Introdução
A realização de miringoplastia em idade pediátrica é frequente, mas o momento mais adequado e os factores que podem influenciar o seu sucesso são temas controversos.
A disfunção da trompa de Eustáquio tem sido associada a menor taxa de sucesso da miringoplastia na criança quando comparada com o adulto, respetivamente 83% versus 89% aos 12 meses.1 Por este motivo, é questionável se esta cirurgia deve ou não ser adiada em função da maturação da trompa de Eustáquio, que ocorre habitualmente entre os 7-10 anos. (1,2 Por outro lado, a correção precoce de uma perfuração timpânica irá prevenir infeções recorrentes resultantes do contacto com a água e contribuir para a melhoria da qualidade de vida e da audição, com conse-quente impacto na aquisição da linguagem após uma miringoplastia com sucesso.3
Outros fatores relativos ao estado do ouvido operado, como o tamanho e as características da perfuração, presença de miringosclerose e existência de inflamação do ouvido médio, são também controversos na sua influência no resultado cirúrgico. (1,7-14
Do ponto de vista da técnica cirúrgica, a experiência do cirurgião é determinante na decisão da abordagem e tipo de enxerto utilizado. A taxa de sucesso com enxertos de fascia temporalis e cartilagem é elevada. (1,4,5
Este estudo pretende avaliar a influência destes factores prognósticos no sucesso cirúrgico da miringoplastia e os resultados funcionais obtidos.
Material e Métodos
Foi realizado um estudo retrospetivo incluindo 56 doentes (57 ouvidos) submetidos a miringoplastia num período de 5 anos (Janeiro de 2016 e Dezembro de 2020) num hospital terciário, tendo a cirurgia sido realizada por vários cirurgiões.
A definição de miringoplastia utilizada foi a de cirurgia realizada para correção de uma perfuração na membrana timpânica, com ou sem elevação de retalho timpanomeatal e sem ossiculoplastia associada - correspondendo à timpanoplastia de tipo I da classificação de Portmann.6
Foram excluídos doentes com mais de 18 anos, casos em que tenha sido realizada mastoidectomia ou ossiculoplastia no mesmo tempo cirúrgico, exérese de colesteatoma congénito, timpanoplastias de reforço, colocação de tubos subanulares ou tubos de ventilação transtimpânicos (TVTT) e cirurgias de revisão. Foram também excluídos os doentes com tempo de seguimento inferior a 3 meses.
Avaliaram-se características demográficas, antecedentes médico-cirúrgicos, presumível etiologia para a perfuração e suas características anatómicas, técnica cirúrgica realizada, resultados clínicos e audiométricos obtidos.
Os resultados audiométricos foram estimados por audiometria de tons puros com avaliação dos limiares tonais médios da via óssea (LTM-VO) e da via aérea (LTM-VA), obtidos através das médias nas frequências 0.5, 1, 2, e 4 kHz. O Rinne audiométrico foi obtido pelo cálculo da diferença entre o LTM-VA e LTM-VO.
O sucesso cirúrgico foi considerado como desfecho primário do estudo e definido como presença de membrana timpânica íntegra após a cirurgia e Rinne audiométrico inferior a 10dB. Foram ainda calculadas as taxas de integridade da membrana aos 12 e aos 24 meses, utilizando análise de sobrevivência.
Como desfechos secundários foram avaliadas correlações entre o sucesso cirúrgico e diversos fatores de prognóstico nomeadamente: idade (inferior ou superior a 10 anos), causa provável da perfuração, presença de malformação craniofacial, existência de rinite, colocação prévia de TVTT, estado do ouvido contralateral no momento da cirurgia, tamanho da perfuração, envolvimento do quadrante ântero-inferior, perfuração marginal, presença de miringosclerose, inflamação da mucosa do ouvido médio no momento da cirurgia, experiência do cirurgião, via de abordagem cirúrgica, realização de calibragem do canal auditivo externo, tipo de enxerto utilizado, estação do ano no momento da cirurgia.
