Introdução
As alucinações musicais (AM) são fenómenos alucinatórios auditivos que, apesar de infrequentes, despertam interesse crescente na comunidade médica. Ainda assim, não está estabelecida nenhuma abordagem terapêutica, e isto porque as AM são entidades multifatoriais e as publicações alusivas a este tema são escassas.
As AM podem ser divididas em dois grupos. Quando associadas a alterações orgânicas designam-se como sintomáticas. 1 Os fatores etiológicos descritos incluem lesões neurológicas focais, epilepsia, perturbação psiquiátrica e efeitos secundários/ intoxicações farmacológicas. (1-4 Na maioria dos casos não existe uma causa orgânica identificável, com a exceção da hipoacusia. Nestas situações estamos perante AM idiopática (AMI), muitas vezes intitulada de Charles-Bonnet auditivo. (5,6 As AM podem apresentar-se sob a forma de ritmos, melodias e músicas com ou sem componente vocal 1 e habitualmente estão associadas a angústia severa, induzindo níveis de stress elevados que podem despoletar uma perturbação ansiosa e/ou depressiva. As AM têm um grande impacto na qualidade de vida, levando frequentemente a hipoprosexia, insónia e medo de estar a enlouquecer ou a desenvolver uma doença neurodegenerativa. (1
Apesar do desconhecimento relativo ao prognóstico e da inexistência de um protocolo de abordagem, têm sido propostas várias intervenções. A abordagem não farmacológica incide sobre a psicoeducação do doente e familiares. Alterações do estilo de vida, tranquilização e explicação da natureza da AMI, otimização da acuidade auditiva e modificações comportamentais 1 são algumas das propostas. A solidão pode ser um fator importante e, consequentemente, promover a socialização pode ser benéfico. Todas as intervenções farmacológicas da AMI são off-label, e mesmo quando mantidas por tempo suficiente e em níveis plasmáticos adequados, a AMI é refratária à maioria desses tratamentos. (7
Este relato de caso visa a partilha de experiências na intervenção terapêutica e gestão de uma AMI visando a promoção da autonomia e a qualidade de vida do doente.
Caso Clínico
Observamos em contexto de consulta programada numa Unidade de Saúde Familiar uma doente do sexo feminino de 84 anos, com 4 anos de escolaridade, totalmente independente nas atividades de vida diárias. Casada e habitava com o marido, do qual era cuidadora desde 2019. Como antecedentes médicos apresentava hipertensão arterial, dislipidemia, bócio multinodular da tiroide, insónia e patologia osteoarticular degenerativa, para os quais estava medicada com perindopril 4 mg/dia, pravastatina 40 mg/dia e lorazepam 2,5 mg/dia. Apresentava também hipoacusia bilateral e acufenos, tendo sido acompanhada em consulta de Otorrinolaringologia em 2017 onde, apesar de incumprimento por má adaptação, foi prescrita prótese auditiva.
Numa das observações, a doente revelou queixas de exaustão, humor deprimido com afetos lábeis, anedonia e alteração do padrão de sono, tendo sido diagnosticada com episódio depressivo major e iniciado tratamento com sertralina 50 mg/dia em titulação. Duas semanas depois, recorreu à consulta de urgência referindo que 4 dias após a instituição da sertralina começou, de forma abrupta e intermitente, a ouvir músicas da sua infância ao longo do dia, estando estas ausentes no período noturno.
Pelas queixas apresentadas optou-se inicialmente por instituir 25 mg de quetiapina à noite, que a doente suspendeu por sua iniciativa por manutenção da insónia. Recorreu a nova consulta tendo sido introduzida olanzapina 5 mg à noite e suspendida sertralina 50 mg. Duas semanas depois, por ausência de melhoria, suspendeu a toma de olanzapina e reintroduziu o tratamento com sertralina 50 mg.
A utente apresentou desde o início do quadro crítica para a natureza irreal das suas experiências auditivas, tendo consequentemente receio de enlouquecer. Em nenhuma das observações realizadas foi possível apurar interpretações delirantes. A doente não apresentava antecedentes psiquiátricos relevantes nem história de abuso de substâncias. Ao exame neurológico não apresentava alterações de relevo e, para exclusão de causas não psiquiátricas, realizou-se estudo analítico com hemograma, função renal, função hepática, função tiroideia, ionograma, glicemia, serologias de hepatite B, C, VIH, VDRL, cortisol e doseamento de cobre, todos com resultados dentro dos valores normais. Foi também realizado tomografia computorizada cranioencefálica (TC-CE) que se revelou sem alterações e eletroencefalograma (EEG) que revelou atividade paroxística focal parietal direita. Por este motivo foi pedida colaboração de Neurologia, onde após observação e estudo foi descartada a presença de atividade epileptiforme.
