Introdução
A diabetes mellitus (DM) é uma doença metabólica crónica complexa que requer cuidados e recursos de saúde a longo prazo. Segundo os dados da organização mundial de saúde, estima-se que, a nível mundial, cerca de 422 milhões de pessoas tenham DM e que esta patologia seja diretamente responsável por cerca de 1,6 milhões de mortes anualmente. Em Portugal, os dados mais recentes apontam para uma prevalência estimada de diabetes na população entre os 20 e os 79 anos em 2021 de 14,1% (correspondente a cerca de 1,1 milhão de indivíduos).1
A prevalência de DM tem aumentado de forma progressiva¨nas últimas décadas, principalmente a custo da DM tipo 2. A nível nacional o impacto do envelhecimento da população resultou num aumento de 2,4 pontos percentuais (p.p.) da taxa de prevalência da diabetes entre 2009 e 2021.1 Paralelamente a esta tendência, tem-se observado também um aumento dos custos com a terapêutica do utente com diabetes, quer para o utente, quer para o serviço nacional de saúde (SNS). O consumo de antidiabéticos continua a aumentar, quer em termos de volume de embalagens vendidas quer de valor.1,2 Os utentes do SNS têm encargos diretos de 33,7 milhões de euros com o consumo de antidiabéticos não insulínicos e de insulinas, representando 8% dos custos do mercado de ambulatório.
Esta representatividade tem-se mantido estável ao longo da última década.1) Surge, neste contexto, a importância da avaliação dos custos com a terapêutica do utente com diabetes e a necessidade de encontrar medidas adequadas para a gestão dos utentes com DM que permitam, simultaneamente, menores custos e melhor controlo. Este trabalho teve como principal objetivo avaliar e melhorar os custos com a terapêutica do doente com DM controlado numa unidade de saúde familiar (USF) suburbana.
Material e métodos
Trata-se de um estudo de garantia e melhoria contínua da qualidade de dimensão técnico-científica, com duração de 10 meses. A avaliação inicial foi realizada em maio de 2019 (com dados referentes a abril de 2019), uma segunda avaliação em novembro de 2019 (com dados referentes a outubro de 2019) e a avaliação final em março de 2020 (com dados referentes a fevereiro
de 2020).
A população em estudo incluiu todos os utentes inscritos na USF com diagnóstico de diabetes mellitus, definido pela presença dos códigos T89 ou T90 da classificação internacional de cuidados de saúde primários 2 (ICPC-2) na lista de problemas ativos do registo individual. Foram excluídos os utentes falecidos e as transferências de unidade durante o período em estudo.
As duas principais variáveis analisadas foram os custos com a terapêutica do doente com diabetes e os custos com a terapêutica do utente com diabetes controlado. O custo foi definido pela despesa média com a terapêutica antidiabética, agulhas de distribuição de glicemia e tiras de glicemia do doente com diabetes. Foram considerados como controlados os utentes com diabetes com última hemoglobina glicada (HbA1c) igual ou inferior a 8%, tal como definido no Bilhete de Identidade dos Indicadores dos Cuidados de Saúde Primários.3) Outras variáveis analisadas incluíram: número de utentes com diagnóstico de DM e proporção de utentes com DM e última HbA1c ≤ 8%.
Os dados foram obtidos através do módulo de informação e monitorização das unidades funcionais (MIM@UF®) e do sistema de monitorização das administrações regionais de saúde (SIARS®). A análise descritiva dos dados foi realizada utilizando o Microsoft office excel®.
Uma vez que este estudo incide em alterações dos custos de terapêutica, os investigadores optaram por não definir padrões de qualidade. Foi definido pela equipa como objetivo a obtenção de uma redução de custos dos utentes com diabetes controlados, associada a uma melhoria do controlo dos utentes com diabetes, avaliada pelo aumento da proporção de doentes com diabetes com HbA1c ≤ 8%.
Foram realizadas duas intervenções de caráter educacional. A primeira, em maio de 2019, consistiu numa apresentação teórica realizada na USF, de acordo com as recomendações da sociedade portuguesa de diabetologia para o tratamento da hiperglicemia na DM tipo 2.4 Esta medida teve como alvo a equipa médica e de enfermagem e o seu principal objetivo era a promoção da melhoria do tratamento e do seguimento dos doentes com diabetes inscritos na USF de acordo com as recomendações mais recentes. Durante a reunião foram também analisados os resultados da primeira avaliação e discutidos os problemas detetados na fase de pré-intervenção. Foram ainda discutidas eventuais dificuldades e possíveis medidas a adotar, tendo resultado na implementação de duas medidas corretoras. A primeira consistiu na elaboração e distribuição à equipa médica de um fluxograma de terapêutica para a DM baseado nas recomendações apresentadas em reunião, representado na Fig. 1, e a segunda na composição de um folheto informativo sobre automonitorização da glicemia para distribuição durante as consultas aos utentes com diabetes, apresentado nas Figs. 2 e 3.
