição entre vários elementos da família, sensibilizar para a realização de atividades promotoras da saúde mental e o ensino sobre a identificação precoce de sintomas relacionados com a sobrecarga.
A aplicação da escala de Zarit poderá fazer parte da rotina durante uma visita domiciliária, de modo a estratificar os cuidadores que beneficiam de forma mais sustentada do desenvolvimento de atividades preventivas estruturadas para a promoção da saúde mental. É essencial o médico de família conhecer os meios e apoios que estão ao alcance para apoiar o cuidador nas suas tarefas, uma vez que pode aumentar substancialmente a sua qualidade de vida.