1. Introdução
Em abril de 1994, a comunidade internacional assistiu à deflagração de um dos maiores genocídios da história da humanidade. Ruanda, já desestabilizado devido a uma recente guerra civil entre o governo do presidente Juvénal Habyarimana e os rebeldes da Frente Patriótica de Ruanda (FPR), foi palco de uma assustadora campanha sistêmica de eliminação étnica, a qual dizimou quase 20% de sua própria população.
A postura adotada pela comunidade internacional perante o acontecimento é muito questionada, visto que, após a fundação da Organização das Nações Unidas, a opinião pública esperava não mais se deparar com novas atrocidades como aquela. Esperava-se que todos aprenderiam a lição dolorosa do Holocausto nazista e, por isso, qualquer genocídio que viesse a se manifestar seria prontamente reprimido. Todavia, Ruanda veio para mostrar que, infelizmente, o mundo ainda tinha muito a aprender.
Nesse contexto, o presente artigo busca apresentar uma perspectiva - baseada na Teoria de Securitização dos autores da Escola de Copenhague - acerca dos discursos em torno do ocorrido, tanto na esfera interna do conflito quanto na esfera externa, tomando como base a ONU e seu principal órgão decisório, o Conselho de Segurança. Com a abertura que as escolas pós-positivistas das Relações Internacionais deram para a inclusão de novos temas na disciplina, é possível analisar questões antes não compreendidas pelo arcabouço teórico, tais como a politização extrema de temas não militarizados, ou seja, a emergência de novas demandas como high politics. Procurou-se articular todas as categorias definidas pela Teoria de Securitização - objeto referente, ator funcional, ator securizante e audiência - a fim de se apresentar uma análise mais objetiva do processo de criação social de uma ameaça perante um grupo a ser protegido, processo esse presente nas duas esferas determinadas pela pesquisa. Assim, é possível notar dois processos de securitização efetivos no cenário do genocídio de Ruanda: em primeiro lugar, o discurso securitizador dos hutus acerca dos tutsis dentro do conflito e, em segundo lugar, o discurso securitizador das Nações Unidas acerca dos Direitos Humanos. A análise dá-se, então, em torno desses dois pontos cruciais para uma possibilidade de entendimento mais completo do evento histórico e, inclusive, em torno da articulação do Conselho de Segurança a partir da sua função primária de guardião da paz e da segurança internacionais.
2. Escola de Copenhague e Teoria da Securitização
Com o término da Guerra Fria, os impactos gerados na sociedade no efeito pós-guerra, que contribuíram para o “pensar” direcionado para a segurança internacional e o enfraquecimento do realismo, foram fatores que permitiram a mudança no debate e a construção de uma agenda internacional voltada para as questões de defesa e segurança - os quais passam agora a contemplar as escolas pós-positivistas. No estudo teórico das Relações Internacionais estão presentes três debates: a começar, pelo debate clássico entre as escolas do realismo e liberalismo; posteriormente, o novo arranjo dessas duas vertentes, criando o neoliberalismo e o neorrealismo; e o terceiro momento que compreende as novas fontes de estudos da teoria e o neorrealismo (Viana, 2017).
A Escola de Copenhague inicia-se pelos líderes Barry Buzan, Lene Hansen, Jaap de Wilde e Ole Waever, que movidos pelo descontentamento devido a estagnação da teoria tradicionalista, fundaram uma nova forma do pensar. Esse dissabor teve o estímulo das agendas internacionais econômicas e ambientais no período de 1970 e 1980 (Buzan, Waever & Wilde, 1998).
Atenta-se sobre a preocupação de que os temas não militares se transformam em pautas de segurança e que acarretam em consequências negativas com efeitos indesejáveis dentro das relações internacionais. No período conhecido como “virada linguística”, há a inclusão dentro das Relações Internacionais do uso da linguagem como uma sistemática conjugada às implicações ontológicas e com as raízes voltadas para a epistemologia, nesse mesmo tempo, a teoria da securitização pudera se propagar (Motta & Pimentel, 2013). O objetivo deste capítulo é tecer uma análise sobre os feitos da Escola de Copenhague nos estudos de segurança internacional, fornecendo a base teórica que permitirá o desenvolvimento de uma nova perspectiva do genocídio de Ruanda.