A segunda intervenção foi realizada em novembro de 2019, após a avaliação intermédia, e compreendeu a elaboração de um guia com recomendações alimentares e de exercício físico, cuja capa se encontra representada na Fig. 4.
Após a avaliação final foram divulgados os resultados do ciclo de melhoria da qualidade em reunião multidisciplinar da USF.
Resultados
Primeira avaliação:
Em abril de 2019, 965 utentes apresentavam diagnóstico de DM. Verificou-se que o valor do custo médio com a terapêutica do doente com DM era 316€, sendo que o custo médio dos controlados era de 308€ (n=534) e a proporção de utentes com diabetes com HbA1c ≤ 8% era de 55,3%.
Segunda avaliação:
Em outubro de 2019, o número de utentes com diagnóstico de DM aumentou para 974, sendo que nesta fase o custo médio era de 319€ e o dos controlados era 315€ (n=628). A proporção de utentes com DM considerados controlados correspondia a 64,5%.
Terceira avaliação:
Em fevereiro de 2020, a unidade tinha 984 utentes com diabetes, dos quais 62,5% eram considerados controlados. O custo médio com a terapêutica dos utentes com diabetes era de 318€, sendo que o custo no caso dos controlados era de 299€ (n=615).
Assim, apesar de se ter verificado um aumento inicial, no final do estudo o valor do custo médio com a terapêutica do doente com diabetes controlado diminuiu 9€, relativamente ao inicialmente observado, e a proporção de utentes com diabetes controlados aumentou 7,2%, tal como representado nas Figs. 5 e 6, respetivamente. Portanto, consideramos que ocorreu uma melhoria entre a primeira e a última avaliação.
Discussão
Tal como anteriormente referido, a prevalência de DM tem aumentado progressivamente nas últimas décadas, tanto a nível mundial como a nível nacional. Esta é uma patologia com grandes encargos, quer a nível da saúde das populações, pelas suas complicações agudas e crónicas, quer a nível económico. Neste contexto surge a importância de, não só fazer uma gestão adequada da doença e do seguimento dos doentes com diabetes, mas também uma gestão custo-efetiva, que permita simultaneamente um bom controlo da doença e uma gestão de custos adequada. Os cuidados de saúde primários apresentam-se como uma das primeiras linhas de atuação na DM e, portanto, um dos principais pontos de interesse para este tipo de atuação.
A nível internacional, vários trabalhos publicados têm avaliado a validade de medidas consideradas como custo-efetivas, sendo as medidas higieno-dietéticas as mais estudadas.5 No contexto nacional, apesar dos múltiplos trabalhos disponíveis relativos a aplicação de medidas não farmacológicas e da sua influência no controlo glicémico, não foi possível encontrar nenhum estudo que compare a eficácia e custo-efetividade das intervenções na população de utentes com diabetes nos cuidados de saúde primários.
A prevalência de DM na nossa unidade suscitou a avaliação detalhada dos cuidados prestados aos utentes com diabetes. Foi neste contexto que se tornou evidente a necessidade de abordar não apenas o controlo glicémico, mas também o custo da terapêutica da DM. No entanto, nunca poderíamos permitir a implementação de medidas redutoras de custos não focadas no doente e na melhoria do seu seguimento e tratamento. Tendo, por isso, adaptado o objetivo do nosso trabalho para acomodar de forma simultânea a melhoria dos cuidados e dos custos com os utentes com diabetes.
A principal limitação do nosso estudo foi o intervalo temporal de avaliação de apenas 10 meses. As principais medidas implementadas incidiram em intervenções de educação para a saúde e de mudanças de hábitos e estilos de vida, cuja influência no controlo glicémico é observada de forma mais acentuada a longo prazo. O nosso período de estudo foi encurtado pelas alterações da prática clínica no agrupamento de centros de saúde e, subsequentemente, ao seguimento dos utentes inscritos, secundárias ao estado de pandemia por infeção COVID-19. Adicionalmente, é importante referir que os custos avaliados englobam apenas prescrições realizadas a nível da unidade funcional em estudo, sendo que prescrições a nível hospitalar ou particular não foram contabilizadas, o que pode influenciar os nossos resultados.
