Introdução
A nova doença Coronavírus 2019 (COVID-19) é uma zoonose pandémica, altamente contagiosa, causada pelo vírus de RNA denominado Síndrome Respiratório Agudo Severo Coronavirus 2 (SARS Cov2). Na maioria dos doentes, a doença tem manifestações leves a moderadas, com sintomas como febre, tosse, náuseas, vómitos e diarreia. No entanto, pode também causar um envolvimento importante das vias respiratórias inferiores com pneumonia intersticial, muitas vezes com necessidade de Cuidados Intensivos.1 O número de doentes admitidos em Unidades de Cuidados Intensivos a necessitar de ventilação prolongada aumentou exponencialmente durante a pandemia da COVID-19.2),(3 Neste contexto pandémico, no qual se assistiu a uma frequente diminuição de resposta por falta de recursos materiais e humanos em número suficiente para corresponder às necessidades, o normal protocolo, que recomenda a realização de traqueotomia cerca de 7 a 10 dias pós entubação orotraqueal, de modo a evitar complicações e reduzir a morbimortalidade, não foi cumprido, o que levou a um maior número de doentes com entubação prolongada.4)-(7 No Reino Unido, um estudo revelou um intervalo de 0-35 dias e outro de 10-40 dias de entubação orotraqueal até à realização de traqueotomia.8 Os efeitos laríngeos da entubação prolongada em doentes traqueotomizados com COVID-19 incluem disfunção vocal, da deglutição e da via aérea, podendo surgir paralisia das cordas vocais, disfagia, estenose laringotraqueal ou outras lesões, como granulomas das cordas vocais.9),(10 No entanto, estes efeitos são ainda pouco conhecidos em doentes com formas graves de COVID-19.
Assim, o objetivo do presente trabalho foi estudar as consequências da entubação prolongada em doentes traqueotomizados com infecção grave a COVID-19, a nível da voz, deglutição e permeabilidade da via aérea alta.
Material e Métodos
Foram identificados e consultados os processos clínicos de todos os doentes com COVID-19, internados na Unidade de Cuidados Intensivos de um Hospital Terciário português, que foram traqueotomizados (abordagem cirúrgica ou percutânea) entre março de 2020 e novembro de 2021.
De uma população inicial de 37 doentes, foram excluídos 11 por morte, e 4 que, apesar de serem positivos para o SARS Cov2, foram submetidos a traqueotomia por outra patologia médica que não a doença COVID-19 (politraumatizados, Acidente Vascular Cerebral ou coma por outras causas).
Dos 22 doentes obtidos, foram excluídos 8 por não ter sido possível estabelecer contacto por via telefónica.
Da população estudada (N=14), 6 doentes recusaram a ida ao hospital, por residirem a longa distância ou por exaustão do meio hospitalar, pelo que lhes foi apenas aplicada uma entrevista telefónica. Os restantes 8 doentes foram submetidos a uma entrevista presencial, tendo aceitado realizar endoscopia flexível para avaliação da via aérea superior. A população foi estudada pelo menos 2 meses após a alta hospitalar, em contexto de ambulatório.
Foram aplicados 4 questionários validados para a língua portuguesa. Para avaliar a perceção dos doentes acerca da própria voz / alterações da voz e sinais de refluxo, foram aplicados o Voice Handicap Index-10 (VHI-10)11),(12 e o Reflux Symptom Index (RSI).13),(14 Para avaliar a perceção acerca da deglutição, foi aplicado o Eat Assessment Tool (EAT-10)15),(16) e o Functional Oral Intake Scale (FOIS)16),(17) foi respondido pelo Otorrinolaringologista que avaliou o doente.
Os 8 doentes submetidos a entrevista presencial foram também submetidos a um Teste de Deglutição de 100ml de água (Water Swallow Test - WST)7),(18, que consiste na deglutição de 100ml de água da forma mais rápida e confortável possível. O teste foi cronometrado e foi calculada a velocidade de deglutição (ml/s): quantidade de água deglutida dividida pelo tempo decorrido.
