1. Introdução: Reinterpretar Arquivos Coloniais Portugueses Como Forma de Reparação
No âmbito da “Escola de Verão em Comunicação e Cultura para o Desenvolvimento”, realizada na Universidade do Minho, em 2020, as investigadoras que conduziram esta entrevista trabalharam no projeto Cultures, Past & Present (2018-2022), mais concretamente no eixo que buscava compreender a história, a memória e as narrativas associadas aos museus de etnologia em Portugal e em Moçambique. O papel pioneiro de Margot Dias na introdução do filme etnográfico, nos estudos conduzidos junto aos macondes de Moçambique, emergiu naturalmente como um aspeto central da investigação, associado ao papel determinante de Jorge Dias na criação do Museu de Etnologia em Lisboa. Com o avanço da pesquisa, foi possível identificar duas investigadoras e artistas com obra significativa sobre as missões etnográficas do casal Dias, com ênfase no papel assumido por Margot, ainda que com abordagens bastante distintas: a antropóloga e cineasta Catarina Alves Costa, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e a artista plástica Ângela Ferreira, professora da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. O estudo exploratório sobre o percurso artístico de Ângela Ferreira logo evidenciou a necessidade de se chegar à fala com esta criadora. Foi neste contexto que se realizou a entrevista aqui publicada, a qual decorreu em dois momentos, a 12 e a 19 de novembro de 2020, mas que conserva a atualidade dos temas e das questões abordados. Aliás, estes temas e questões estão na ordem do dia, se tomarmos em consideração o recente impulso dado ao debate sobre reparações históricas, em Portugal, após o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, se ter mostrado favorável a tais reparações às ex-colónias, durante um encontro com jornalistas estrangeiros a 23 de abril de 2024.
Após mais de duas décadas de um percurso considerado por certos autores (por exemplo, Marmeleira, 2015; Ribeiro, 2020) como solitário e incompreendido, Ângela Ferreira expõe, em 2015, a instalação A Tendency to Forget (Uma Tendência Para Esquecer; Figura 1), em resultado de uma longa investigação que viria a consubstanciar a sua tese de doutoramento defendida no ano seguinte. Esta instalação in situ é composta por uma estrutura escultórica de grande escala, cuja arquitetura evoca o imponente edifício do antigo Ministério do Ultramar, ladeada por um conjunto de sete fotografias que retratam esse mesmo edifício ou o edifício contíguo do Museu Nacional de Etnologia. Umas escadas em caracol convidam o público a subir do piso até ao interior da estrutura escultórica, onde o espera um miniauditório no qual irá assistir ao filme Adventures in Mozambique and the Portuguese Tendency to Forget (2015, 00:19:00).
Retirado de “A Tendency to Forget”, por Ângela Ferreira, 2015. https://angelaferreira.info/?p=249). Créditos. Jorge Silva
Se, por um lado, o espectador é conduzido de forma simbólica às “entranhas da besta”, por outro, é colocado no lugar de observador de um conjunto de imagens e de discursos que, articulados de forma artística após profunda investigação em vários arquivos coloniais, revelam o lado obscuro das missões etnográficas realizadas por Jorge e Margot Dias, entre 1957 e 1961, junto aos macondes de Moçambique. Para tal, a artista contrapõe imagens que documentam duas realidades distintas na então colónia portuguesa durante as décadas de 1950/1960: a de colonos, que, gozando de estilo de vida hedonista, participavam na manutenção do império; e a dos macondes, que, procurando manter o seu modo de vida tradicional, participavam nas primeiras movimentações que viriam a constituir a luta armada contra o colonialismo. Note-se que as imagens de arquivo utilizadas por Ângela Ferreira foram refilmadas a partir da exibição em pequeno ecrã do documentário nostálgico e saudosista Moçambique: No Outro Lado do Tempo (1997, 00:58:00), as quais ilustram a leitura de excertos dos diários de Margot Dias durante as missões, e da coleção em DVD Margot Dias: Filmes Etnográficos 1958 - 1961 (Dias, 2016), que acompanham a leitura de trechos dos relatórios de Jorge Dias enviados à Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português.
Ao analisar práticas artísticas contemporâneas que, a partir da investigação em arquivos coloniais, representam um contributo crítico para a descolonização do conhecimento, Oliveira (2016) propõe três características fundamentais: o recurso maioritariamente a arquivos de imagens, sem prejuízo da utilização de outras fontes arquivísticas; a aquisição de “uma qualidade arquivística” (p. 108) por parte da obra que integra conteúdos de arquivo deslocados para apropriação e inserção na mesma; e a transformação das qualidades estéticas desses conteúdos de arquivo, em resultado da subversão introduzida pela criação artística, com notáveis implicações ético-políticas na descolonização da nossa interpretação do passado colonial. Com efeito, Ângela Ferreira recorre a arquivos de imagem e de escrita, selecionando, deslocando e integrando alguns destes conteúdos na sua obra, numa recomposição que desvela a duplicidade e a ambiguidade de intenções por detrás das missões científicas de Jorge e Margot Dias. É deste modo que a artista concretiza a sua crítica radical ao passado colonial português, esclarecendo que, através da proposta de “uma linguagem escultórica ‘expandida’” (Ferreira, 2016, p. 79), é sua intenção analisar as interseções conceptuais capazes de permitir a compreensão “das falhas do discurso crítico pós-colonial no contexto nacional” (p. 113), mais do que proceder a uma mera denúncia.