Paralelamente à abordagem farmacológica foi iniciada uma abordagem psicoterapêutica com ênfase na psicoeducação, incentivando a socialização, saídas frequentes de casa e realização de atividades prazerosas. Sugeriu-se ainda a utilização de rádio em períodos de maior solidão para obtenção de estímulo auditivo e reforço do uso adequado da prótese auditiva. Com o cumprimento destas medidas a utente apresentou melhoria progressiva da intensidade da AMI, assim como dos sintomas depressivos. Por incapacidade de manutenção dos cuidados no domicílio, houve a necessidade de institucionalizar o marido, contribuindo para uma melhoria significativa da qualidade de vida da doente, com extinção da exaustão emocional sentida e impacto positivo a nível tímico.
Após 6 meses de acompanhamento, onde foram realizadas cinco consultas presenciais e três consultas via telefónica, sempre em contexto comunitário, observou-se uma remissão sintomática e por isso foi descontinuada a toma de sertralina, mantendo a doente AMI de intensidade reduzida e consequente melhoria da qualidade de vida.
Discussão
Este relato de caso ilustra um quadro sugestivo de AMI, apresentando a doente alterações do humor e défice auditivo, duas comorbilidades descritas com frequência nesta entidade nosológica. Apesar de existir uma relação temporal entre o início da sertralina e os sintomas, optou-se por manter esta terapêutica uma vez que não houve remissão após a interrupção inicial e ao mesmo tempo, os sintomas depressivos tinham um impacto significativo na funcionalidade da doente.
A AMI é uma entidade cuja fisiopatologia não se encontra esclarecida, teorizando-se o efeito de libertação do córtex auditivo, comum em doentes com hipoacusia. Nestes, a ausência de input cerebral originaria um “síndrome de desconexão”, com reprodução de estímulos auditivos previamente armazenados (Charles Bonnet auditivo). (8,9 Por outro lado, pode ocorrer também uma libertação da área de atividade musical por redução dos mecanismos normais de inibição, podendo a patologia depressiva propiciar esta apresentação. (10
A doente relatada apresentava hipoacusia com vários anos de evolução, com fraca adaptação ao uso de prótese auditiva, bem como um episódio depressivo major de início recente, motivos que podem ter despoletado o início da AM.
Após exclusão de causas não psiquiátricas foi necessário tratar as patologias co-mórbidas identificadas que poderiam contribuir para os sintomas. Assim, procedeu-se à otimização do uso da prótese auditiva e iniciou-se esquema terapêutico com psicofármacos para obter remissão dos sintomas do humor. Com o objetivo de uma abordagem biopsicossocial, integrou-se uma componente psicoterapêutica onde foi fundamental o estabelecimento de uma relação terapêutica de confiança. Procedeu-se inicialmente à promoção do reconhecimento das alterações psicopatológicas, enquadrando-as nas diversas vivências do dia a dia e as repercussões que estas podem ter na AMI, aumentando assim a crítica para a doença. Numa segunda fase foram trabalhados diferentes mecanismos e comportamentos que poderiam influenciar o curso e impacto da AMI.
Dada a escassez de literatura nesta área e a inexistência de protocolos estabelecidos, as estratégias utilizadas tiveram por referência descrições de casos clínicos semelhantes de AMI, nos quais a gestão terapêutica passou por estratégias cognitivo-comportamentais como o uso de música ambiente, som de televisão ou ruído branco. (11,12
Neste caso clínico somos da opinião que foi fundamental conjugar todos estes fatores para a melhoria clínica da doente, pois não só nos permitiu reforçar os seus mecanismos de coping, mas também realizar intervenções na família e comunidade, reduzindo significativamente o sofrimento da utente.
Conclusão
Através deste relato de caso conseguimos inferir a possível reabilitação e consequente melhoria da qualidade de vida de um doente com AMI usando sobretudo abordagens não farmacológicas.
A AMI é um diagnóstico de exclusão, existindo atualmente poucos estudos sobre o tema, na sua maioria relatos de caso como o apresentado pelos autores. Exemplo disso, é o facto de desde 2020 terem sido publicados na plataforma PubMed apenas 36 artigos sobre alucinose musical, em grande parte secundários a patologias de base. Dada a escassez de literatura nesta área e a inexistência de protocolos estabelecidos e aprovados neste tipo de procedimento, a abordagem descrita baseou-se na aplicação de algumas técnicas descritas para o controlo sintomático. (10-12 Este relato de caso apresenta por isso limitações pela subjetividade dos procedimentos aplicados. Outra limitação que importa referir, é a ausência de uma comunicação efetiva entre as diversas especialidades responsáveis pelo seguimento da doente, sendo neste caso o acompanhamento feito apenas por Psiquiatria e Medicina Geral e Familiar. Apesar de na maioria dos casos reportados o seguimento ser unidisciplinar, alguns artigos mais recentes mostram que um acompanhamento multidisciplinar poderá ter um impacto favorável no prognóstico. (13
Posto isto, consideramos que é necessária mais investigação para estabelecimento de protocolos validados nesta área.