Breve introdução à saúde mental na infância e na adolescência
A infância e a adolescência representam períodos críticos no desenvolvimento psíquico humano. Nestas fases, adquirem-se muitas das competências de aprendizagem cognitiva e afetiva para a interação e integração social, autocontrolo, regulação e inteligência emocionais.
Crescer num ambiente familiar saudável e seguro, sob modelos equilibrados de parentalidade, apoiantes e compreensivos, e em ambiente escolar positivo e propício à aprendizagem e estabelecimento de relações interpessoais favoráveis com os pares são fatores decisivos e protetores para o bem-estar psicológico e estruturação de uma mente sã.1 Contrariamente, a exposição precoce a eventos adversos de vida, constitui um importante fator de risco para o desenvolvimento de psicopatologia a curto, médio ou longo prazo.
Acresce, nas situações de risco e/ou aparecimento de doença, a ausência de resposta clínica atempada, que poderá contribuir para maior gravidade e cronicidade psicopatológica, e aumento de comorbilidades psiquiátricas. Assim, no âmbito da promoção de saúde mental e prevenção de doença, importa assegurar respostas sociais adequadas, a par de cuidados de saúde especializados atempados.
Necessidades dos cuidados de saúde mental infantojuvenil
Tem-se assistido a um aumento crescente na procura de cuidados de Saúde Mental da Infância e da Adolescência, mais manifesto desde a pandemia de COVID-19, em 2020, incluindo aos serviços de urgência pedopsiquiátrica, traduzindo um aumento global de problemáticas psíquicas e de doença mental, nestas faixas etárias, em Portugal.2 Infelizmente, a resposta a nível nacional é, ainda, globalmente insuficiente, especialmente quando comparada com outras áreas médicas, apesar da compreensão científica e económica crescente, nesta área. De facto, o investimento governamental e ministerial na Saúde Mental da Infância e da Adolescência (SMIA), no SNS, não supre as necessidades dos nossos doentes, apresentando-se muito alicerçada na ainda reduzida literacia global em saúde mental, apesar do conhecido impacto pernicioso da doença mental sobre os custos económicos e sociais do país. Uma consequência reconhecida desta falha nos sistemas de saúde é o aumento contínuo da prevalência de doenças mentais em crianças e adolescentes, como as perturbações depressivas, as perturbações de uso de substâncias e os comportamentos suicidários.3
Face a este aumento nas necessidades de cuidados de saúde mental, importa promover um aumento do número de pedopsiquiatras e de profissionais especializados na área, uma resposta clínica mais adaptada e orientada destes serviços para as necessidades observadas, a promoção da investigação na área, a integração eficaz e aprazada de novas abordagens preventivas e terapêuticas na prática clínica, bem como, melhoria na implementação de políticas e estratégias de planos de ação em saúde mental da infância e da adolescência.
Urge um maior investimento na formação de profissionais especializados na área, e na contratação destes profissionais em serviços de saúde mental, em todas as valências interdisciplinares necessárias. A expansão da resposta nos serviços de SMIA deverá passar não apenas pela formação de novos pedopsiquiatras, mas também pela otimização de recursos clínicos e educativos já existentes, nomeadamente os Cuidados de Saúde Primários (CSP), pediatras, enfermeiros especializados e professores e outros. Destaca-se a importância particular dos CSP, e da necessidade de manter esta articulação em proximidade, devendo os serviços de SMIA assegurar a consultoria da especialidade de pedopsiquiatria junto dos CSP, privilegiando esta articulação, e permitindo não apenas que a resposta hospitalar seja mais otimizada e dirigida aos casos mais graves, mas também que esta articulação tenha uma função preventiva e de intervenção direta, nas situações menos complexas clinicamente.4
O financiamento de políticas de prevenção e saúde pública, em saúde mental, é frequentemente visto como um desvio de recursos diretos para indivíduos já diagnosticados com doença mental. Contrariamente ao observado noutras áreas médicas, as políticas de prevenção em saúde mental são frequentemente vistas como tendo reduzido benefício, quando, na verdade, estas medidas oferecem valor inestimável a longo prazo, ao minimizarem os custos e a necessidade vindoura de cuidados de saúde mental.5 Assim, a captação de recursos adicionais para a SMIA exigiria a prática de políticas de saúde robustas e, também, de apoio político nesta área. No entanto, talvez até mais do que as considerações económicas, o estigma ainda muito associado à saúde mental poderá justificar a persistência do desinvestimento contínuo observado nos serviços de SMIA, defraudando não apenas a limitação de recursos disponíveis, mas também a procura e acesso aos cuidados de saúde mental, por parte dos jovens e das suas famílias, particularmente para indivíduos que apresentem risco social e/ou económico.3
Implicações clínicas e sociais sobre a saúde mental
Apesar do paradigma nacional sugerir um mais recente redireccionamento para a mudança, todavia tímida, a carência dos serviços de Saúde Mental é ubíqua nas unidades e centros hospitalares nacionais, ao que acresce a centralização dos profissionais nos grandes centros urbanos e a sustentada escassez destes, no Serviço Nacional de Saúde (SNS), predominantemente em áreas rurais, do interior ou a sul do país.6,7
A falha em responder às necessidades de saúde mental dos jovens é transversal às diferentes modalidades assistenciais em pedopsiquiatria, em contexto de ambulatório, de internamento agudo ou em tratamentos a mais médio prazo, como em cuidados continuados. Em muitos hospitais, a pressão administrativa para a resposta a curto prazo de pedidos de primeiras consultas poderá, por vezes, ser assegurada a custo da impossibilidade de acompanhamento subsequente adequado.