Por outro lado, será de enfatizar o facto de Ângela Ferreira utilizar, em Adventures in Mozambique, imagens e escritos produzidos sobretudo pelo casal Dias, validando a ideia defendida por Derrida (1996) de que “o arquivo funciona sempre, e a priori, contra si próprio” (pp. 11-12). É na fina justaposição entre as imagens e os testemunhos selecionados, a qual revela a impressão da marca deixada pela artista enquanto narradora (Benjamin, 1936/1987), que emerge uma versão dos factos contrapontual à de Jorge e Margot Dias. É esse o propósito de Ângela Ferreira (2016) quando afirma: "usá-los numa obra de arte não faria mais do que revelá-los e publicitá-los de novo, incorrendo no risco de repetir a quebra de respeito e a falta de ética praticada pelos autores [Jorge e Margot Dias; das campanhas etnográficas" (p. 171). Assim, não é no simples uso dos arquivos do casal de etnólogos, mas antes na transformação operada pela criação artística sobre esses materiais, acima enunciada a partir da proposta de Oliveira (2016), que a artista apresenta a sua crítica à atuação de Jorge e Margot Dias e à persistência da presença colonial portuguesa em Moçambique em tempo de independência das nações africanas. Na senda do pensamento de Derrida (1996), embora numa abordagem contrastante e complementar, será interessante questionar o modo como os materiais de arquivo legados pelo casal Dias funcionam a posteriori contra os seus autores e o sistema colonial em que foram produzidos na narrativa de Adventures in Mozambique. Como hipótese, sugere-se que as opções criativas de Ângela Ferreira, a partir das quais estes materiais são recompostos de forma crítica, configuram um ato de reparação em A Tendency to Forget.
É assim que, com esta instalação, Ângela reforça o debate, na arte contemporânea, sobre o apagamento da memória colonial e a recusa em proceder a reparações históricas em Portugal, o qual ganha maior destaque depois de a obra vencer a 11.ª edição do prémio Novo Banco Photo7, em 2015. A partir daí, A Tendency to Forget começa a atrair cada vez mais a atenção dos média e do público, inclusive de outros países. Em 2016, Adventures in Mozambique é adquirido pela Tate Modern e ganha o Loop Fair Acquisition Award8, reforçando o reconhecimento internacional do valor intrínseco deste objeto fílmico, em particular, e da inovação do dispositivo materializado na instalação, em geral. A artista já havia criado outras obras que relacionam memória colonial e reparações históricas, como, por exemplo, a instalação Amnésia9. Todavia, é em A Tendency to Forget que, segundo a própria artista, a abordagem a esta temática se reveste de maior contundência. A comparação que Ângela Ferreira estabelece entre as duas obras permite compreender que o jogo semântico entre as palavras que as titulam estão vinculadas, de forma incontornável, à dialética da memória e do esquecimento. Ainda assim, se em Amnésia a margem de manobra concedida aos espectadores foi suficientemente ampla para inspirar interpretações divergentes das do propósito da artista, em A Tendency to Forget a sua intenção crítica seria claramente explicitada sem hesitações.
Numa retrospetiva da receção e do desenvolvimento do pós-colonialismo em Portugal, Ribeiro (2020) reparava que, no final dos anos 1990, Ângela Ferreira ter-se-ia apresentado como pioneira no lançamento deste debate, com obras disruptivas sobre o passado colonial português “ainda ‘inclassificáveis’ ( ... ) [n]um tempo entre o luto e o trauma, o silêncio e a crise narrativa, um tempo hesitante como todos os inícios” (p. 132). Por isso mesmo, a importância da obra da artista residia no despontar do estímulo à “reflexão crítica sobre o passado colonial português e o seu final, numa dimensão comparativa e cosmopolita” (p. 132).
Nascida na então Lourenço Marques, em 1958, Ângela Ferreira cresceu no ambiente tardocolonial desta cidade, tendo partido para a África do Sul durante a adolescência. Aí viveu a primeira parte da sua vida adulta, tendo obtido o diploma em Belas Artes pela Universidade da Cidade do Cabo. A artista sinaliza a sua "identidade híbrida, condição simultânea de ‘outsider’ e ‘insider’ que agrega a voz do ‘eu’ e a voz do Outro, europeu e africano, assim possibilitando uma abordagem crítica e incisiva dos contextos abordados - Portugal, Moçambique, África do Sul" (Ferreira, 2016, p. 81). Esta identidade da artista já havia inspirado anteriormente uma nota deixada por Sandqvist (2007): “[Ângela Ferreira] utiliza a sua arte como uma lente grande angular” (p. 21), ou seja, com um olhar amplo capaz de cruzar a sua criação estética com a sua experiência política. Esta lente grande angular da arte de Ângela Ferreira é, assim, a sua “sensibilidade do mundo”, conceito proposto por Mignolo (2017) para desbloquear os campos sensoriais não admitidos pela “visão do mundo”, considerada pelo autor como limitante e comprometida com as epistemologias ocidentais. O mesmo é dizer que, no seu trabalho, a artista recorre a diversas fontes e a múltiplas linguagens para traduzir a sua identidade enquanto africana de origem europeia que viveu o colonialismo em Moçambique e o apartheid na África do Sul. Como testemunha dos impactos causados por ambos os regimes, Ângela Ferreira traz à luz, em A Tendency to Forget, aquilo que considera terem sido os atos desrespeitosos cometidos pelo casal Dias contra os macondes: os modos de pensar e de agir destes etnólogos, em muitos aspetos etnocêntricos; a captação de imagens da intimidade das pessoas que compunham esta comunidade, sem a sua autorização; e a intenção dúplice de estudar e, ao mesmo tempo, vigiar e espiar, consubstanciada nos testemunhos revelados em Adventures in Mozambique. É a partir do questionamento destas práticas e, no dizer da própria artista, da associação entre pertinência conceptual e pertinência político-social (Ferreira, 2016), que A Tendency to Forget inquire de forma contundente o passado colonial e, ao mesmo tempo, procura repará-lo.
