Introdução
Sintomas como tonturas e/ou vertigens e instabilidade, embora sejam mais comuns nos adultos, não são raros na infância 1,2. A apresentação da vertigem varia de acordo com a idade da criança. Na maioria dos casos, um défice vestibular não causa uma marcada incapacidade nas crianças, mas pode levar ao atraso na concretização de algumas etapas de desenvolvimento. Podem frequentemente ser rotuladas como "crianças desajeitadas ou descoordenadas". Na literatura, cerca de 70 % dos casos de tonturas e vertigem na infância, são devidos a vertigem paroxística benigna da infância (VPBI), enxaqueca vestibular (EV), infeção viral, traumatismo craniano e a otite média 1,3,4. As síndromes relacionadas com a enxaqueca, VPBI e EV, são a causa mais comum desta sintomatologia 1,2,5. A VPBI, considerada um percursor da enxaqueca, é a causa mais comum de vertigem em crianças até aos 6 anos de idade, enquanto a EV manifesta-se em crianças mais velhas 6. Recentemente, o termo VPBI foi substituído pelo termo “vertigem recorrente da infância” segundo a sociedade de Bárány 7. O sistema vestibular parece ser importante para o normal desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças 8. As perturbações vestibulares podem levar a comportamentos de evitação, com efeitos adversos no desempenho académico e na qualidade de vida 4. Deste modo, é importante um diagnóstico célere, permitindo a resolução da patologia ou o controlo sintomático. Frequentemente, ao contrário dos adultos, as crianças mais novas ainda não desenvolveram a linguagem necessária para expressar a natureza específica dos seus sintomas, a duração dos episódios e o que os provoca ou acompanha2. Além disso, os testes vestibulares, tanto clínicos como neurofisiológicos, não são uniformemente fiáveis nos mais jovens6. Tais dificuldades tornam difícil determinar a origem e a gravidade do problema de equilíbrio e podem atrasar a intervenção 1,6.
Existem vários instrumentos para avaliar a presença, a gravidade, e o impacto dos sintomas vestibulares em adultos. Atualmente, poucos estão disponíveis para a população pediátrica. Em 2015, McCaslin et al. adaptou o DHI para ser respondido pelos cuidadores das crianças dos 5 aos 12 anos (DHI-PC), uma vez que nos doentes mais jovens são os cuidadores que fornecem a história clínica, tendo um importante papel na determinação do défice de equilíbrio1.
Não se tem conhecimento que tenha sido feita a adaptação cultural do DHI-PC para Portugal. Este trabalho tem como objetivo a tradução para português europeu e adaptação cultural para Portugal do questionário “Vanderbilt Pediatric Dizziness Handicap Inventory for Patient caregivers” (DHI-PC) para utilização em crianças portuguesas com sintomas vestibulares.
Material e Métodos
Este trabalho foi desenvolvido num hospital terciário de Lisboa entre Janeiro e Outubro de 2021. Foi solicitado e obtido o consentimento da comissão de ética da instituição, bem como o consentimento formal da equipa que desenvolveu a versão original do instrumento para a sua tradução e aplicação, através do endereço de email. Os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.
O processo de adaptação foi baseado nas etapas recomendadas por Beatonet al. 9, que já tinham sido utilizado para traduzir e adaptar culturalmente outro questionário 10. A sequência metodológica utilizada foi a seguinte: tradução para português, discussão em grupos focais, tradução retrógrada para inglês e validação pela equipa responsável pelo instrumento original. Foram realizados três grupos focais para avaliar a preservação do constructo e a correta compreensão de frases e expressões. O consentimento informado por escrito foi obtido antes do início dos grupos focais. Estes foram constituídos, um por cuidadores de crianças acompanhadas na consulta de vertigem, outro por crianças acompanhadas na consulta de vertigem com idades entre os 8 e os 17 anos e outro por professores a lecionar na escola da instituição. Participaram nos grupos focais, 8 crianças e 16 cuidadores e ainda 4 professores a lecionar na escola da nossa instituição. Metade das crianças eram do sexo feminino, com idades entre os 8 e os 15 anos, com uma média de idades de 12 anos. Foram critérios de exclusão os pais/cuidadores e crianças que não entendiam a língua portuguesa, crianças com atraso do desenvolvimento ou com morbilidade neurológica ou limitações ortopédicas.
