Introdução
A síndrome de dropped head, ou queda cefálica, surge por fraqueza dos músculos extensores do pescoço ou por aumento do tónus dos músculos flexores. Existe uma vasta panóplia de etiologias associadas a esta síndrome, nomeadamente neurológicas, tais como doenças do neurónio motor, miopatias, neuropatias e miastenia de Lambert-Eaton.1,2
A dificuldade na extensão cefálica pode ser um dos sintomas de miastenia gravis, contudo, a sua apresentação enquanto primeiro sintoma é rara. Atendendo ao impacto na marcha, na execução das tarefas da vida diária e na interação com os outros, esta manifestação clínica afeta significativamente a qualidade de vida dos doentes.
O presente trabalho relata um caso clínico em que a manifestação inicial de miastenia gravis foi a queda cefálica, recordando e reforçando assim a associação entre estas duas entidades.
Caso clínico
Utente do género feminino, 68 anos, com antecedentes pessoais de obesidade e síndrome depressivo. Medicada habitualmente com venlafaxina 75 mg e mirtazapina 30 mg. Em setembro de 2022, a utente recorre a consulta programada com o médico de família por apresentar cabeça caída em flexão cervical e dificuldade na extensão do pescoço e rotação para a direita, com 2 semanas de evolução. Nega traumatismo, episódios prévios e outros sintomas acompanhantes. Numa avaliação inicial e após realização de exame neurológico sumário, não foram detetadas outras alterações associadas. Assim, e perante a suspeita de patologia do foro ortopédico, foi encaminhada ao serviço de urgência de Ortopedia.
Após avaliação pela especialidade e dado não apresentar alterações nos exames imagiológicos solicitados teve alta encaminhada para o médico de família com indicação para utilização de colar cervical para conforto.
Por manutenção do quadro clínico, a doente foi avaliada novamente cerca de 1 mês depois nos cuidados de saúde primários, apresentando sintomatologia de novo. Referia hipofonia e disfagia com sinais de fatigabilidade, agravadas ao final do dia e, concomitantemente, com necessidade de movimentos oculares extremos de forma a observar o meio envolvente. Perante a sintomatologia de novo e a manutenção das queixas iniciais, procedeu-se ao encaminhamento da utente para consulta aberta de neurologia a nível hospitalar.
À observação pela especialidade foi objetivada disartria, hipofonia, disfagia, fraqueza dos movimentos cervicais, especialmente extensão, tetraparésia grau 4/5 e marcha de curtos passos e base alargada, com ligeiro desequilíbrio associado a dropped head. Realizada EMG que demonstrou sinais de disfunção da transmissibilidade neuromuscular do tipo pós-sináptico, envolvendo face, extensores cervicais e membro superior esquerdo distalmente. Colocada a hipótese de provável síndrome miasténico com atingimento bulbar, procedeu-se ao internamento da utente para estudo.
Durante o internamento hospitalar realizou-se estudo etiológico, sendo de salientar a tomografia computorizada (TC) torácica que não revelou alterações e o resultado do anticorpo anti-recetor ACh que foi positivo, confirmando assim o diagnóstico de miastenia gravis. As serologias para VIH, hepatite C e B e sífilis foram negativas. O painel imunológico com anticorpos antinucleares, cardiolipina (IgM e IgG), glicoproteína (IgM e IgG), mieloperoxidase (MPO), proteínase 3 foi negativo.
Contudo, verificou-se positividade para o anticorpo tiroperoxidase e anticorpos para antigénios nucleares extraíveis (ENA) com anti-SS-A positivo.
Realizou ciclo de imunoglobulina intravenosa durante 5 dias e corticoterapia com prednisolona com baixa dose e subida progressiva. À data da alta, e após 17 dias de internamento, a utente apresentava uma melhoria clínica evidente. Ao exame neurológico destacava-se défice de grau 3 na flexão cervical e grau 3+ na extensão cervical e défice grau 4+ global, sem outras alterações de relevo. Para ambulatório foi medicada com piridostigmina 60 mg 4 id e prednisolona 15 mg 1 id.
Em consulta de reavaliação a utente apresentava uma melhoria evidente do seu estado geral, referindo já ser capaz de executar a maioria das suas atividades da vida diária sem grande limitação.
Discussão/conclusão
As alterações da força muscular, e em particular o défice de extensão e/ou flexão cervicais, são achados comuns numa grande pluralidade de doenças neuromusculares. Como resultado, a generalidade dos doentes apresenta queda cefálica, também conhecida como síndrome de dropped head.1 Existe um impacto notável na qualidade de vida dos doentes na medida em que a alteração da força muscular cervical afeta de forma incontestável as tarefas básicas da vida diária, a própria marcha e até mesmo a interação com os outros.
A síndrome de dropped head pode ser uma manifestação de diversas patologias, nomeadamente doenças do neurónio motor, miopatias, neuropatias, miastenia de Lambert-Eaton, entre outras.2 A associação entre a síndrome de dropped head e a mistenia gravis está já descrita na literatura, no entanto, apenas excecionalmente se apresenta como manifestação inicial desta patologia da junção neuromuscular, tal como verificado no caso clínico relatado.3,4 Habitualmente, na miastenia gravis existe uma afeção preferencial dos músculos flexores do pescoço ao invés dos músculos extensores.4 É de crucial importância que a associação entre estas entidades seja reconhecida, atendendo a que, com o tratamento adequado da miastenia é expectável que haja recuperação da força muscular.5 O tratamento com colar cervical tem efeito benéfico limitado.4
Perante todos os doentes que se apresentam com síndrome de dropped head deve realizar-se uma anamnese cuidada e um exame objetivo minucioso, procurando sempre pistas diagnósticas sugestivas de patologia neurológica, nomeadamente miopática, neurogénica e perturbações da neurotransmissão. A semiologia clínica é extremamente importante na avaliação de doentes com suspeita de patologia neurológica, motora e sensitiva, na medida em que permite não só orientar para a realização de exames complementares de diagnóstico adequados, mas possibilita também uma célere abordagem terapêutica com impacto prognóstico. Perante a prática crescente de uma medicina defensiva, importa ressalvar que o excesso de exames complementares de diagnóstico não se traduz apenas em maiores gastos económicos, como também num atraso diagnóstico e terapêutico, nomeadamente nas doenças neurológicas. Assim, importa relembrar, a síndrome dropped head enquanto manifestação inicial de doenças neurológicas e, no caso clínico relatado, especificamente de miastenia gravis.