Introdução
A Cardiologia de Intervenção é uma subespecialidade da Cardiologia dedicada ao estudo hemodinâmico invasivo / angiográfico da doença cardíaca e ao seu tratamento endovascular. As terapêuticas endovasculares surgiram muito depois da própria cirurgia cardíaca e cedo pretenderam dar resposta aos doentes inoperáveis, mas frequentemente evoluíram como tratamento de primeira linha. Ao longo das últimas décadas a Cardiologia de Intervenção tem contribuído para a maior abrangência e acessibilidade dos cuidados de saúde, e o seu impacto é bem visível na mudança da história natural de várias patologias cardíacas.
Uma história de sucesso na medicina moderna
O tratamento do enfarte agudo do miocárdio (EAM) é uma história de sucesso na resposta a uma doença que há 40 anos tinha uma mortalidade de 30% e que significava para muitos dos sobreviventes o fim da sua vida ativa.1 Com a era da angioplastia coronária emergente passou a ser possível salvar miocárdio e preservar a função cardíaca, reduzindo a mortalidade para 5%-7%. Nos últimos 10 anos a adoção generalizada do acesso radial, em detrimento da artéria femoral, tornou a angioplastia ainda mais segura ao reduzir significativamente as complicações hemorrágicas. A própria experiência do doente alterou-se e passámos de uma doença estigmatizante para a dificuldade em justificar um internamento de pelo menos 3 a 4 dias de duração, pois muitos querem regressar ao seu quotidiano quase de forma imediata.
O choque cardiogénico - o próximo campo de batalha
Apesar do sucesso descrito, o EAM continua a ser uma doença mortal sobretudo quando se apresenta na sua forma mais grave - o choque cardiogénico. Mais surpreendente que os seus 40%-50% de mortalidade é o facto de esta pouco se alterar nos últimos 40 anos.2
O desenvolvimento dos dispositivos de assistência ventricular, como o ECMO e o Impella, trouxeram esperança a este campo, mas ainda nos encontramos numa fase de desenvolvimento da tecnologia, para a tornar mais segura; precisamos de compreender como integrar estes dispositivos numa estratégia terapêutica e sobretudo de mais investigação clínica e evidência que justifique a sua utilização sistemática nos doentes adequados. Esta complexidade necessita de uma resposta multidisciplinar e de instituições de elevada especialização. Atualmente é grande a motivação para que a próxima era - a da assistência ventricular, traga o sucesso que tem faltado ao tratamento do choque cardiogénico.
O novo mundo da doença coronária
Há 25 anos a intervenção coronária percutânea era sobretudo angiografia, angioplastia e implantação de stents metálicos. Os stents entretanto evoluíram para plataformas portadoras de fármacos antiproliferativos, como resposta à restenose de stent, e com melhores propriedades mecânicas, tendo uma entrega e implantação mais fácil e adequada, reduzindo assim a trombose
de stent.
Atualmente é a imagem intracoronária, com a utilização da ultrassonografia e a tomografia de coerência ótica, que nos abre campo para um estudo mais avançado da placa aterosclerótica e a possibilidade de otimizar a implantação do stent coronário, melhorando os resultados das intervenções. Para que toda esta informação possa ser integrada e utilizada durante o tempo útil da intervenção, surge agora também a inteligência artificial, já incorporada em algoritmos de decisão que começam a ajudar-nos na melhoria do resultado da implantação de stents coronários.3 Finalmente, depois de uma falsa partida com tecnologias que não vingaram, os stents absorvíveis vão ter uma segunda oportunidade nos próximos anos e esperamos que nos permita ultrapassar uma das limitações atuais, que é a pegada metálica dos stents convencionais e entrar num campo novo - a restauração coronária.
A Cardiologia de Intervenção está também no início do caminho para uma nova dimensão, literalmente - o da microcirculação. Desde há muito que um conjunto grande de doentes com queixas de angina e sem doença coronária nos vasos epicárdicos nos tem confundido e como resposta têm sido esquecidos. A evolução tecnológica permite atualmente o estudo funcional da arvore coronária com a utilização de guias que avaliam a pressão intracoronária. O estudo funcional começou por ser um precioso auxílio na avaliação do significado hemodinâmico das lesões coronárias, mas evoluiu para permitir também o estudo da disfunção da microcirculação. Este é um passo importante para o diagnóstico da doença da microcirculação coronária e para a seleção de doentes, sendo essencial para o desenvolvimento de tratamentos futuros.
A intervenção valvular percutânea
O que parecia impossível tornou-se o novo normal. A implantação percutânea de prótese valvular aórtica - a TAVI, substituiu a cirurgia cardíaca como primeira resposta nos doentes idosos, o grupo onde a estenose aórtica tem maior prevalência.4 A TAVI evita a esternotomia, não necessita de anestesia geral, permite internamentos de curta duração e uma recuperação rápida da atividade diária, pelo que a sua indicação facilmente extravasou o grupo inicial dos doentes inoperáveis. É provável que a evolução tecnológica das próteses percutâneas, e um melhor conhecimento sobre a sua durabilidade, permitam uma progressiva diminuição do limiar etário.
As válvulas auriculoventriculares, a mitral e a tricúspide, são anatomicamente mais complexas e o desenvolvimento das suas respetivas próteses percutâneas tem conhecido dificuldades. Contudo, poucos têm dúvidas que as soluções que estão a surgir não sejam já passos sólidos para que estas sejam uma realidade na prática clínica da próxima década. O que já faz parte do nosso arsenal terapêutico para o tratamento da insuficiência mitral e da insuficiência tricúspide, é a chamada terapêutica edge-to-edge, onde através de um sistema de entrega percutâneo são implantados dispositivos, semelhantes a clips, que aproximam os folhetos valvulares e diminuem o orifício regurgitante. Em doentes com insuficiência mitral funcional o estudo COAPT mostrou mesmo uma maior sobrevida nos doentes tratados com Mitraclip.5 Parte do foco da investigação atual está na correta seleção dos doentes, de forma a otimizar o impacto da intervenção.
Um papel na prevenção do avc
Uma das causas de acidente vascular cerebral (AVC) do jovem é a embolia paradoxal através do foramen ovale patente (FOP). O encerramento percutâneo desta comunicação interauricular previne a recorrência de novos eventos, e a evidência clínica mais recente estabeleceu de forma clara uma relação risco/benefício favorável ao procedimento em doentes selecionados.6
Esta é uma intervenção cuja referenciação tem crescido, e embora seja relativamente simples, tem o desafio de obrigar a uma execução com elevada proficiência e que garanta uma quase ausência de complicações graves nesta população de doentes jovens.
A Cardiologia de Intervenção contribui também para a redução do risco cardioembólico em doentes com fibrilhação auricular e contraindicação para anticoagulação pelo seu risco hemorrágico. Através do encerramento percutâneo do apêndice auricular esquerdo é excluída a principal localização de trombos intra-auriculares, evitando assim a sua formação. Uma proteção semelhante à anticoagulação foi demostrada em vários ensaios clínicos.7 Apesar da evidência acumulada existem ainda barreiras a ultrapassar para vencer a sub-referenciação para este procedimento.
Conclusão
Descreveu-se uma parte considerável da atividade da Cardiologia de Intervenção e do seu potencial de desenvolvimento, mas sem a ambição de fazer uma listagem completa. É importante destacar que este percurso não é feito de forma isolada, mas com uma forte colaboração multidisciplinar e em equipa - o já institucionalizado Heart Team. O trabalho multidisciplinar necessita sempre da partilha de conhecimento e de experiências, ficando aqui este singelo contributo.