Introdução
Os primeiros casos de síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) foram reportados em 1981 e desde aí que o vírus da imunodeficiência humana (VIH) se tornou um dos maiores desafios da saúde pública, tendo-se tornado a pior pandemia do século XX. Estudos epidemiológicos do final do ano de 2021 demonstraram uma prevalência global de 38,4 milhões de adultos e 1,7 milhões de crianças com o diagnóstico de VIH/SIDA. (1 Em Portugal, segundo dados de outubro de 2022, foram registados 1803 novos casos referentes a diagnósticos de infeção por VIH ocorridos nos anos de 2020 e 2021, o que corresponde a uma taxa média de diagnósticos para o biénio de 8,7 casos por 105 habitantes. Em 27,6% dos novos casos, os indivíduos tinham idades superiores a 50 anos. Apesar da tendência decrescente de incidência de VIH e SIDA em Portugal, o país continua a destacar-se pelas elevadas taxas entre os países da Europa Ocidental. (2 Numa fase inicial, até 60% dos infetados com VIH não desenvolvem sintomas e os restantes têm um quadro semelhante a uma infeção vírica. Posteriormente, segue-se uma fase de latência com relativa estabilidade clínica e ausência de sintomatologia. Apesar disso, os linfócitos T CD4 vão diminuindo progressivamente até valores inferiores a 200 células/µL, condicionando um estado de imunodeficiência severa. Assim, a definição de SIDA consiste numa contagem de linfócitos T CD4 inferior a 200 células/µL ou na presença de uma doença definidora de SIDA. As doenças definidoras de SIDA ocorrem associadas ao estado de imunossupressão e incluem infeções oportunistas e certas neoplasias. Estas doenças são muitas vezes graves e podem ser fatais. (3 Assim, após o desenvolvimento de SIDA, o prognóstico é pior, tendo o diagnóstico precoce e o tratamento atempado um papel crucial ao impedir ou retardar o desenvolvimento da doença.
De acordo com a Circular Normativa nº 058/2014 da DGS, é competência do médico de família efetuar o rastreio do VIH na população adulta com idades compreendidas entre os 18 e 64 anos, sendo que, na ARS Norte, o cumprimento deste rastreio é baixo. (4,5 Por outro lado, a pandemia COVID-19 impediu e atrasou o diagnóstico de inúmeras patologias, incluindo do VIH, tendo imposto uma reorganização dos serviços de saúde e dificultando o acesso aos cuidados de saúde primários por causa da redução do número de consultas presenciais. (6
Caso Clínico
Apresentamos o caso de uma mulher de 60 anos, com antecedentes pessoais de depressão, insónia e infeção por COVID-19. Observada em consulta aberta por epigastralgia e ageusia, associadas a anorexia e perda ponderal de 5 kg, correspondente a 9% do seu peso habitual, com três meses de duração, sem outra sintomatologia acompanhante. Colocou-se como principal hipótese de diagnóstico a presença de úlcera ou neoplasia gástrica, tendo sido requisitados estudo analítico e endoscópico, ecografia abdominal e radiografia do tórax.
Do estudo analítico requisitado, verificou-se uma leucopenia ligeira (leucócitos 3,8x10^3/μL,) e um aumento da desidrogenase láctica (LDH 277U/L). Nos restantes exames evidenciou-se uma volumosa hérnia de hiato de cerca de 12 cm, sem outras alterações. Foi pedida uma tomografia computorizada toraco-abdominal e agendada consulta, que não chegou a ocorrer.
Cerca de dois meses depois, a doente dirigiu-se ao serviço de urgência do hospital da residência por agravamento da sintomatologia, associado a início de dispneia, confusão temporoespacial e alteração da fala. Os exames complementares aí realizados revelaram não só serologia VIH positiva, como também pneumonia por Pneumocystic jirovecci e linfoma primário do sistema nervoso central. A doente iniciou tratamento com terapia antirretroviral, sulfametoxazol+trimetroprim, dexametasona e radioterapia.
Dois meses mais tarde, deu reentrada no serviço de urgência por alteração do estado de consciência e agravamento do quadro, tendo posteriormente falecido.
Discussão
Este caso clínico pretende alertar para a importância da pesquisa do VIH face à presença de sintomas constitucionais, bem como alertar para o seu rastreio precoce, devendo o médico de família ativamente questionar fatores e situações de risco. Segundo a Norma 058/2011 - atualização 12/2014, o rastreio de VIH deve ser realizado em todos os indivíduos com idades compreendidas entre 18-64 anos, pelo menos uma vez na vida, mesmo que sem fatores de risco apurados. 4 Neste caso, a doente apresentou sintomatologia já numa fase avançada da doença, sendo que, aquando do diagnóstico do VIH, foram também diagnosticadas duas doenças definidoras de SIDA: pneumonia por Pneumocystic jirovecci e linfoma primário do sistema nervoso central.