Na avaliação inicial verificou-se que cerca de metade dos utentes com diabetes apresentavam valor glicémico na categoria de controlo e que a despesa nestes utentes era avultada, apesar de ainda assim inferior ao valor observado para os utentes considerados não controlados. Constatou-se, também, alguma inércia terapêutica por parte dos profissionais de saúde e algum desconhecimento relativamente às novas classes de antidiabéticos, opções terapêuticas recomendadas de acordo com as orientações mais recentes para o tratamento da DM. As alterações frequentes às recomendações terapêuticas podem dificultar a tomada de decisões na prática clínica e resultar até na sua não aplicação. Associadamente, as múltiplas inovações farmacológicas dos últimos anos apresentam-se também como um entrave para a mudança terapêutica por parte do médico e para a aceitação da mesma pelos utentes.
Após a primeira intervenção, observou-se um aumento dos custos, atribuído principalmente à maior prescrição, de acordo com as recomendações, das novas classes de antidiabéticos, opções terapêuticas mais dispendiosas do que as prescritas anteriormente. No entanto, verificamos que, ao longo do período de seguimento do estudo, ocorreu uma redução dos custos, que associamos simultaneamente ao resultado das medidas não farmacológicas implementadas e ao aumento do controlo glicémico. No final do período de estudo ocorreu uma redução dos custos com a terapêutica do utente com DM controlado e um aumento da proporção de utentes dentro desta categoria. Verificou-se, também, um aumento dos custos relativos aos utentes com diabetes com HbA1c > 8%. Esta tendência pode ser interpretada no contexto do reforço da terapêutica destes utentes, associada a uma maior utilização de recursos para automonitorização glicémica no domicílio neste grupo de utentes, cujo tratamento exige medidas mais intensivas para atingir alvos terapêuticos individualmente adequados. No nosso estudo não foi avaliado o nível de adequação dos alvos glicémicos. O valor definido para controlo glicémico deve ser adequado individualmente a cada utente. No nosso estudo as medidas implementadas tiveram como população alvo todos os utentes com diabetes, sendo depois responsabilidade de cada médico a definição dos alvos terapêuticos individualizados.
Apesar da melhoria observada no estudo, consideramos que seria importante a continuação da implementação de medidas não farmacológicas, com especial incidência na modificação de hábitos alimentares. Tornou-se evidente durante o período de avaliação a dificuldade por parte dos profissionais de abordar de forma mais abrangente e sistemática medidas higieno-dietéticas com os seus utentes com diabetes, tanto pela curta duração da consulta, quanto pela multiplicidade de assuntos necessários abordar e tarefas a realizar durante cada consulta. Foi nesse contexto que elaboramos o guia com recomendações para complementar essas intervenções e de forma a uniformizar procedimentos. Assim, podemos afirmar que o reduzido tempo das consultas se apresenta como um entrave à correta implementação de medidas não farmacológicas importantes para a gestão da doença.
De forma global, consideramos que o estudo cumpriu o seu objetivo, uma vez que ocorreu uma melhoria dos custos associada a um melhor controlo glicémico dos utentes com diabetes. Adicionalmente, foram realizadas intervenções que continuarão a ser implementadas na unidade, de forma a melhorar o aconselhamento nutricional e de exercício físico dos utentes com diabetes. Por outro lado, acreditamos que existe ainda espaço para aperfeiçoamento e melhoria do seguimento e tratamento dos nossos utentes com diabetes, sendo necessário para isso não só manter as medidas adotadas, mas também garantir formação frequente e adequada relativamente às atualizações das recomendações terapêuticas.
Conclusão
O correto seguimento e tratamento dos utentes com diabetes permite não só uma gestão da sua doença, como pode inclusivamente reduzir o número de complicações agudas e crónicas, reduzir os custos em terapêutica e hospitalizações e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida dos utentes com diabetes. Assim, cabe aos profissionais de saúde aconselhar e orientar os seus utentes e implementar medidas farmacológicas apropriadas a cada situação.
Este trabalho permitiu compreender a importância da melhoria contínua da qualidade do seguimento e tratamento dos utentes com diabetes. Desta forma, será relevante não só manter as medidas implementadas, mas também reavaliar futuramente e implementar novas intervenções se assim se determinar relevante, para manter a efetividade a longo prazo dos resultados obtidos neste estudo.