Sucessivamente, a ausência no acompanhamento regular e precoce dos casos clínicos promove o agravamento do quadro psicopatológico, traduzindo-se em mais agudizações, mais desenvolvimento de comorbilidades e maior cronicidade, contribuindo para o aumento da população de adultos com psicopatologia, mais sofrimento e disrupção pessoal, familiar, social e profissional, e consequentemente no reforço da sobrecarga de custos económicos para o estado.8
Em Portugal, a resposta terapêutica em regime de internamento de PIA apresenta-se insuficiente há vários anos, existindo apenas quatro locais de internamento pedopsiquiátrico em regime de agudos, em Lisboa (duas unidades), Coimbra e Porto, denotando-se a total ausência destes regimes de internamento em toda a região a sul do rio Tejo, bem como a norte da cidade do Porto. Esta resposta limitada torna-se particularmente preocupante considerando a existência de aproximadamente 1,8 milhões de jovens, em Portugal, dos quais cerca de 0.7-1 milhão serão adolescentes,9 existindo apenas 44 camas de internamento completo pedopsiquiátrico, a nível nacional.
Paralelamente, também os regimes de internamento pedopsiquiátrico não agudo, residencial, de jovens são notoriamente escassos, em Portugal, particularmente, regimes mais especializados de cuidados continuados, que se destinam à reabilitação psicossocial e terapêutica de crianças e jovens. Aqui, destacam-se as Residências de Treino e Autonomia, que se concretizam numa única residência em todo o país: a unida-de RECOVERY. Localizada em Barcelos, esta unidade destina-se a jovens dos 11 aos 17 anos de idade que apresentem perturbação mental grave com reduzida ou moderada incapacidade psicossocial, e necessidade de abordagem terapêutica a médio-longo prazo, contando com apenas sete vagas nacionais, ficando muito aquém das necessidades da realidade portuguesa.10,11
A montante da dimensão clínica, ergue-se outra agravante: a insuficiência de uma resposta social especializada, particularmente para crianças e jovens institucionalizados que constituem casos clínicos mais fragilizados a nível sociofamiliar e de saúde mental.
Apesar da institucionalização se tratar de uma medida protetora, a literatura tem-nos sugerido que este recurso residencial poderá ter um impacto traumático no desenvolvimento da criança.12 Muitas das crianças e jovens institucionalizadas tiveram o seu desenvolvimento pautado por privações emocionais, problemáticas relacionais com cuidadores, e diferentes eventos adversos físicos e psicológicos, promotores de marcada disfuncionalidade intrapsíquica e interpessoal.
Todos estes fatores contribuem para a edificação de uma população distintamente vulnerável, pautada por importante carência afetiva e medo de abandono e rejeição. Estes fatores poderão interferir com o estabelecimento de novas relações afetivas, de confiança, tornando a integração e sentimento de inclusão destes jovens mais dificultados, em novos contextos sociofamiliares.
Neste sentido, torna-se fundamental que as casas de acolhimento apresentem recursos eficazes na transformação destas perdas, ambicionando oferecer uma estrutura afetiva e sociofamiliar harmoniosa e organizada que nem sempre se verifica. Acresce que algumas crianças e jovens poderão necessitar de uma resposta psicossocial especializada, nomeadamente as Casas de Acolhimento Especializado (CAE), que são, ainda, muito insuficientes. Estas casas destinam-se ao acolhimento, a tempo determinado, de crianças e jovens que necessitem de uma resposta especializada face às suas características ou necessidades específicas, incluindo problemas de comportamento e de saúde mental, onde deverão permanecer apenas pelo tempo estritamente necessário para uma melhor avaliação, construção do seu projeto de promoção e proteção, e resposta à situação que apresentam. Apesar de constituírem uma opção social mais dirigida a estes jovens, as CAE existem ainda em número muito inferior às necessidades nacionais, apresentando tempos de espera para institucionalização de vários meses, resultando na permanência de jovens mais vulneráveis ou instáveis em locais pouco especializados e, portanto, pouco preparados para este acolhimento. Esta falha na resposta social é indiretamente potenciadora de maior instabilidade psicoemocional, e manutenção de estados psicopatológicos crónicos, bem como a desestabilização dos restantes jovens acolhidos.13 A estas problemáticas acresce a rápida ciclagem e curto tempo de permanência de técnicos nas casas de acolhimento social, bem como a integração de técnicos não especializados, em grande parte, promovida pelas baixas remunerações praticadas no sector, bem como pela exigência que o próprio contexto exige. Esta dificuldade em assegurar a continuidade dos colaboradores é, igualmente, um vetor promotor de importante instabilidade psicoemocional, perpetuando sentimentos de abandono e dificuldades na vinculação e no estabelecimento de relações de confiança, que não deve ser desconsiderado.