As reparações históricas têm suscitado acesa controvérsia nas sociedades que vivem, na atualidade, as consequências do colonialismo europeu. Herdeiro do pensamento pós-colonial, em que se destacaram intelectuais como Edward Said (1993/2011), Homi Bhabha (1994/1998) e Gayatri Chakravorty Spivak (1999), o debate em torno das reparações procura aprofundar a consciência crítica sobre as atrocidades cometidas no passado contra aqueles a quem não foi permitido contar a sua versão da história. Logo no alvorecer do pós-colonialismo, Said (1993/2011) enfatizava a perpetuação das narrativas dominantes através da obliteração de outras narrativas que descrevessem a experiência de opressão. Bhabha (1994/1998) notava que esta obliteração era consubstanciada por uma estratégia discursiva assente nos estereótipos e na discriminação herdados do discurso colonial, com vista à construção ideológica da alteridade. Pelo seu lado, Spivak (1999) acrescentava a adoção de estratégias mais subtis para recodificar a margem enquanto lugar do sujeito subalterno. Em sua opinião, o estabelecimento de uma linha de comunicação entre este sujeito e o circuito da cidadania servia para mobilizar o subalterno em direção à hegemonia. Assim, a sua integração no sistema eleitoral, ou a inclusão de elementos da sua cultura nos curricula, excluía-o estrategicamente da resistência organizada. Para a autora, só a cumplicidade construtiva entre as narrativas-mestras e as narrativas do subalterno poderia configurar a possibilidade de uma relação ética entre excolonizador e ex-colonizado. Esta cumplicidade construtiva era questionada por Marc Ferro (1981/2004), quando o historiador francês afirmava que o estudo do passado não dispensa um pressuposto fundamental: a ideia de que não existe uma verdade histórica válida para todos. Por outro lado, Eric Hobsbawm (2012/2014) defendia a ideia de que a memória histórica não se dedica ao estudo do passado, mas antes ao olhar do presente sobre esse mesmo passado. Sintetizando estes diferentes olhares, Sanches (2011) afirmava: “a condição Pós-colonial vive de um novo modo de se entender o passado e o presente, olhando-os de um modo alternativo numa revisitação incómoda” (p. 8).
Numa abordagem em que o discurso artístico ambiciona contribuir para a discussão do “após pós-colonialismo”, Ângela Ferreira procura criar, em A Tendency to Forget, um dispositivo inovador que oferecesse a narrativa crítica da própria artista, a qual contrapõe de forma explícita a dominação do europeu branco à subalternização do africano negro. Ao trazer à luz as implicações ético-políticas desta injustiça cometida no passado colonial, a obra acaba por consubstanciar a reparação possível, no presente. Não surpreende, pois, que Helena Pereira (2023), curadora da Zet Gallery, em Braga, se tenha referido à obra de Ângela Ferreira como “uma espécie de reparação da História” (para. 1).
A reflexão crítica sobre as reparações históricas está presente nas esferas científica, artística, política e mediática. Trata-se de uma temática que levanta polémica, com diferentes atores a apresentarem perspetivas diversas, por vezes até contraditórias. Ainda a necessitar de maturação, este debate de desfecho incerto tem servido de mote a encontros políticos internacionais, como a “Conferência das Reparações”, que ocorreu entre 13 e 17 de novembro de 2023, em Acra, no Gana, que teve como objetivo elaborar uma agenda sobre reparações pelas injustiças cometidas contra África e os africanos. Tem também desencadeado a atenção dos média, que o elegem como tema de algumas reportagens, entrevistas e artigos de opinião. A título de exemplo, refira-se o último episódio da série de podcast Pretérito Imperfeito (https://expresso.pt/podcasts/preterito-imperfeito/), produzida pelo Expresso e pela SIC no verão de 2023, intitulado “Reparações Históricas” (28 de agosto de 2023). Mais recentemente, após as polémicas declarações do Presidente português acima referidas, o debate sobre este tema conheceu um reacendimento nos média e no espaço público, revelando as cisões e as divergências que o mesmo suscita na sociedade portuguesa. Ativa participante neste debate, Ângela Ferreira afirmou à comunicação social, a 28 de abril de 2024: “o cerne do problema é não termos trabalhado a descolonização das nossas mentes e da nossa sociedade” (Colonialismo Português Foi Projeto de Opressão e Submissão de Muitos Povos, 2024).