A bagagem teórica que a Escola de Copenhague trouxe para o debate das Relações Internacionais fora instrumento indispensável para a construção da securitização. De acordo com os teóricos dessa vertente, o ato de securitizar ocorre por intermédio da adoção de medidas que não seriam adotadas facilmente pela política interna e que, em nome do combate ao inimigo, são colocadas em prática. O debate da securitização perpassa alguns conceitos como a autodeterminação dos povos, pela necessidade em agir e atuar incisivamente em nome do Estado (Buzan, Waever & Wilde, 1998). Anexo a esse processo, não inclui como importante se a ameaça dada como existente é real ou não, porque, para os estudiosos de Copenhague, o que verdadeiramente tem importância consiste no debate discursivo de uma ideia enquanto ameaça pelo agente securitizador, que provoque comoção popular e convença a necessidade da adoção dessas medidas ditas acima como urgentes. Dentro dessa perspectiva, temos o conceito de kick start que decorre alicerçado ao speech act, que consiste na oratória que o ator produz acerca da questão da segurança. Para termos gerais, é possível concluir que o ato de fala não é suficiente para que determinado fato seja uma questão securitizada, é preciso que haja uma ratificação através de audiência (Buzan, Waever & Wilde, 1998).
O structural incorporation serve como uma observação do ato de fala, constituindo num paralelo que explique de que forma a segurança pode ser construída ou desconstruída, examinando como ela está inserida historicamente nos discursos, em textos e quando há, implicitamente, a sua menção. Os atores que securitizam devem acompanhar a linguagem adequada, bem como obedecer às especificidades de setores diferentes. (Viana, 2017). Para Waever, teórico da Escola de Copenhague, a segurança representa um dado momento marcado pela presença de alguma controvérsia de segurança e o que será realizado como medida em resposta. A insegurança define-se como uma ocasião com um problema causado pela segurança e que não há resposta. Ambos os conceitos partilham da segurança como problemática (Waever, 2007). O substancial modality prevê a ideia do conceito volta para a dinâmica dos objetos que estão sob análise e pelas ameaças que envolvem os agentes securitizadores. Hansen afirma que há um titubeio entre quais objetos serão invocados, e para quem e como a segurança deverá ser atingida. Os métodos criados por Hansen são aparatos teóricos para a observação dos discursos.
Os atores que solicitam a securitização precisam de poder e competência para sistematizar politicamente, perante os demais, a persuasão necessária para que consigam executar a securitização de forma plena. Buzan afirma que a segurança é capaz de ser configurada a uma estrutura retórica e, por isso, ela não deve ser analisada somente pelo viés objetivo (Buzan, Waever & Wilde, 1998). A construção desse processo de insegurança no sistema é proveniente de um discurso difundido no meio social, iniciado pelo ato de fala do ator, por isso a subjetividade antecede a objetividade. A mesma escola teórica aponta uma perspectiva de vários setores da segurança a começar pela identificação dos cinco na agenda internacional: político, econômico, militar, ambiental e social. Dessa maneira, os teóricos dessa escola propõem um amplo debate de questões que vão além das concepções político-militar, sem deixar de incluí-las. Ou seja, há a amplificação dos setores no debate da segurança e ela se torna justificada como um sistema ativo pelo intermédio do agente-estrutura (Buzan, Waever & Wilde, 1998).
Em suma, a teoria da securitização possibilitou a adesão de outros termos ao debate da segurança, abrangendo o realismo e o construtivismo. Abre outros temas em discussão na agenda, mas não deixa de incluir os tradicionais. A Escola de Copenhague agrega novas epistemologias para o campo das Relações Internacionais, bem como novas ontologias para a nossa reflexão, de maneira que possibilita o aprofundamento do surgimento das ameaças e da sua consequência na política internacional (Motta & Pimentel, 2013).