Primum non nocere: promover, prevenir e proteger
Segundo a Organização Mundial de Saúde, as decisões de planeamento estratégico dos serviços de Saúde Mental deverão basear-se nos dados epidemiológicos do país, que em Portugal constituem uma importante lacuna, resultando em que os cálculos das necessidades populacionais e capacidade de resposta dos serviços nacionais sejam realizados com recurso a estudos internacionais.4 A este facto acresce a carência generalizada de estudos realizados em crianças e adolescentes, como a investigação de fatores genéticos e biológicos sendo algo ainda muito limitado e pouco estudado, comparativamente com os adultos, mas a compreensão do papel destes fatores, de risco e protetores, é indispensável para a implementação de medidas eficazes e de estratégias preventivas de saúde mental. Considerando a elevada variabilidade entre regiões e contextos, a nível nacional, recomenda-se a avaliação de dados epidemiológicos que auxiliem na identificação de fatores pessoais, sociais e ambientais, que possam ser incluídos nestas medidas de intervenção preventiva, reforçando a necessidade de métodos analíticos e obtenção de dados epidemiológicos a nível local, nacional e internacional.14
As crianças e adolescentes representam um grupo particularmente vulnerável para doença mental. Aproximadamente 50% de todas as perturbações mentais surgem antes dos 14 anos de idade, e 75% destas até aos 25 anos de idade.15,16 Seria, portanto, expectável um maior investimento na prevenção de doença e tratamento precoces, o que, contudo, não corresponde a muitas das políticas e cuidados de saúde mental ins-tituídas. A prevenção pode apresentar diferentes níveis de intervenção: (1) Primária (medidas universais, que visam a promoção da saúde), como: boas políticas de saúde mental; psicoeducação e consciencialização pública e profissional em doença mental; criação de centros de autorreferenciação para apoio social e psicológico para jovens; acesso a cuidados de saúde mental; restrição de acesso a meios letais; políticas para redução do consumo de álcool e de outras substâncias; políticas de prevenção de suicídio; abordagem conscienciosas dos meios de comunicação social); (2) Secundária (medidas seletivas, que visam a identificação, diagnóstico e tratamento da doença), através de: intervenção em grupos vulneráveis; programas de guardiões/mentores; acesso a cuidados psicoterapêuticos e a cuidados de saúde mental primários e especializados; formação de profissionais especializados na abordagem à doença mental; linhas telefónicas de apoio psicológico; (3) Terciária (medidas indicadas, que se destinam à melhoria do funcionamento ou diminuição de incapacidade ou morbilidade) como a continuidade de acesso ao tratamento e apoio comunitário, e a avaliação e gestão de perturbações psiquiátricas, particularmente, comportamentos suicidários e uso de substâncias)17; (4) Quaternária (contempla a desmedicalização ou redução iatrogénica associados aos cuidados de saúde, visando a minimização de abordagens danosas, mais do que evitar procedimentos médicos desnecessários,18 devendo respeitar os princípios clínicos éticos de Beauchamp & Childress do respeito pela autonomia, beneficência, não-maleficência e da justiça, visando proteger os doentes.19) Nos serviços de saúde mental, no âmbito da prevenção quaternária e minimização da iatrogenia, a fadiga, saturação e o número ainda reduzido dos profissionais de saúde mental especializados, no SNS, bem como de outros técnicos especializados nesta área, poderá aumentar o risco de recurso a medidas coercivas, em contexto de urgência ou de internamento, como a contenção física ou o isolamento de doentes, que deverá ser reservado como recurso de última linha para a segurança do próprio e de terceiros, quando todas as opções menos restritivas tiverem sido exploradas. As agências reguladoras têm apelado à redução das medidas coercivas, advertindo para os riscos inerentes e consequências negativas destas práticas, nomeadamente a evocação de memórias traumáticas prévias e aumento de sintomas-alvo.20 Pacientes internados têm descrito a experiência de isolamento enquanto promotora de sentimentos de vulnerabilidade, negligência e abuso, dissociação da experiência e perceção de que esta fora danosa para a sua saúde mental.20 Mais ainda, o facto destas medidas serem sentidas como coercivas poderá, também, interferir no estabelecimento das relações terapêuticas com os profissionais envolvidos, minimizando a eficácia das intervenções. Por outro lado, uma interação terapêutica de qualidade também poderá ser protetora na forma como a coerção é sentida, reduzindo os seus efeitos negativos.21