A estatística descritiva é apresentada como frequência (n) e percentagem (%) para variáveis categóricas e como média e desvio-padrão para variáveis contínuas. Para testar a relação entre factores prognósticos e sucesso cirúrgico foram utilizados os testes de 𝜒2 de independência, Wilcoxon e T-student, de acordo com as variáveis em estudo. Um valor p <0,05 foi considerado estatisticamente significativo. A análise estatística dos dados foi realizada com o software JASP 0.16 para MacOs X.
Resultados
Foram analisadas 126 cirurgias, tendo sido excluídos 69 ouvidos. Dos 57 ouvidos considerados, havia um caso bilateral. A maioria era do género masculino (56%). A média de idades no momento da cirurgia foi de 10,4 ( 3,2 anos (6-17 anos), tendo 37% menos de 9 anos, 40% entre 9-12 anos e 23% mais de 12 anos. A caracterização clínica da população estudada encontra-se na Tabela 1.
Relativamente à presença de comorbilidades, 32% tinham história de rinite e 9% apresentavam malformações craniofaciais, incluindo fenda palatina (n=1), síndrome de Down (n=1), craniossinostose (n=1), síndrome KBG (n=1) e síndrome de Barakat (n=1). Previamente à miringoplastia, 52% dos doentes tinham sido submetidos a colocação de TVTT. Foi possível identificar uma etiologia provável para a perfuração em 50 doentes. Na maioria, as perfurações surgiram após colocação de TVTT (tubos de Shepard em 92% das perfurações pós-tubo) e em 40% após otites de repetição ou otite média aguda supurada. Num caso a perfuração foi traumática. O ouvido contralateral não tinha qualquer alteração em 54% dos casos sendo que, nos restantes, existia otite média crónica com perfuração (21%), otite média com efusão (4%), retração da pars tensa (4%). Em 17% dos casos existia história de timpanoplastia no ouvido contralateral.
No que se refere às características da perfuração, a maioria tinha localização central (91%) e envolvia apenas um quadrante da pars tensa (60%), sendo o ântero-inferior o mais frequentemente afectado (73%). 16% das perfurações eram subtotais e em 7% dos casos envolviam o anullus timpânico. Cerca de um terço dos casos apresentava focos de miringosclerose (32%).
A via de abordagem retro-auricular foi usada em 98% dos casos, sendo a via transcanalar utilizada em apenas um doente. Na maioria dos ouvidos foi empregue enxerto de fascia temporalis (93%), sendo aplicado enxerto de cartilagem ou misto (fáscia e cartilagem) em 2% e 5% dos casos, respectivamente. A técnica underlay (96%) foi preferida à técnica onlay (4%). Foi realizada secção do umbo em 7% dos casos e calibragem do canal auditivo externo em 11%. No momento da cirurgia, 89% dos ouvidos encontravam-se sem sinais inflamatórios. Ocorreu complicação cirúrgica em apenas um caso, com aparecimento tardio de paresia facial homolateral grau II de House-Brackmann (2º dia pós-operatório), com recuperação completa.
O sucesso cirúrgico avaliado três meses após a cirurgia foi de 89% (51/57). Os ouvidos foram seguidos em média durante 30 ( 21 meses (3-69 meses), tendo sido observada recidiva da perfuração em 16% (n=9) dos doentes, em média aos 14,6 ( 11,9 meses (4-45), totalizando 26% de insucesso clínico (n=15) quanto à manutenção da integridade do tímpano.
A análise de sobrevivência mostra que aos 12 e 24 meses, a taxa de sucesso era respetivamente de 77(6% e de 71(9% (Figura 1).
A figura 2 ilustra a relação da idade com o sucesso cirúrgico da miringoplastia. Entre os doentes com perfuração residual ou recorrente (n=15), três foram submetidos a nova miringoplastia com sucesso e um encerrou a perfuração espontaneamente.
Na última observação, a otoscopia revelou alterações patológicas em 25% dos ouvidos operados, incluindo alteração estrutural da membrana timpânica (7%), otite média com efusão (3%) e perfuração residual (15%).