Resultados
Dos 14 doentes estudados, a média de idades foi de 49 anos, estando os doentes compreendidos entre os 27 e os 69 anos. 11 dos quais eram do sexo masculino e 3 do sexo feminino.
4 doentes tinham história pregressa de hábitos tabágicos e nenhum deles tinha como antecedente pessoal Doença do Refluxo Gastro Esofágico.
5 das traqueotomias foram realizadas por técnica percutânea, 9 realizadas por técnica cirúrgica, das quais 8 por um Otorrinolaringologista e 1 por um Cirurgião Cardiotorácico.
O tempo médio de dias de Ventilação Mecânica Invasiva (VMI) até à realização de traqueotomia (TQT) foi de 24 dias, tendo sido o tempo mínimo de 6 e o máximo de 42 dias. O tempo médio de duração da TQT até à descanulação foi de 51 dias, tendo sido o tempo mínimo de 23 dias e o máximo de 109.
Voz e Refluxo Faringolaríngeo
2 doentes (14%) relataram alterações da voz no questionário VHI-10, com uma pontuação superior a 11, considerada anormal, estando as pontuações destes doentes entre os 12 e os 35 pontos. 4 doentes (29%) reportaram pontuações superiores a 13 pontos no questionário RSI, indicando presença de sintomas indicativos de refluxo faringolaríngeo (RFL).
Deglutição
4 doentes (29%) relataram alterações da deglutição no questionário EAT-10, com pontuações superiores a 2, que indica uma deglutição potencialmente anormal. Todos os doentes estudados (N=14) tiveram a pontuação máxima de 7 no FOIS, que indica ingestão total por via oral sem qualquer restrição. Os 8 doentes que aceitaram a entrevista presencial completaram o Water Swallow Test (WST), sem sinais de aspiração. Foram considerados anormais valores de velocidade de deglutição inferiores a 10 ml/s23, sendo que 5 doentes obtiveram valores inferiores. Destes 5 doentes, 2 deles tiveram um EAT-10 alterado.
Via aérea superior
A endoscopia flexível foi realizada a todos os doentes na consulta (8), dos quais 5 (62%) apresentavam alterações, nomeadamente paralisia unilateral (2), espessamento (1) e granulomas (2) das cordas vocais. No quadro 1 estão representados os resultados dos questionários dos doentes com alterações na endoscopia.
Doente | Alteração na NFLC | WST (ml/s) | EAT-10 | RSI | VHI-10 |
Doente 1 | Paralisia unilateral CV | Normal | Normal | Normal | Normal |
Doente 2 | Paralisia unilateral CV | Diminuído | Normal | Alterado | Normal |
Doente 3 | Granuloma CV | Normal | Alterado | Normal | Normal |
Doente 4 | Espessamento CV | Diminuído | Alterado | Alterado | Normal |
Doente 5 | Granuloma CV | Diminuído | Normal | Alterado | Normal |
Discussão
Este estudo oferece uma oportunidade única para avaliar o desenvolvimento e a evolução das alterações laríngeas resultantes da entubação e da realização de traqueotomia durante a pandemia da COVID-19.
Como referido anteriormente, durante a pandemia da COVID-19, não foi frequentemente cumprido o protocolo preconizado de 7-10 dias de entubação orotraqueal até à realização de traqueotomia. Este estudo verificou isso mesmo, tendo constatado uma média de dias até à realização de traqueotomia de 24 dias e um máximo de 42 dias. Também se verificou um atraso na descanulação destes doentes com uma média de 51 dias e um máximo de 109 dias até à remoção da cânula. Tal facto poderá traduzir a gravidade da doença, associada a uma dificuldade na descanulação destes doentes.