Ainda assim, a aplicação destas medidas parece ocorrer sobretudo em unidades psiquiátricas de crianças e adolescentes, e apesar de muito polémico, esta é ainda uma prática recorrente, a nível mundial. Sabemos que as crianças poderão ser colocadas em isolamento ou subjugadas a medidas de contenção em até 6 vezes mais do que os adultos. A percentagem de jovens submetidos a estas medidas varia drasticamente, mas em alguns contextos psiquiátricos poderá atingir taxas tão altas como 60% dos doentes.22
Apesar das medidas coercivas constituírem ainda um recurso contemporâneo, tem-se assistido a uma mudança no paradigma dos cuidados de saúde mental, em jovens e adultos, sendo notória a transição de uma abordagem mais paternalista e diretiva, para um maior enfoque nos direitos humanos, autonomia do doente e consentimento informado, da qual é apogeu a nova lei de saúde mental, n.º 35/2023 de 21 de julho. Neste novo documento, no âmbito da política de saúde mental, é reforçada a ideia de que a prestação de cuidados de saúde mental deva ser realizada em ambiente o menos restritivo possível, frisando a decisão de internamento hospitalar como medida de último recurso (Capítulo II, Artigo 4.º). As medidas coercivas são, também, contempladas nos Direitos e Deveres do doente (Capítulo III, Artigo 8.º), tendo sido introduzido o direito do doente de não ser submetido a medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos, exceto em termos específicos previstos na presente lei.23
Independentemente da evolução clínica, os princípios éticos da autonomia, consentimento, limites e princípio da não maleficência mantêm-se imutáveis, mas foram os contextos e a confrontação dos profissionais com estes princípios que se tornaram mais emaranhados.
Estas considerações éticas são particularmente mais intricadas quando aplicáveis a menores de idade, tanto pelas particularidades legais, como pelas diferenças a nível do desenvolvimento cognitivo, físico, psicoemocional, afetivo ou social, e as suas disparidades devem ser enquadradas num contínuo desenvolvimental, particularmente na Pedopsiquiatria, em que se levantam diferentes questões de confidencialidade e autonomia.24
Conclusão
A Saúde Mental tem sido uma área em crescente exposição global, tendo tido uma projeção gradualmente mais notória após o impacto da pandemia por COVID-19, em 2020. Desde então, tem-se assistido a um aumento significativo da procura de cuidados de Saúde Mental, particularmente em crianças e adolescentes, cuja resposta se apresenta ainda insuficiente para as necessidades da nossa população. A saturação dos serviços de saúde e de serviços sociais, bem como a ausência de recursos humanos, de espaço físico hospitalar, de escassez de serviços especializados, e da resposta social insuficiente constituem fatores de risco na resposta otimizada aos nossos doentes, e consequentemente no agravamento psicopatológico dos jovens, manutenção de estados disfuncionais e cronicidade de perturbações mentais na vida adulta.
As políticas de saúde mental devem visar, principalmente, uma abordagem preventiva, promovendo a saúde mental, e posteriormente de tratamento e prevenção da iatrogenia, na qual as medidas coercivas deverão ser evitadas. Importa pensar na tomada de medidas eficazes de melhoria, para a diminuição do recurso a medidas coercivas, que poderá passar por investigar o impacto destas medidas enquanto mecanismo de feedback eficaz, encorajar o envolvimento da família ou figuras parentais, otimizar o rácio staff/doentes, aumentar a capacidade de resposta à crise, desenvolver uma atitude terapêutica global entre equipas relativamente ao cuidado agudo que poderá ajudar a manter a qualidade do cuidado terapêutico e reflexivo, formação e treino das equipas de tratamento, baseado nos princípios terapêuticos, cuidados intensivos, gestão de agressão e de condições médicas, através da utilização de módulos formativos e implementação de abordagens de gestão comportamental proativas.20,22 Apesar de todas as dificuldades e limitações encontradas nos cuidados de SMIA, estes deverão ambicionar promover o respeito e a autonomia do jovem, em ambiente seguro e confiável, assegurando a sua integridade física e psicológica, e que se encontrem em consonância com a nova lei de saúde mental n.º 35/2023.