Introdução
A disfagia é uma entidade clínica comum e dispendiosa e está associada a uma morbilidade e mortalidade significativas (1,2,3. Numa pessoa saudável existem deglutições espontâneas e periódicas, que decorrem em repouso, ao longo do dia e que asseguram a limpeza de secreções da hipofaringe1,8.
Numa pessoa com disfagia, a acumulação destas secreções a nível da hipofaringe, da glote e/ou traqueia constitui um sinal importante na predição de ocorrência de aspiração orotraqueal de alimentos e líquidos e parece estar associada a uma alteração na eficiência de limpeza laringofaríngea, tendo uma grande relevância clínica e terapêutica1,5. Dentro dos fatores que contribuem para uma acumulação de secreções no vestíbulo laríngeo, alguns autores referem a diminuição de deglutições espontâneas8, uma fraqueza da resposta faríngea durante a deglutição ou uma combinação de ambas1) , a diminuição da elevação da laringe aquando da deglutição, atraso na abertura do esfíncter esofágico superior e ausência de contacto entre a base da língua e a parede posterior da faringe9. A acumulação de secreções no vestíbulo laríngeo como variável preditora de aspiração foi verificada para população pediátrica14 e adulta3,6,15, bem como em situações clínicas específicas como doença de Parkinson9, acidentes vasculares cerebrais7, entre outros.
Para a avaliação da acumulação residual de secreções, Murray et al. criaram, em 1996, a Secretion Severity Rating Scale1,4. Trata-se de uma escala de 4 pontos (0-3), em que 0 corresponde a uma avaliação normal, sem secreções visíveis ou apenas transitórias, 1 corresponde à presença de secreções no vestíbulo laríngeo bilateralmente, 2 corresponde a qualquer classificação avaliada como 1 inicialmente e que se alterou para 3 ou vice-versa, durante o período de observação, 3 corresponde a uma acumulação mais severa, com secreções a nível do vestíbulo laríngeo. Esta escala avalia a localização específica e faz uma descritiva do volume das secreções faringolaríngeas através da visualização direta durante uma videolaringoscopia. A sensibilidade e especificidade para prever o risco de aspiração em doentes com grau 2 e 3 da escala de Murray et al. é de 74% e 90% respetivamente3. Ao longo da literatura, a Secretion Severity Rating Scale tem demonstrado ser uma escala robusta na identificação do risco de aspiração em populações clínicas diversas 2,3,6,7. Doentes com um grau 2 ou 3 na escala de Murray et al. são 13,6 vezes mais suscetíveis a aspiração de alimentos e líquidos do que doentes com graus inferiores3.
Desta forma, a aplicação sistemática da escala de acumulação residual de secreções oferece informação importante na prática clínica desempenhando um papel crucial na identificação precoce do risco de aspiração pelo que a implementação consistente nas examinações endoscópicas é deveras recomendada2.
A sua aplicação específica nas avaliações endoscópicas da deglutição oferece ainda informação importante para a tomada de decisão da segurança da via oral para alimentação versus introdução de via alternativa, acerca da necessidade de manipulação das características e propriedades reológicas dos alimentos permitidos no plano alimentar da pessoa com disfagia.
Atendendo à inexistência de instrumentos validados para o Português Europeu que meçam a acumulação de secreções no vestíbulo laríngeo, realizou-se a presente investigação.
Objetivos
Tradução, adaptação e validação para português europeu da Secretation Severity Rating Scale de Murray et al. através da aferição da validade e fiabilidade intra e inter-avaliadores.
Materiais e métodos
A escala original foi traduzida por dois terapeutas da fala bilingues de forma independente. Procedeu-se posteriormente a um focus-group onde para além dos anteriores esteve incluída uma terapeuta da fala com 15 anos de experiência em avaliação endoscópica da deglutição, obtendo-se por consenso a primeira versão da escala adaptada e traduzida que foi posteriormente sujeita a uma retro tradução cega por uma terceira terapeuta da fala bilingue. Não havendo lugar a alterações foi aceite a escala apresentada no Tabela 1 e 2.