Admitindo que os materiais de arquivo sobre os macondes produzidos por Jorge e Margot Dias fazem parte da “biblioteca colonial” a que se refere Mbembe (2013/2014, p. 166)10, Ângela Ferreira (2016) acreditou que os mesmos estariam abertos às possibilidades críticas oferecidas pela criação de A Tendency to Forget. É precisamente através do ato criativo que a artista reinterpreta esses materiais, propondo uma leitura crítica e contrapontual dos mesmos e do passado colonial na obra em análise. Para desenvolver esta e outras questões até aqui enunciadas, passa-se agora a palavra a Ângela Ferreira.
2. Assumir a Liberdade de Virar “a Câmara e os Holofotes Contra Eles"
Entrevistadoras (E): A Tendency to Forget (Figura 2) foi, talvez, a obra com maior repercussão pública ao longo do seu percurso artístico. Como foi conceber e desenvolver este projeto?
Retirado de “A Tendency to Forget”, por Ângela Ferreira, 2015. (https://angelaferreira.info/?p=249). Créditos. Jorge Silva
Ângela Ferreira (AF): Devo dizer que este foi um trabalho extremamente emocional e convulsivo para mim. Eu trabalhei cinco anos neste projeto. Foi muito custoso, mas, também, foi supercuidadoso: passo a passo... E envolveu algum desconforto, porque foi a primeira vez que eu fiz uma incursão políticocrítica a um académico português [Jorge Dias]. Eu também sou académica, professora de carreira da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, há muitos anos. Portanto, estou comprometida com a academia portuguesa, que precisa de ser revisitada e criticada sob muitos pontos de vista. Foi também uma incursão junto a antropólogos e etnógrafos que se sentiram muito atingidos pelo meu trabalho e que, literalmente, tentaram desacreditá-lo. Quando a obra ficou completa, eu fui tão atacada e tão vilificada que fiquei até bastante traumatizada. Depois, ganhei o prémio e o tempo foi passando. Pessoas do estrangeiro começaram a vir procurar a obra. O filme [Adventures in Mozambique and the Portuguese Tendency to Forget, que integra a instalação] ganhou um prémio também, em Barcelona, na “LOOP Art Fair” e, nesse momento, a obra começou a assentar no meu espírito. Em retrospetiva, sinto que foi duro, sinto que foi complexo, mas continuo a achar que valeu bem a pena ter dado esse passo.
E: Numa entrevista que deu ao Laboratório de Curadoria (2017) perguntaram-lhe sobre como revisita as suas obras. A Ângela respondeu: “muitos dos meus projetos continuam porque eu acho que a pessoa quer dizer outra vez a coisa, mas dizer de uma maneira diferente, dizer melhor”. Isso acontece com A Tendency to Forget?
AF: No caso de A Tendency [to Forget] isso não acontece. É uma obra que eu não tenho a mínima intenção de modificar. Se me perguntares: “o que é que tu achas que fizeste mal?”, provavelmente, há muita coisa que eu fiz mal, mas é muito pouco provável que eu volte a esta obra. Agora, se me perguntares se eu penso na Margot e no Jorge Dias, e naquele sistema, e no que eles representavam... Ah! Nisso penso, e penso muito...
E: E em que termos pensa no casal Dias?
AF: A história deles é muito complexa. Eles estavam muito ligados à história do país e à história do Museu Nacional de Etnologia. A minha tese é dura para com o Jorge Dias e a Margot Dias. Particularmente para com ela, por razões diferentes, mas não estou nada arrependida. Margot era enigmática... Uma figura fascinante e interessante. Nenhum de nós é uma pessoa simples: nem as boas pessoas são pessoas simples e nem as más pessoas são pessoas simples. Somos todos complexos e muito variados e Margot é um exemplo disso. Ela estudou música na Alemanha e, pelos vistos, tinha alguma qualidade como performer. Quando ela veio para Portugal com o Jorge, antes de eles se envolverem nas campanhas de Moçambique, ela já tinha feito alguns estudos de musicologia. Quanto ao Jorge Dias... Para todos os efeitos, dentro do tempo em que ele viveu, tinha muita coisa progressista. Por exemplo, um amigo meu, que é também etnógrafo, o Zé Tó Fernandes Dias11, foi aluno dele. O Jorge [Dias] foi orientador da tese de mestrado do Zé Tó, que era sobre os bares gay de Lisboa. Na ótica dele, o Jorge era a única pessoa da faculdade inteira que poderia tê-lo apoiado. Morreu quando ele estava quase a entregar a tese e apoiou-o até o fim. Estamos a falar do início dos anos 1970. Depois, como o Jorge Dias já não estava cá, o Zé Tó teve uma péssima nota. Até hoje ele argumenta que, se o Jorge não tivesse morrido, ele teria tido uma boa nota no seu mestrado. Portanto, não nos podemos esquecer que ele não era um colonial fascista de gema, dentro do panorama que se vivia em Portugal, que era um país cinzento e fascista... Um país com uma ditadura e um sistema colonial de grande fulgor ainda nesse tempo. As dúvidas coloniais só começaram a instalar-se durante a Guerra Colonial. Até aí, a grande maioria da população portuguesa ou não se preocupava ou aderia ao projeto colonial. Quando comecei a estudá-los, interessava-me muito os tempos que eles passaram na Alemanha, pois Margot alegava que foi ela quem se apaixonou por etnografia. De certa maneira, dá a ideia de que foi ela quem induziu o Jorge Dias a interessar-se [por esta área de estudos].