Audiometricamente, o encerramento da perfuração permitiu uma melhoria significativa da audição. O limiar tonal da via aérea melhorou de 24,9 dB para 20,7 dB (p=0,037) e o Rinne audiométrico diminuiu de 21,2 dB para 15,4 dB (p=0,002), obtendo-se um Rinne < 10 dB em 51% dos ouvidos (Tabela 2).
LTM-VO: limiar tonal médio da via óssea. LTM-VA: limiar tonal médio da via aérea. * Valor estatisticamente significativo (p < 0,05).
Foram analisados factores de prognóstico que pudessem contribuir para a taxa de recorrência da perfuração ao longo do período de seguimento do estudo, sendo que nenhum factor mostrou significado estatístico (p < 0,05) (Tabela 3).
Do ponto de vista dos resultados funcionais, a presença de malformação craniofacial foi o único fator analisado que mostrou diminuir significativamente a probabilidade de encerramento do Rinne audiométrico (p=0,034).
Discussão
Neste estudo foi considerado como desfecho primário o sucesso da cirurgia no encerramento da perfuração, num período de seguimento médio global de 30 meses. Se aos 3 meses o sucesso da cirurgia era estimado em 89%, na totalidade do tempo de seguimento 74% dos ouvidos mantiveram a membrana timpânica íntegra. A análise de sobrevivência revelou um sucesso aos 12 meses de 77% e de 71% aos 24 meses. Estes resultados estão de acordo com o descrito na literatura internacional onde constam taxas de sucesso de 76-90%, avaliadas em diferentes momentos pós-operatórios, entre o 1º e 12º mês após a cirurgia. 1,7-14 Segundo Sanchez Barrueco o risco de recorrência após seis meses é inferior a 2%,9 mas a nossa coorte - com um tempo de seguimento particularmente elevado - está de acordo com o descrito por outros autores, ao apontar para o risco de perfurações tardias, em média aos 14,3 meses. (5
Nos doentes avaliados neste estudo, a técnica cirúrgica mais utilizada foi a via de abordagem retro-auricular com enxerto de fascia temporalis underlay. Embora mais laboriosa do que outras técnicas, esta abordagem permite uma ótima exposição, particularmente do quadrante ântero-inferior, que se encontrava envolvido em 73% dos casos desta amostra. De acordo com a literatura, a taxa de sucesso do enxerto de fascia temporalis é semelhante à do enxerto composto de cartilagem e pericôndrio, embora frequentemente sejam escolhidas para indicações diferentes. (1
A idade dos doentes é um dos fatores prognósticos mais discutidos no que se refere à recorrência das perfurações, principalmente pela influência teorizada da função da trompa de Eustáquio nos resultados cirúrgicos. No entanto, na prática esse efeito tem sido difícil de quantificar. Yegin et al. não encontraram relação entre as dimensões da trompa de Eustáquio e o sucesso da timpanoplastia15 e Ribeiro et al. não acharam relação significativa entre os resultados da timpanometria e o sucesso cirúrgico. (16
Na nossa prática clínica a idade, por si só, não é um fator condicionante para a realização de miringoplastia, sendo considerados mais importantes outros factores como a estabilidade da patologia nasossinusal e o estado do ouvido contralateral. Apesar de Rozendorn et al. concluírem que doentes com menos de nove anos têm piores resultados cirúrgicos, (17 a maioria da evidência sugere que a idade não tem um impacto isolado, (1,12,18 o que está de acordo com os resultados do nosso estudo.
Entre outros fatores de prognóstico para o sucesso da cirurgia amplamente discutidos na literatura estão a localização e tamanho da perfuração. O tamanho parece ser mais importante do que a localização, de acordo com a maioria da evidência. (1,10,11,19 No entanto, na nossa amostra, não foi possível demonstrar relação estatisticamente significativa entre o sucesso da cirurgia e a existência de perfuração de grande dimensão (subtotal), localização ou atingimento do anullus timpânico.
O efeito da presença de miringosclerose17), (20 e da colocação prévia de TVTT9,10 têm evidência contraditória na literatura quanto à influência nos resultados cirúrgicos e no presente estudo não se demonstrou relação significativa com a taxa de sucesso cirúrgico. Por outro lado, a presença de inflamação da mucosa do ouvido médio no momento da cirurgia não teve impacto nos resultados desta amostra, o que está de acordo com outros estudos. (1
Simon et al. estudaram a influência de rinite alérgica no sucesso da miringoplastia, não tendo encontrado qualquer associação (5, à semelhança do encontrado no nosso estudo.