Para analisar a sua validade e fiabilidade foram avaliados cegamente 80 vídeos de avaliação endoscópica da deglutição, realizados com recurso a um nasofaringolaringoscópio de fibra ótica (Pentax medical vivideo) com 3 mm de diâmetro, por 2 profissionais da equipa de avaliação da deglutição [(1 médico otorrinolaringologista (ORL) e 1 terapeuta da fala-(TF)] com pelo menos 10 anos de experiência em avaliação endoscópica da deglutição) e selecionados 40 vídeos aleatoriamente, gravados entre 2018 e 2019, com concordância total entre os 2 avaliadores, 10 para cada um dos níveis de severidade, para encontrar a referência à norma de classificação. Os vídeos apresentavam imagem completa da hipofaringe e tinham duração média de 45 segundos. Estes 40 vídeos foram posteriormente redistribuídos aleatoriamente numa apresentação de power point e submetidos a uma avaliação e reavaliação de forma cega, com 4 semanas de intervalo, por 6 médicos ORL e pelos 2 profissionais da equipa de avaliação da deglutição. Dos 6 médicos otorrinolaringologistas avaliadores, 1 deles tinha 6 anos de experiência e outro 5 anos, 2 deles 4 anos e 1 deles 3 anos de realização de nasolaringoscopias. Os vídeos foram apresentados num computador standard e todos os avaliadores tiveram oportunidade de visualizar individualmente os vídeos em modo apresentação, com direito a repetição do mesmo até 3 vezes e procederam ao registo em grelha. As concordâncias inter e intra-juízes foram analisadas. A fiabilidade intra e inter-juízes e a validade de acordo com a norma de referência definida, foram analisados. Devido à ausência de distribuição normal (Kolmogorov-Smirnov: p>0.05), foram utilizados testes não paramétricos. Recorreu-se à ANOVA de Friedman para avaliar a fiabilidade intra-juízes para o grupo de 6 avaliadores e da equipa da deglutição e o teste Kappa de Cohen e o Kapa de Fleiss para avaliar a fiabilidade inter-juízes, para a equipa da deglutição e o grupo de 6 avaliadores, respetivamente.
Todos os cálculos foram efetuados com recurso ao SPSS 21 (International Business Machines Corporation, Armonk, USA).
Nível 0 | Classificação normal. Sem secreções visíveis na hipofaringe ou apenas algumas bolhas transitórias visíveis nas valéculas e seios piriformes Estas secreções não são bilaterais nem organizadas |
Nível 1 | Algumas secreções visíveis antes ou após deglutição seca, bilateralmente ou organizadas. Neste nível, pode haver alteração na quantidade de secreções acumuladas ao longo da avaliação. Significa que o examinado pode apresentar secreções bilaterais no início do exame e terminar sem secreções visíveis |
Nível 2 | Quaisquer secreções que mudaram de uma classificação ''1'' para uma classificação ''3 ou vice-versa |
Nível 3 | Classificação mais severa. Secreções visíveis no vestíbulo laríngeo, incluindo as secreções pulmonares que não sejam eliminadas por deglutição ou tosse |
0 | Most normal rating. No visible secretions anywhere in the hypopharynx or some transient bubbles visible in the valleculae and pyriform sinuses. These secretions were not bilateral or deeply pooled |
1 | Any secretions evident upon entry or following a dry swallow in the channels surrounding the laryngeal vestibule that were bilaterally represented or deeply pooled. This rating would include cases where there is a transition in the accumulation of secretions during the observation segment. A subject could start with no visible secretions but accumulate secretions in an amount great enough to be bilaterally represented or deeply pooled. Likewise, a subject would be rated as a “1” if initially presenting with deeply pooled bilateral secretions and ending the observation segment with no visible secretions. |
2 | Any secretions that changed from a “1” rating to a “3” rating, respectively, from a “3” rating to a “1” rating during the observation period |
3 | Most severe rating. Any secretions seen in the area defined as the laryngeal vestibule. Pulmonary secretions were included if they were not cleared by swallowing or coughing at the close of the segment |
Resultados
A análise da fiabilidade intra-juízes revelou consistência entre os dois momentos de avaliação quer para a equipa com treino (Q=2,556; gl (3), p=0,465) quer para o grupo dos 6 avaliadores sem treino prévio (Q=13,362 gl (11), p=0,270). Não se tendo encontrado diferenças significativas entre os dois momentos para ambos os grupos, não se procedeu à análise pareada para cada um dos avaliadores. A fiabilidade inter-juízes revelou uma correlação muito boa para a equipa com experiência no 1º momento (k=0,832; p<0,00) e boa no segundo momento (k=0,796; p<0,01). A análise referente aos vários níveis da escala revela que a maior concordância ocorre nos níveis extremos, mais acentuada no 1º momento e mais homogénea no 2º momento (tabela 1). A equipa dos 6 avaliadores demonstrou uma concordância moderada para o 1º momento ((=0,432; p<0,00) e para o 2º momento ((=0,553; p<0,00). Este grupo, apresenta uma concordância maior nos níveis extremos da escala nos dois momentos de avaliação (tabela 3).