3. Discurso Securitizador dos Hutus acerca do Tutsis: da Rivalidade Histórica à Construção de Inimigo
Em 1993, apenas um ano antes do genocídio que dizimou cerca de 800 mil pessoas em um período de três meses, mediante o silêncio e a passividade da Comunidade Internacional, a densidade demográfica do Ruanda era uma das maiores do planeta, com cerca de 293 mil habitantes/km² (Diamond, 2005). No que tange a formação populacional do país, 84% eram hutus, 15% tutsis e 1% pigmeus, chamados twa. No que se refere ao cenário geopolítico, o país faz fronteira com Uganda ao norte, Burundi ao sul, Tanzânia ao leste e República Democrática do Congo a oeste. No século XIX, as atividades exercidas pelos tutsis e hutus na região corresponderam, respectivamente, ao pastoreio e a lavoura, legando maior primazia econômica aos primeiros.
As principais categorias envolvidas na Teoria da Securitização são: o objeto referente, os atores funcionais, o ator securitizador e a audiência. Neste sentido, o objeto referente, ou seja, o grupo que se encontra sob ameaça, construída através do discurso, se caracteriza pela etnia tutsis. Os atores securitizadores, os quais por meio do discurso criam a ameaça, são os hutus extremistas e o Poder Hutu, que tentavam promover a segurança através do assassinato dos tutsis. Os atores funcionais são aqueles que participam de forma direta ou indireta do conflito, falando em nome da coletividade, intensificando - ou não - a ameaça construída, sendo possível identificá-los no presente estudo de caso como o Poder Hutu, os hutus extremistas, a Igreja Católica, o governo da Bélgica e o Rádio Mille Collines (onde os tutsis eram chamados de “inyenza”, ou “barata”). O RTLM era o meio de comunicação mais utilizado para propagar o discurso securitizador, atingindo a audiência para legitimar o massacre e incitando a participação dos Hutus no processo. Por fim, a audiência, ou seja, o grupo alvo do discurso securitizador, é a etnia hutu, com exceção dos moderados ou opositores.
Será necessário identificarmos os três processos essenciais que constituem a Teoria da Securitização, sob a formulação de Barry Buzan e Ole Waever da Escola de Copenhague. Temos então, a) o momento securitizador; b) a aceitação por parte da audiência e a legitimação das medidas de exceção e; c) identificação dos resultados. Esses conceitos serão aplicados no estudo de caso e serão os instrumentos analíticos para o entendimento das questões da segurança em Ruanda, mediante a nova configuração mundial do pós Guerra Fria, em que as ameaças não são objetivas, mas construídas socialmente.
Neste primeiro momento, abordaremos o momento securitizador, no qual os hutus desenvolveram em relação aos Tutsis a percepção de inimigo, uma ameaça que a ser securitizada. A percepção da etnia Tutsi enquanto inimiga foi acentuada durante o período colonial, em que houve uma enfática divisão social com base nos critérios e padrões étnicos estabelecidos pelos belgas. A política de colonização belga baseada na distinção das etnias, levou a hierarquização dessas, tendo como ponto ápice da tensão o genocídio de 1994.
Não se nega a distinção étnica existente no período anterior à colonização belga e alemã, pois a região, que mais tarde se estabeleceria como a nação ruandesa, era habitada por pigmeus. Logo, a hipótese é que os Hutus, de origem bantu, região da Nigéria, vieram do sul e oeste do Ruanda, enquanto os Tutsis do norte e leste, mais especificamente das margens do Rio Nilo (Fructuozo, 2009). Sob a mesma perspectiva, destaca-se também que a noção de rivalidade foi presente no reinado do Tutsi Mwami Rwabugiri (rei do Ruanda), já em 1860, na tentativa de consolidar e centralizar a sua administração sobre toda a região, legando aos tutsis altos cargos políticos e econômicos em seu governo, o que corrobora para a visão de rivais, mas não para a de inimigos (Mendonça, 2013). Apesar da concepção de que há duas etnias distintas no Ruanda, com base nos pressupostos citados anteriormente, alguns etnólogos afirmam o contrário, pois:
Com o tempo, hutus e tutsis passaram a falar a mesma língua, seguir a mesma religião, casar-se entre si e viver misturados, sem distinções territoriais, nas mesmas montanhas, compartilhando a mesma cultura política e social...Por causa de toda essa miscigenação, os etnógrafos e historiadores chegaram ultimamente à conclusão de que os hutus e os tutsis não podem propriamente ser considerados grupos étnicos distintos (Gourevitch, 2006, p. 45).