Em termos de resultados a nível da voz e da qualidade vocal, apenas 14% da população estudada considerou subjetivamente a sua voz como anormal, com uma pontuação superior a 11 no questionário VHI-10, contrariamente ao que seria expectável. Tal pode ser explicado pelo facto dos próprios doentes minimizarem as alterações da voz em detrimento do aparecimento de outros problemas que surgiram como consequência da infeção grave a SARS Cov2, como exemplo, a fadiga, a dispneia e o cansaço fácil, ou a agudização de comorbilidades que os doentes já teriam previamente.19
Também seria previsível que um número substancial de doentes relatasse sintomas relacionados com refluxo faringolaríngeo, dado que muitos foram sujeitos à posição prone na UCI e foi sugerido que o refluxo faringolaríngeo se poderia correlacionar com piores resultados clínicos da COVID-19.20 No entanto, apenas 29% dos doentes obteve uma pontuação >13 na escala RSI (indicativo de sintomas de refluxo faringolaríngeo).13 Podemos presumir que o refluxo já estaria resolvido no momento da nossa consulta. No entanto, é fulcral avaliar o refluxo faringolaríngeo nesta população, já que as evidências sugerem que pode agravar lesões laríngeas.21
Neste estudo, 29% (4 doentes) relataram disfagia no questionário EAT-10 com pontuação > 2, no entanto, estavam todos já a realizar uma dieta normal, sem restrições (100% com FOIS de 7). Este facto vai ao encontro da discrepância já conhecida entre diferentes escalas de classificação de disfagia.22) Apesar de realizarem uma dieta normal, 5 dos 8 doentes apresentaram valores de velocidade de deglutição considerados anormais no WST, indicativos de uma anomalia fisiológica da deglutição. Tal poderá sugerir um aumento da incidência de disfagia nestes doentes com infeção grave a COVID-19. Em contrapartida, dado que não temos nenhum teste realizado aos doentes antes da infeção a COVID-19, será difícil tirar ilações precisas. Seria um bom teste se comparássemos os resultados individuais de cada doente antes e após (traqueotomia e ventilação prolongada) a infeção a COVID-19 e constatássemos que tinha havido um aumento dos valores da capacidade de deglutição após COVID, excluindo pré-existências. É, também, do nosso conhecimento que a idade e algumas co-morbilidades poderão interferir na deglutição, pelo que este teste só deveria ser considerado em doentes que não tivessem qualquer alteração prévia da deglutição, apresentassem a mesma idade e não apresentassem comorbilidades associadas, no entanto, tal não foi possível.
Comparando os nossos resultados endoscópicos com os da literatura, os achados de uma revisão sistemática em 2017 por Brodsky et al.,10) que encontrou 21% de incidência de paralisia unilateral das cordas vocais, estão de acordo com os 25% (2 doentes) do nosso estudo, e 2,7% de paralisia bilateral, contrariamente aos nossos 0%. No entanto, todos os doentes incluídos na revisão sistemática foram avaliados dentro de 2 semanas após extubação, mais cedo do que no presente trabalho, sendo provável que a imobilidade das pregas vocais melhore espontaneamente, nalguns doentes, ao longo do tempo. Por outro lado, no estudo citado anteriormente, que possuía uma amostra de 775 doentes, com uma média de intubação de 8,2 dias, difere largamente dos 24 dias deste estudo.
Uma das limitações deste estudo foi o facto de não ter existido um tempo padrão após a alta hospitalar para avaliar os doentes, ou seja, apesar de todos os doentes terem sido avaliados com mais de 2 meses após a alta hospitalar, não foram todos avaliados com o mesmo período de tempo após a alta, o que pode ter tido interferência nos resultados dos questionários e nos achados da avaliação endoscópica. Outra das fragilidades foi a pequena amostra disponível, tanto pela exaustão hospitalar dos doentes que estiveram internados por longos períodos de tempo, como pelo facto do nosso hospital ser um hospital terciário que recebe a população de uma área abrangente do nosso país, levando a uma menor adesão por parte dos doentes que residem a longas distâncias.
Conclusão
Os resultados preliminares do estudo mostram uma elevada incidência de lesões laríngeas entre os doentes traqueotomizados que estiveram sob VMI durante a pandemia da Covid-19. São, contudo, necessários estudos com amostras significativas e estudos a longo prazo, incluindo em doentes com COVID-19 não traqueotomizados e com grupos de controlo de doentes sem COVID-19, para se poder tirar mais ilações.
Confidencialidade dos dados
Os autores seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados dos doentes.