1º momento | 2º momento | ||||||||
Nivel 0 | Nível 1 | Nível 2 | Nível 3 | Nível 0 | Nível 1 | Nível 2 | Nível 3 | ||
Equipa AED | 0,941 | 0,778 | 0,883 | 0,952 | 0,814 | 0,827 | 0,800 | 0,917 | |
6 juízes | 0,540 | 0,368 | 0,301 | 0,554 | 0,710 | 0,600 | 0,638 | 0,744 |
Como demonstrado na tabela supra (tabela 1), a equipa com experiencia prévia de aplicação da escala apresenta, para ambos os momentos, uma concordância que varia entre os [77-95] %, no primeiro momento, e os [80-92]% no segundo momento, superior à verificada no grupo sem experiência prévia de aplicação da escala onde se verificaram intervalos de concordância que variam entre os [30-55]% e os [60-74]%, no 1º e 2º momento, respetivamente.
Discussão
Neste estudo, o instrumento Secretion Severity Rating scale, foi traduzida da língua inglesa para a língua portuguesa e adaptado culturalmente, com metodologia tradução e retro tradução. A validação demonstrou bons resultados em relação à validade global da construção, fiabilidade inter e intra-juízes.
A importância de um instrumento de medida da acumulação de secreções no vestíbulo laríngeo adaptado para a língua portuguesa reveste-se da maior importância pela sua capacidade de predizer o risco de ocorrência de aspiração e inerente pneumonia. Este facto é largamente referido pela comunidade científica e foi o impulsionador desta investigação 3,7,13,14,15.
A disfagia é um problema comum principalmente em doentes mais idosos e está presente em mais de 80% das pessoas residentes em lar com mais de 70 anos de idade3. No entanto, a capacidade dos sintomas subjetivos de disfagia darem uma previsão objetiva de disfunção na deglutição não é ideal3. Por esta razão um método rápido, válido e reprodutível de estratificar os doentes em termos de risco de aspiração é útil e pode permitir um planeamento e aconselhamento clínico e nutricional adequado3.
A escala de classificação de secreções desenvolvida por Murray et al. é uma ferramenta útil na avaliação de doentes com disfagia, auxiliando na avaliação precoce do risco de aspiração destes doentes3. A sua pertinência é tão consensual que a Sociedade Alemã de Neurologia lançou em 2021, nas suas guidelines de atuação na disfagia a recomendação de utilização desta escala em todos os procedimentos de nasoendoscopia10. Esta recomendação foi obtida através de uma revisão sistemática efetuada por um grupo multidisciplinar experiente em avaliação de pessoas com disfagia.
Os valores de concordância intra-juízes com e sem experiência encontrados neste estudo para os dois momentos de avaliação não apresentaram diferenças significativas entre momentos, traduzindo a correspondência entre os factos observados e avaliados. Ainda que com análise estatística com recurso a outros testes, a concordância intra-juízes é corroborada por outros estudos com juízes experientes 4,9,13. Relativamente `a concordância intra-juízes sem experiência apenas encontrámos na literatura um estudo5, com concordância moderada em avaliadores menos experientes o que vai de encontro aos resultados deste estudo.
Relativamente à concordância inter-juízes, os valores e características encontradas nesta investigação são corroboradas pelas investigações anteriores 4,9, ainda que por vezes com valores inferiores 9,12 aos encontrados para estes juízes.
As diferenças na robustez de concordância entre juízes experientes e não experientes, encontradas neste estudo e anteriormente descritas, são também referidas por outros autores 2,9,12. Os resultados traduzem que, apesar da escala ser de fácil aplicação requer uma curva de aprendizagem e este achado também já tem sido referido na literatura referente à aplicação de escalas similares11. Esta curva de aprendizagem poderá explicar os valores mais homogéneos encontrados para os vários níveis da escala no segundo momento comparativamente ao primeiro bem como uma maior concordância para os níveis mais extremos da escala o que também foi reportado noutras investigações 4,16
Conclusão
Neste estudo, o instrumento Secretion Severity Rating scale, foi traduzido do inglês para a língua portuguesa. A validação demonstrou bons resultados em relação à validade global da construção, fiabilidade inter e intra-juízes. A versão portuguesa da escala Secretion Severity Rating scale é um instrumento fiável e válido para a classificação de gravidade de um dos principais sintomas da disfagia orofaríngea e é recomendada como um instrumento a ser aplicado em qualquer avaliação nasolaringoscópica bem como na avaliação endoscópica da deglutição. Não obstante o anterior, a sua aplicação requer uma curva de aprendizagem, comum nos instrumentos que dependem da experiência do avaliador.