No que tange a aceitação por parte da audiência e a legitimação de medidas de exceção, os primórdios da distinção exógena feita entre as duas etnias são evidenciadas pelo explorador John Hanning Speke, que instituiu, sem base científica ou teórica, a concepção de “ciência das raças” na África Central, em voga na Europa no século XIX - o primeiro elemento notificado como o legitimador das medidas políticas excepcionais realizadas pelos belgas (Mendonça, 2013). A hipótese hamítica institui a origem da população centro africana nos etíopes, caucasóides, de pele negra clara e mais altos, descendente do Rei bíblico Davi, sendo caracterizados, sem nenhum fundamento, como superiores aos nativos africanos com traços negróides (Maggie, 2014).
A Igreja Católica e os mecanismos de administração belga foram dois elementos fundamentais que corroboraram na propagação do discurso securitizador dos hutus, haja vista a segregação estabelecida por essas duas instituições no Ruanda. As medidas de segregação entre hutus e tutsis funcionaram, também, como obstáculos para a construção dos indivíduos enquanto nacionais, no pós-independência, em 1962. Os belgas, mediante a concepção da origem divina dos tutsis, sob a égide da “ciência das raças”, acerca da falácia da superioridade de uma etnia sobre outra, acreditavam na necessidade de exercer um papel civilizador, permitindo aos tutsis o acesso ao conhecimento “ocidental” e ao catolicismo, através da catequização somente dessa etnia. Em 1931, o início da conversão dos ruandeses ao catolicismo se deu com a posse de Rudahigwa, fazendo com que o Ruanda se tornasse uma das maiores colônias católicas (Mendonça, 2013). Até nas mínimas instâncias, como o sistema educacional de Ruanda, era promovido o favorecimento aos tutsis em detrimento da precarização do ensino e subjugo dos hutus. Logo, no século XX, com o apoio dos belgas, houve a ascensão dos tutsis ao governo e aos cargos administrativos, configurando a consolidação de uma minoria no poder e a formação de uma elite, ou uma aristocracia tutsi. Evidenciam-se os principais pontos de segregação que introduziram a noção de rivalidade entre as duas etnias, sendo eles, fatores exógenos como a ingerência das potências imperialistas alemã e, posteriormente, belga, legando aos tutsis cargos administrativos e privilégios.
Em 1894, o Conde von Götzen da Alemanha, em visita ao Ruanda, estabeleceu postos e uma administração indireta na região após a morte de mwami Rwabugiri - que havia assumido o poder em 1860. Sob a deliberação da Liga das Nações (1919), com a derrota na Primeira Guerra Mundial, os territórios de Burundi e Ruanda, antes da Alemanha, passaram a ser administrados pela Bélgica que aprofundou a cisão entre os ruandeses, através de políticas segregacionistas (Mendonça, 2013). Logo, acerca das medidas políticas implementadas nos primeiros anos de posse do novo território, observa-se que:
Pouco depois, entre 1933/1934, os belgas realizaram um censo com a finalidade de emitir documentos de identidade étnica, o que acabou por permitir que a metrópole aperfeiçoasse a administração com base na segregação. O sistema educacional foi organizado de forma a promover a discriminação aberta em favor dos tutsis, que passaram a deter os cargos políticos e administrativos. Este sistema liquidaria a identidade nacional, desenvolvendo-se, a partir de então, um discurso excludente baseado na diferenciação de raças e na superioridade de uma delas (Mendonça, 2013, p. 307).
O episódio mais infame, para ratificar uma inferioridade inexistente da etnia, se caracterizou pela chegada de cientistas na colônia africana com instrumentos para precisar a medida craniana e o tamanho do nariz, a fim de consagrar a superioridade dos tutsis por possuírem milímetros a menos de largura nasal.
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que estavam o presidente tutsi de Ruanda, Habyarimana, e o presidente hutu de Burundi, Cyprien Ntaryamira, foi derrubado, marcando assim o estopim para o genocídio de 1994. “Calcula-se que, em 100 dias, 800 mil pessoas foram liquidadas, o que dá uma média de 333,3 mortos por hora ou 5,5 por minuto”. (Mendonça, 2013, p. 314).