E: Pela leitura da revista Atlantis12...
AF: E, obviamente, ao ler a revista Atlantis teria desenvolvido o interesse pela fotografia e pela cinematografia. Uma das ideias que defendo na minha tese, e disso não tenho dúvidas algumas, é que ela estava a pensar na...
E: Na Leni Riefenstahl13...
AF: Sim. Para mim, não restam dúvidas sobre isso. Desde os 20 anos que estudo e discuto a Leni Riefenstahl. Não era possível eles estarem na Alemanha durante a II Guerra Mundial, a Margot ler aquela revista, estar interessada em cinema e não ver os filmes da Leni Riefenstahl, que era uma estrela. Ninguém pode convencer-me que a Margot não tinha uma role model [exemplo]. Esta ideia, na minha tese, é conjetura. Sou eu que a construo. Imagina que tu estavas na Alemanha, em Munique, até 1944. A cidade estava completamente arrasada. Estava a ser bombardeada todos os dias. Os teus colegas judeus da universidade já foram para os campos de concentração. E tu sais de lá e finges que não havia uma guerra?!?! Não é possível. Eram duas pessoas inteligentes... O facto de nunca mencionarem a guerra só poderia ser combinado entre eles. Há qualquer coisa, no mínimo, suspeita nesse silêncio. Eu já vivi a Guerra Colonial, já vivi o apartheid. O que eu estou a dizer é que esta omissão é estranha. Portanto, o Jorge e a Margot Dias deixaram-me esse espaço de manobra e eu utilizei-o. Considero que qualquer pessoa, como estudiosa, está livre para fazer essas associações. Gostamos de ter provas concretas, mas também sabemos que as vidas das pessoas são complexas e que, em muitos pontos, se entrelaçam. A posição que eles assumiram, supostamente neutra, foi completamente lunática. Só em Portugal, governado por um Salazar que também varria tudo para debaixo do tapete, é que foi possível. Como foi possível ninguém lhes ter perguntado: “então, tu... O que é que andastes lá a fazer em Munique, em 1944?”.
E: Não era possível serem apolíticos, no sentido em que eles se posicionavam...
AF: Para mim era completamente impossível. Apesar de afirmarem permanentemente que o projeto deles não era político, estariam suficientemente conscientes da largesse [amplitude] política daquilo que eles faziam... Que era serem espiões! Eles não eram os únicos. Todo o mundo da etnografia, na época colonial, fazia isso. Naquela altura, a etnografia não servia senão para isso. Os governos coloniais davam jorros de dinheiro a projetos etnográficos, e não foi só aqui. Os ingleses fizeram-no. Aconteceu no Brasil, na Zâmbia, no Zimbabwe. Enfim, os franceses fizeram-no também. Nos relatórios de Jorge Dias, que estão disponíveis para consulta na Torre do Tombo, é possível verificar que em quase todos, ele começa por dizer: “bom, eu sei que eu não devia estar a imiscuir-me na política, mas é difícil separar o nosso estudo etnográfico dos problemas sociais e políticos que estão a começar a acontecer na região”. Percebe-se que o Jorge Dias está constantemente a defender-se para não se meter num sarilho. Mas não conseguia defender-se completamente porque ele estava a ser pago pelo Adriano Moreira, que era ministro do Ultramar, e ele tinha de apresentar trabalho.
E: Como chegou aos filmes etnográficos de Margot Dias?
AF: Eu cheguei aos filmes etnográficos da Margot através do Jean Rouch14. Só me apercebi do que eles representavam, depois, conforme a minha investigação foi avançando e, sobretudo, quando comecei a ver os filmes. No início, eu nem sequer sabia que os diários de campo [de Jorge e Margot Dias]15 existiam, mas já suspeitava que havia qualquer coisa de escondido. Entretanto, o Harry West16 trouxe-me as pilhas de fotografias que tinha, e estivemos juntos a vê-las. Foi quando o Harry fez menção a qualquer coisa que [Margot] tinha numa gaveta... Que [ela] não queria abrir porque já a tinham avisado de que ele iria politizar o assunto.
E: Compreendemos que há uma repercussão evidente do trabalho feito em nome próprio por Margot Dias em A Tendency to Forget. De que forma é possível, enquanto hipótese, verificar esta autoria?
AF: É uma pergunta interessante e complexa. Certamente que não foi a primeira pergunta que me coloquei quando iniciei A Tendency to Forget, mas estava muito presente na minha análise ao trabalho dela. Tu tens ali a história de uma mulher que vem de Munique, da Alemanha nazi. Parte de Lisboa, vai até ao planalto maconde, passando por Lourenço Marques colonial, por Joanesburgo, e vai também à Tanzânia. É uma história incrível que começa antes da II Guerra Mundial e vai até aos anos 60, quando rebenta a Guerra [Colonial]. Margot nunca foi assumida nem pelos pares, nem por Jorge Dias, como uma profissional de igual para igual. Há uma diferença hierárquica ali. Ela, por exemplo, dá o nome aos filmes, mas os filmes nunca tiveram repercussão pública, até hoje. A verdade é que o Jorge Dias não teve coragem de a incluir. O trabalho que ela fez como cinematógrafa (Figura 3)... Ele não encontrou maneira de o incluir nos livros17, que são a sua coroa de glória. Isto já tem muito a ver com a vossa questão da autoria. Até que ponto é que ela permite e aceita isso ou não? Não sei.