A literatura mostra que o efeito das malformações craniofaciais no sucesso das miringoplastias não é significativo. (5,9 Porém, no nosso estudo a sua presença influenciou negativamente e de forma significativa o resultado audiométrico. De notar que dois dos cinco doentes com malformação craniofacial, um doente com síndrome de Down e outro com fenda palatina, desenvolveram otite média com efusão após encerramento da perfuração timpânica. Devido a esse risco, alguns autores têm defendido a colocação de TVTT no momento do encerramento da perfuração em doentes com malformações craniofaciais, 4,21 o que não é prática no nosso centro.
Quanto aos resultados audiométricos, o limiar tonal médio e o Rinne audiométrico melhoraram significativamente. No entanto, apesar de a cadeia ossicular estar aparentemente íntegra nos doentes submetidos a miringoplastia, obteve-se um Rinne audiométrico inferior a 10 dB em apenas 51% dos casos. Neste estudo, apenas a presença de malformações cranioencefálicas influenciaram negativamente o encerramento do Rinne audiométrico. É muito difícil comparar os resultados audiométricos entre diferentes estudos, dada a heterogeneidade dos critérios de avaliação e forma de apresentação dos mesmos. Como referência considera-se a meta-análise de Tan et al., (1 em que 42% dos doentes avaliados obtiveram um encerramento do Rinne audiométrico, comparativamente a 51% na nossa amostra. De facto, os resultados são difíceis de prever, provavelmente devido à formação de tecido cicatricial ou aumento da espessura da membrana timpânica. Este facto, amplamente conhecido pelos otologistas, deve sempre ser discutido com as famílias dos doentes.
Este estudo tem várias limitações, desde logo pelo seu carácter retrospectivo e inerente dificuldade em obter dados clínicos sistematizados e completos em todos doentes. Por este motivo, não foi possível incluir informação suficiente relativa à história de adenoidectomia prévia, o que teria sido interessante para a análise dos resultados, uma vez que é um factor descrito como associado a melhor prognóstico cirúrgico. (10,16. Outra limitação importante é o facto de as cirurgias não terem sido realizadas pelo mesmo cirurgião, o que introduz variabilidade na técnica utilizada e resultados obtidos. Por outro lado, a caracterização do tamanho e localização da perfuração foi realizada de forma subjetiva pelo cirurgião no momento da cirurgia e sem recurso a uma medida quantitativa o que limita a possibilidade de comparação objetiva entre os sujeitos da amostra. Acresce também a insuficiente caracterização de eventuais complicações cirúrgicas ou pós-operatórias nos registos clínicos de todos os doentes, o que inviabilizou a análise descritiva desta variável. Finalmente, a amostra considerada no estudo pode representar um viés de seleção, já que os doentes observados num hospital pediátrico terciário têm grande prevalência de outros fatores de risco otorrinolaringológicos, como malformações craniofaciais e patologia nasossinusal grave.
Os pontos fortes deste estudo são o longo tempo de seguimento pós-operatório dos doentes (30 ( 21 meses) e o facto de incluir uma percentagem significativa de crianças com menos de nove anos (37%), o que permitiu incluir e avaliar de forma representativa este grupo etário particular.
Conclusão
As miringoplastias, maioritariamente realizadas por abordagem retroauricular, com colocação de fascia temporalis underlay, tiveram uma taxa de sucesso a longo prazo de 74% na população em estudo após um tempo médio de seguimento de 30 meses. Esta técnica cirúrgica permitiu obter um ganho funcional significativo avaliado pela diminuição do limiar tonal médio e do Rinne audiométrico. Apenas a presença de malformações cranioencefálicas influenciaram negativamente o encerramento do Rinne audiométrico. Não se verificou associação estatisticamente significativa entre as restantes variáveis analisadas e o resultado do encerramento da perfuração ou resultado audiométrico pós-operatório.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.