4. Genocídio de Ruanda no Contexto da Organização das Nações Unidas
As violações contra a dignidade humana aparecem nas mais variadas formas de ação, permeando toda a história da humanidade, tanto em tempos de relativa paz quanto em conflitos extremamente sangrentos. Pode-se convencionar que, antes da fundação das Nações Unidas em 1945, não havia uma institucionalização dos Direitos Humanos como direitos universais, indivisíveis e interdependentes. Entretanto, no preâmbulo da Carta de São Francisco já é esboçada essa nova perspectiva sobre os indivíduos na comunidade internacional (condicionada, principalmente, pelos acontecimentos históricos referentes às duas guerras mundiais - em especial, o Holocausto na Alemanha Nazista), visando garantir o mínimo de direitos que qualquer ser humano deve gozar, independente das circunstâncias, em qualquer lugar do mundo. A consolidação dessa nova perspectiva vem, em 10 de dezembro de 1948, por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral como um texto sob a forma de resolução - mesmo não sendo um tratado, ou seja, não constitui uma obrigação essencialmente jurídica para cada um dos Estados, é o pontapé para a promoção de tratados que englobam os direitos humanos básicos.
A partir da “Virada Linguística” nos estudos da disciplina de Relações Internacionais, com o questionamento da ontologia tradicional consolidada pelas escolas (Neo) Realista e (Neo) Liberal e com a emergência de uma nova epistemologia proposta para a disciplina - a epistemologia pós-positivista das escolas da Teoria Crítica, dos Construtivismos, dos Pós-estruturalistas, entre outros - abre-se espaço para a inclusão de novos temas no âmbito dos estudos de Segurança. A Teoria da Securitização da Escola de Copenhague permitiu, então, a inclusão dos direitos humanos como parte das agendas de segurança internacionais, um tema não militarizado que, nos estudos clássicos de Segurança, não é abarcado. Nesse sentido, as ameaças, tais como as violações dos direitos humanos, a partir da perspectiva da securitização, podem não ser reais/objetivas - elas são produtos de discursos, de atos de fala, de textos e de intersubjetividades. Logo, as ameaças são socialmente construídas.
Nota-se, então, que o processo de securitização dos direitos humanos no contexto da ONU foi, aparentemente, bem sucedido, visto que conseguiu passar de um simples movimento securitizador - no qual os direitos humanos eram o objeto referente do ator securitizante (no caso, a ONU) - para um efetivo processo de securitização ao atrair grande parte da audiência, que incorporaria e legitimaria o seu discurso e, principalmente, as decisões excepcionais que viriam a ser tomadas.
É nesse contexto que é assinada, também pela Assembleia Geral da ONU, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, sob a premissa de que “o genocídio é um crime de direito dos povos, que está em contradição com o espírito e os fins das Nações Unidas e é condenado por todo o mundo civilizado” e, por isso, “para libertar a humanidade de um flagelo tão odioso, é necessária a cooperação internacional” (ONU, 1948). Ao tipificar exatamente o que deve ser entendido como genocídio - atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso - retira-se a subjetividade que poderia vir a ser incorporada em um contexto de manipulação maliciosa do conceito, além de admitir-se que as partes estão comprometidas em prevenir e punir tais atrocidades e seus perpetradores. Logo, o genocídio é encarado como um perigo iminente à segurança dos direitos humanos no sistema internacional e tal Convenção é um discurso construído para promover esse tipo de crime como uma ameaça existencial ao objeto referente já securitizado - o qual deve ser protegido pelos atores funcionais, ou seja, os Estados que compõem a comunidade internacional, por meio da cooperação.
Dentro da estrutura da ONU, além da Assembleia Geral e de outros quatro principais órgãos constituintes, há o Conselho de Segurança - principal órgão decisório da organização - composto de 15 membros, sendo 10 deles não permanentes (rotativos) e 5 permanentes (Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China). Sua tarefa primordial é, justamente, a de guardar a paz e a segurança internacionais por meio de ações de acordo com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas. Por outro lado, não há a definição de quais são as ameaças à paz e à segurança internacionais, ficando a cargo do próprio Conselho defini-las (Carpanezzi, 2008, p. 74).