E: Porque é que ela nunca voltou a Moçambique depois de 1973?
AF: Sim, é muito estranho esse fecho completo. Não só não voltou a Moçambique, como não voltou a filmar esses assuntos e nem sequer estava muito disponível para falar sobre eles. Margot defendia-se de algo que, obviamente, ela sabia que estava errado. Ela sabia que o que ela tinha na gaveta era politicamente explosivo e quando a pessoa sabe isso, a pessoa também sabe porque é que é explosivo. Para mim há muitas incógnitas... Por exemplo, não se percebe se ela precisaria de dinheiro, ao vender os diários ao Estado português.
E: A última vez que foi ao planalto, em 1961, Margot Dias foi sozinha. . .
AF: Foi depois do massacre de Mueda18 e já não havia nada a fazer. Apesar de eu dizer sempre que [Margot] foi uma figura muito controversa, a nota que eu dou à personagem Margot Dias é negativa. Eu acho que há muitas coisas que ela fez mal e a sua complexidade não apaga a minha condenação a alguns dos projetos em que ela esteve envolvida. Ela não pedia autorização para fazer o que fazia. A equipa de Jorge e Margot Dias não tinha o sentido reflexivo que nós temos atualmente. Não tinham o pudor do voyeurismo que os investigadores que trabalharam a seguir a eles, entretanto, adquiriram.
E: As palavras “voyeur” e “voyeurismo” estão também relacionadas com A Tendency to Forget. O casal Dias, de alguma forma, não quis ver a realidade do seu tempo. Em contraponto, a Ângela elege o voyeur como o condutor da própria obra. Será que é para que se dê the return of the gaze19?
AF: Absolutamente. Do meu ponto de vista, eles olharam sem pudor, sem pedir autorização, e eu assumo a minha liberdade de fazer o mesmo: viro a câmara e os holofotes contra eles. Foi só isso que eu fiz e, é claro, fi-lo porque tenho ferramentas: vivi na África do Sul, onde tive de gerir a ideia de fazer arte política, de vender arte aos políticos, de ser engajada com a política e de me permitir, até certo ponto, ser apropriada pelo sistema. Estes discursos fazem parte do meu ADN artístico. Se há um comentário político a ser feito em A Tendency to Forget, e se há um comentário autoral sobre reflexividade ou falta dela, do ponto de vista da Margot e do Jorge Dias, isso está muito articulado no filme [Adventures in Mozambique].
E: É por isso que, neste filme, a Ângela usa, de forma contrapontual, imagens de Moçambique: No Outro Lado do Tempo com imagens dos filmes etnográficos da Margot Dias?
AF: Eu sabia que ia usar partes dos filmes dela, mas eu queria encontrar algo que fosse... Como se a câmara se tivesse virado contra eles. Eu passei muito tempo a ver os filmes, muito de perto. Eu vi com imenso cuidado os filmes das iniciações masculinas e femininas.
E: Que são bastante polémicos...
AF: Muito polémicos. Eu já trazia, a partir da África do Sul, ferramentas críticas bastante complexas sobre isso. Eu sou africana, mas quando viajo para o Níger, para fazer fotografias, ou para Brazzaville, eu não vou sozinha. Para além de ser perigoso, há complexidades nestes países. Não é como ir ali a Berlim, Paris ou Londres, com uma máquina fotográfica e tirar umas fotografias. Então, eu sabia que a Margot não andou a filmar aquelas coisas sozinha.
E: Então, a Ângela pressupõe que as filmagens dos ritos de iniciação femininos eram também acompanhadas por homens?
AF: Eram acompanhadas pelo Chefe de Posto, que era o representante da
Administração Colonial Portuguesa, pelos moçambicanos negros que se vendiam ao Governo colonial - que, obviamente, faziam o papel de polícias, recebiam um salário, sendo odiados pelo resto da população - e eram também acompanhadas pelo marido, Jorge Dias. Aliás, se vocês virem os filmes com muito cuidado, de vez em quando o Jorge aparece na imagem.
E: Aparece vestido de explorador...
AF: Sempre com aquelas roupas de tom cáqui. E tu vês o que ele está a fazer... Ele e o administrador local estão a organizar as pessoas: “agora juntem-se todos aí”, “agora saiam todos daí”, “agora põe-te para ali”, “agora saiam da imagem”. De vez em quando, a Margot apanha esses detalhes. Eu procurei muito essas imagens nas quais se via fugazmente o Jorge Dias entrar, e o administrador a entrar. Ela não deveria querer, não deveria ter apanhado, mas apanhou-os. Foi o que ela sem querer filmou e que dizia muito mais sobre ela do que todo o processo.
E: É a câmara oculta...
AF: Eles eram toda uma equipa: uma mulher, sete homens, dois jipes, duas armas e uma máquina de filmar. Eles não andavam sem armas. Não era como a vizinha da esquina ter ido comprar leite. Era um acontecimento na aldeia, até bastante intimidante. Até que ponto é que ela se impunha? É nesse sentido que eu uso a palavra “voyeur”. Portanto, esse era o género de coisas que me interessava perceber.
E: Há alguns excertos em que Margot diz: “fale mais uma vez”. Ela, de alguma forma, direciona a própria filmagem.
AF: E tu também vês que ela foi aos mesmos sítios várias vezes. O Rafael Mwakala20 estava com ela.
E: Rafael Mwakala, intérprete da equipa de Jorge Dias, era da Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique]...
AF: Sim, o Rafael Mwakala era da Frelimo... Margot acaba por conhecer as mulheres e percebe-se que já tinham alguma relação. Aquilo não era imposição militar. Não era uma coisa de guerra. Há ali uma abordagem soft, porque, apesar de tudo, eles são etnógrafos. Portanto, a ideia era conhecer a forma como os outros vivem. Só que quando tu levas sete homens e dois jipes, será difícil conhecer como é que os outros vivem, porque os outros estão muito conscientes que tu estás a olhar para eles.
E: A Ângela usa uma expressão muito interessante, que é “the belly of the beast”. A instalação A Tendency to Forget foi construída como uma forma das pessoas entrarem nas “entranhas da besta”?
AF: E verem outra vez como se fossem voyeurs... O observador é implicado na mesma ação (Figura 4). Margot era uma colona. É o que ela era.
Retirado de “A Tendency to Forget”, por Ângela Ferreira, 2015. (https://angelaferreira.info/?p=249). Créditos. Jorge Silva
E: Como é que a Ângela avalia a experiência dos visitantes enquanto voyeurs?
AF: Eu acho que o filme incluído em A Tendency to Forget é muito desafiante. O espectador observa a partida de Lisboa, o voo sobre Sevilha... E depois começa a embrenhar-se num discurso muito colonial e até bastante ofensivo: “ah! Chegamos a Kano. Deixa-me ver se os pretos têm a forma da cabeça diferente da dos brancos”. Mais adiante, contam histórias do médico colonial que não queria ajudar a mulher a dar à luz e a criança morre na barriga da mãe. São coisas bastante perturbadoras. Apesar de ser um filme desagradável de ver, ainda hoje, as pessoas dizem-me: “uau! Muito impactante”. E quem não vir o filme, nunca poderá aperceber-se do nível de incisão da obra. Tu tens aquela visão muito escultórica de um objeto. A arquitetura é muito modernista, com aquele ar clean. As fotografias são muito minimalistas. E a ideia de entrar neste objeto é até divertida. Depois o filme começa e, lentamente, vai-se avolumando em termos de emoção e as pessoas são surpreendidas. Talvez a Ângela tenha querido enfatizar o quanto terá sido intrusivo para os macondes serem filmados.
AF: Era muito isso. Mas era também o facto de nós, enquanto portugueses, termos tanta dificuldade de nos vermos e de nos criticarmos de forma objetiva. Com este projeto, eu senti uma grande vontade de sublinhar isso para que as pessoas compreendessem, finalmente. No projeto Amnésia, que eu fiz há 20 anos, alguns excertos de Moçambique: No Outro Lado do Tempo aparecem pela primeira vez. A minha intenção era a de uma artista menos experiente e, talvez, menos corajosa. Havia uma nostalgia do tropicalismo naquelas imagens. Geralmente, quando Amnésia é mostrada - e, ainda hoje, ela é mostrada - os diretores de museus dizem-me: “olha, Ângela, eu não sei o que tu fizeste, mas não há dia nenhum em que eu não tenha de ir tirar de lá alguém sentado a ver os filmes, quando fecho o museu”. O que eu descobri nessa obra foi que as pessoas foram vê-la por uma de duas razões: umas para rever o exótico, quase neocolonial; outras pessoas apareciam porque tinham vivido em África... Eram retornados e tinham vivido um trauma, que não tinham resolvido e, então, iam lá e choravam. Isso perturbou-me muito. Eu sempre achei que não tinha sido clara no meu trabalho. Em Amnésia há um espaço de manobra com o qual eu não me sinto confortável. As pessoas diziam-me: “as coisas devem ter espaço de manobra. Tu não podes evitar que uma pessoa vá lá e chore”. Mas, de certa maneira, eu sentia algum desconforto, porque o que eu quis dizer em Amnésia foi precisamente: “vocês estão a esquecer-se do que é que fizeram em África. Têm de resolver isto e depois vamos andar para a frente”. Quando cheguei a A Tendency to Forget, 20 anos depois, eu pensei: “não, desta vez a coisa não terá o mesmo espaço de manobra. Desta vez tenho de dizer aquilo que eu quero dizer”. Já se passaram mais de 20 anos e, portanto, A Tendency to Forget é mais incisiva do que Amnésia. Mas claro que, quanto mais contundente é uma obra, maior a agressividade da receção.
E: Apesar disso, considera que a sua intenção em ser mais contundente foi bem recebida por uma parte da sociedade e, por isso, validada pelo prémio?