Ademais, outro princípio intrínseco à fundação da ONU é o da vedação do uso da força nas relações internacionais, o qual só pode ser desconsiderado em caso de legítima defesa ou ruptura da paz e da segurança internacionais. Sendo assim, para que o Conselho de Segurança atue efetivamente na prevenção e na repressão de um genocídio, é necessário que ele próprio determine se é um caso de genocídio ou não e, inclusive, se é realmente um caso que ameaça a paz e a segurança internacionais, já que não é algo previamente discriminado. Vale lembrar, então, que o Conselho de Segurança é um instrumento de congelamento de relações de poder, visto que seus membros permanentes - ou seja, com direito de voto e veto - são os vencedores da Segunda Guerra Mundial e não há a mínima previsão de uma maior representatividade dentro desse órgão. Além dessa posição privilegiada para distinguir quais são os problemas relevantes para a realidade mundial, segundo Carpanezzi (2008, p. 76):
afora a responsabilidade geral, conferida a toda a organização, de perseguir a proteção internacional dos direitos humanos como propósito último nas suas ações, não há responsabilidade específica atribuída ao Conselho com relação aos direitos elementares, menos ainda no que seja concernente à faculdade de autorização de medidas coercitivas excepcionais ao princípio da soberania e da vedação do uso da força. Assim, nem a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, tampouco a Carta das Nações Unidas, impõem ao Conselho de Segurança um dever de prevenção de violações de direitos humanos dentro de fronteiras de Estados soberanos.
Ruanda, um pequeno país no centro do gigantesco continente africano, enfrentou uma guerra civil sangrenta entre o governo do presidente Juvénal Habyarimana e os rebeldes da Frente Patriótica de Ruanda (FPR) - produtos diretos ou indiretos da colonização ocidental - durante quase três anos, de 1990 a 1993, até que fossem assinados os acordos de cessar-fogo. A ONU enviou uma força de paz, denominada UNAMIR (Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda, em inglês), para supervisionar a implementação dos acordos - e tão somente para isso. Em 1994, o genocídio é deflagrado.
Oito resoluções foram emitidas pelo Conselho, desde a determinação do envio da UNAMIR e até a autorização para a força multinacional que viria a proteger civis em risco no Ruanda (Carpanezzi, 2008, p. 87), sendo que em todas elas esteve presente o eufemismo intencional do que realmente estava acontecendo no país. Em nenhuma resolução o Conselho afirma que é um genocídio, ou seja, que há uma campanha sistemática de eliminação étnica em Ruanda, nem mesmo quando o fato tornou-se praticamente inegável. Toda a violência extrema presente na situação foi camuflada como consequências de uma guerra civil num país que, teoricamente, não era civilizado ainda.
Assim como o genocídio é inegável, a inação resultante de uma omissão por parte das Nações Unidas perante o acontecimento também é, sem dúvidas, inegável. Nesse sentido, percebe-se claramente que o Conselho de Segurança tenta, no seu discurso oficial, manipular a linguagem - base do processo de securitização - para não classificar a situação como um genocídio, o que significaria cair na securitização dos direitos humanos (cuja defesa é intrínseca à formação da própria organização internacional) e, portanto, diante da ameaça contra o objeto referente, exercer o seu papel de ator funcional, aquele que provém a segurança, a partir de medidas de exceção. O descaso e o desinteresse em admitir tal situação como uma ameaça aos direitos humanos da população ruandesa e, inclusive, de enquadrá-la como uma ruptura da paz e da segurança internacionais foram dissimulados por uma perspectiva de respeito à soberania estatal, de vedação do uso da força nas relações internacionais, de respeito à autodeterminação dos povos e vários outros discursos oportunistas. Sendo assim,
para o caso de Ruanda, reconhecer assertivamente que um genocídio em país da África central está em curso, e que vem dizimando duzentas ou trezentas mil pessoas, e não agir para contê-lo, corresponderia a reconhecer assertivamente a escolha pela inação ou assumir incapacidade para agir...Ora, se não há reconhecimento do genocídio, é de se concluir que as ações autorizadas pelo CSNU para a ‘situação’ de Ruanda, serão para equacionar um outro tipo de violação de direitos humanos, já que o genocídio não está sendo considerado como categoria para a ação (Carpanezzi, 2008, p. 123).