AF: Na altura em que eu fui convidada a participar no prémio, as atenções estavam muito direcionadas para temas sobre o colonialismo e sobre África. A Tendency to Forget foi, provavelmente, a obra mais incisiva que eu fiz sobre este assunto. Eu diria que tu tens uma instituição, que é o Novo Banco, que adere a um tema de investigação artística ao qual, 10 ou 15 anos antes, nunca teria aderido e, neste sentido, sim. Temos uma sociedade muito mais preparada para aceitar estes assuntos no mainstream.
3. Descolonizar os Museus ou “Dar de Volta Aquilo que Não É Nosso”
E: Como avalia a possibilidade de iniciarmos o processo de descolonização dos museus em Portugal?
AF: Eu acho que a descolonização dos museus é uma questão muito interessante. O António Pinto Ribeiro21, há uns anos, ajudou-nos muito quando claramente disse, a alguém que lhe perguntou, em entrevista a um jornal: “que museus deveriam ser descolonizados?”. E ele respondeu com uma única palavra: “todos”. Desde aí, tem havido uma espécie de discurso corrente sobre a descolonização destas instituições. Eu acho que uma parte dos museus já vai acolhendo esta ideia e já começou a fazer algumas mudanças, no sentido de tentar descolonizar-se. A questão é que a descolonização dos museus, como o descolonizar do que quer que seja, tem de envolver pensamentos contemporâneos, novos e oriundos de pessoas descolonizadas. Descolonizar os museus significa fechá-los, significa consultar os povos africanos, significa restituição, ou seja, dar de volta aquilo que não é nosso.
E: O que significaria, na sua ótica, e especificamente, descolonizar o Museu Nacional de Etnologia?
AF: Teríamos de repensar toda a coleção africana lá reunida. Quem é que a colecionou? Como é que ela foi ali parar? O que é que ela faz ali? Quando nós queremos que os nossos filhos vão ao museu ver as coleções que lá estão, reunidas por Jorge Dias e seus colaboradores, o que é que nós queremos que eles aprendam? O Museu de Etnologia é um museu extremamente complicado de descolonizar porque a própria etnologia foi criada pelo sistema colonial e está no cerne da ideia de colonialismo. Curiosamente, é nos anos 1960 que a própria etnologia se torna pioneira em termos de reflexividade. É a primeira disciplina que, literalmente, se questiona em termos de validade. O que é verdade é que muitos dos museus e muitas das áreas disciplinares permanecem agarradas a um modelo de etnologia antiquado. Em inglês, o problema da descolonização dos museus de etnologia denomina-se por a hotbed, ou seja, uma “cama quente”. É claro que, aqui em Portugal, os museus de arte também sofrem deste problema. Mas o centro desta discussão é o Museu de Etnologia. Por exemplo, nós não vamos conseguir descolonizar este museu se tivermos os mesmos trabalhadores que trabalham lá há 30 anos. Não é possível, porque estas pessoas não estão descolonizadas. Haveria que perguntar: “o que é que significa descolonizar um museu?”. Se calhar, as respostas a esta pergunta são tão dramáticas que é muito difícil os museus pensarem na sua sobrevivência a partir disso.
E: No entanto, já vamos tendo alguns sinais no sentido dessa descolonização...
AF: Na Tate Modern, em 2019, foi possível expor uma obra como Fons Americanus22, de Kara Walker23. Vai haver continuidade neste projeto? Vamos ver como é que isto vai continuar. E mais outra coisa, voltando às pessoas que trabalham nos museus. Tu não podes ter um Museu de Etnologia, nos dias que correm, que não tenha um único africano a trabalhar lá. Não faz sentido.
E: Como hipótese, investigar sobre a responsabilidade autoral de Margot Dias, talvez, também ajude a tirar as coisas de um nível superficial.
AF: Espero eu, por várias razões. Não só porque a problemática é enorme, vasta, complexa e rica, mas também porque é uma mulher que, de certa maneira, foi desautorizada pelo seu próprio marido. E, portanto, era uma dupla maneira de o museu se atualizar na sua forma de gerir, porque a etnografia portuguesa não é só racista, é também ultramachista! Há um momento na minha tese em que eu tive de me perguntar: “então, não havia ninguém em Portugal que fosse etnógrafo ou antropólogo e que fosse progressista e de esquerda?”. Deveria haver alguém mais e, realmente, havia. A Gulbenkian deu bolsas que fomentaram esta área. Houve um antropólogo eminente que foi o Alfredo Margarido24. Havia alternativa, como havia em todos os sistemas políticos. Se tu não gostavas, tinhas de sair. A colaboração com o sistema político colonial não era uma obrigação. E, portanto, a Margot, excêntrica, muito própria das convulsões e das complexidades da “portuguesidade” colonial, seria um tema maravilhoso para o museu se abrir de uma forma diferente.
E: Curiosamente, a imagem símbolo desta nossa hipótese de investigação é a própria sombra da Margot operando a câmara (Figura 5). Margot Dias, sombra entre os macondes, sombra na relação política com o Estado Novo português... E a sombra tem também a ver com o apagamento da sua autoria...
Margot Dias - Filmes etnográficos (1958-1961) - DVD 01_5 - 00:02:39. Créditos. Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema e da Direção-Geral do Património Cultural/Museu Nacional de Etnologia
AF: É bonita essa imagem, essa ideia da sombra... Trabalhar essa ideia da sombra... Porque tens várias sombras: ela é a sombra do marido. E ela cria sombra.