Fato é que, uma intervenção humanitária em outro país, além de demandar força de vontade das outras nações para oferecerem tropas e armamentos - visto que a ONU não possui tropas próprias - demanda muitos recursos, isso quer dizer, muito dinheiro. Se Ruanda não possui uma posição geopolítica estratégica, não possui recursos naturais e minerais expressivos, aparentemente a violação dos direitos humanos de sua população não é relevante (não foi, naquela época, e possivelmente continuará não sendo) para o órgão decisório da organização internacional responsável pela manutenção da paz mundial, dos direitos humanos e do desenvolvimento socioeconômico. Ruanda simplesmente não interessa, precisa resolver suas guerras “pré-civilizatórias” abandonado à sua própria sorte e, portanto, as vidas negras ali perdidas não valem o gasto financeiro que seria empreendido pelas grandes potências para a realização de uma intervenção humanitária. Sendo assim, segundo Carpanezzi (2008, pp. 124-125):
o silêncio [construído por palavras] foi singularmente grave por ter denominado como “atos de genocídio” uma campanha de eliminação que provocou a morte de ao menos 500.000 ruandeses; por ter alijado do núcleo conceitual de ameaça à paz e à segurança internacional o risco à integridade de uma comunidade étnica inteira dentro das fronteiras de um Estado-Nação; por ter oferecido concretamente, como solução de assistência humanitária para a população-alvo do projeto de extermínio, uma operação de paz com 270 pessoas desautorizadas a interpor-se entre as partes e a empregar a força, a não ser para autodefesa; por ter privilegiado desproporcionalmente o princípio da soberania sobre a da universalidade dos direitos humanos, quando o que estava em jogo era a responsabilidade internacional para a garantia da vida de alguns milhões de pessoas.
O genocídio contra uma etnia negra não era uma ameaça à paz e à segurança internacionais, de acordo com o discurso eufemístico do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Percebe-se, então, que o processo de securitização dos direitos humanos dos civis no Ruanda não ocorreu, visto que o genocídio não foi construído socialmente, por meio de atos de fala dos atores securitizantes, como uma ameaça aos Direitos Humanos. Pelo contrário, buscou-se a manipulação linguística para a não configuração da “situação” do Ruanda como um genocídio de fato. Sendo assim, se não há um discurso de construção de uma ameaça ao objeto referente, não há audiência, não há processo de securitização e, portanto, não há necessidade alguma de adotar medidas de exceção para proteger a vida de 800 mil Tutsis.
5. Conclusão
O genocídio de Ruanda foi o terceiro maior desde 1950, segundo os parâmetros internacionais da Convenção para Prevenção e a Repressão de Crime de Genocídio, de 1946. A identificação dos resultados dos movimentos de securitização foram a morte de 800 mil tutsis, uma população de refugiados, bem como a constatação da ineficácia das Nações Unidas quando a intervenção militar não tem interesses escusos e se baseia somente na causa humanitária, isto é, nos Direitos Humanos.
Com base no Manual de Direito Internacional Público, de Hildebrando Accioly (2012), percebe-se a violação dos “direitos das minorias étnicas”, dos tutsis, 14% em Ruanda, bem como a violação da “liberdade individual” preconizada no art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no qual todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Corroborando com tais princípios, existia, ainda, em âmbito continental, a Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos, de 1981, visando a garantia dos direitos humanos dos povos africanos, pelos próprios africanos.
Em suma, percebe-se certa relativização, flexibilidade dos termos “genocídio” e “direitos humanos de minorias étnicas e individuais” ao nos atentarmos para os casos africanos, como o tratado no presente artigo acerca de Ruanda, no qual não houve interesse, por parte das grandes potências, de promover uma intervenção visando pôr fim ao massacre - resultando na continuidade do conflito em países vizinhos e legando uma população de refugiados de guerra tendo com destino principal o Congo.