A versão original do instrumento possui 21 questões, a ser respondidas pelo cuidador da criança. A pontuação total no DHI-PC de 0 a 16 indica que não existe limitação na atividade diária da criança devido a um problema vestibular. Uma pontuação de 16 a 26 é indicativa de limitação leve, enquanto a pontuação de 26 a 43 é considerada uma limitação moderada. Se a pontuação for superior a 43 indica uma limitação severa. 1
Resultados
A versão original do DHI-PC (Fig. 1) foi traduzida para português europeu por 2 tradutores bilingues independentes, com utilização independente da língua inglesa e cuja língua materna foi a língua para a qual a tradução foi feita (ambos sem formação médica). Os 2 tradutores e a equipa de investigação (constituída por 6 médicos da especialidade de Otorrinolaringologia) reviram conjuntamente as traduções até se chegar a consenso para uma versão inicial em português europeu (versão de consenso DHI-PC). Os participantes dos grupos focais pré-teste foram questionados relativamente à compreensão dos itens do questionário, aspetos duvidosos ou ambivalentes, e se apresentariam alguma observação e/ou sugestão de alteração. A discussão nos grupos foi conduzida até que nenhuma nova informação fosse apresentada. A equipa responsável pela adaptação chegou a consenso tendo em conta as alterações discutidas nos grupos focais, com o objetivo de conseguir uma equivalência semântica, idiomática, experimental e conceptual, que garantisse uma tradução precisa e uma adaptação cultural adequada. Deste modo, surgiu a versão de consenso pré-final do instrumento, em português, para aplicação a crianças e adolescentes (Fig. 2). Os itens 1, 7, 8, 12 e 18 foram adaptados pela equipa de investigação (Tabela 1) após a discussão nos grupos focais. Relativamente às instruções do questionário, o painel de especialistas decidiu colocar apenas o termo “tontura” e não “tontura/vertigem” na tradução de “Dizziness”. A pontuação máxima do DHI-PC na população estudada foi de 72 pontos.
Esta versão pré-final foi retro traduzida para a sua língua original por 2 tradutores bilingues independentes, que não tinham visto a versão original, sem formação médica e cuja língua materna era a língua original utilizada no questionário. Das duas traduções surgiu uma versão de consenso final do DHI-PC. As traduções retrógradas foram enviadas à equipa responsável pelo instrumento original para revisão e aprovação formal.
Itens | Tradução literal | Tradução adaptada |
Item 1) | O problema do seu filho fá-lo sentir-se cansado? | O seu filho sente-se mais cansado por causa deste problema? |
Item 7) | Devido a este problema o seu filho fica tenso? | Devido a este problema o seu filho fica ansioso? |
Item 8) | As outras pessoas ficam enervadas com o problema do seu filho? | As outras pessoas ficam ansiosas com o problema do seu filho? |
Item 12) | Este problema faz com que o seu filho se sinta infeliz? | Este problema faz com que o seu filho se sinta triste? |
Item 18) | Devido a este problema, o seu filho tem dificuldade em andar de bicicleta? | Devido a este problema, o seu filho tem dificuldade em andar de bicicleta, trotinete ou patins? |
Discussão
Maioritariamente, o diagnóstico da patologia vestibular baseia-se na história clínica e na caracterização dos sintomas, o que pode dificultar o diagnóstico na população pediátrica.
Na população adulta, o “Dizziness Handicap Inventory” (DHI) 11 tem sido utilizado para quantificar o impacto das perturbações do equilíbrio, e foi traduzido e validado para vários países. A validação para a língua e população portuguesas, foi realizada por Garcia et al. em 2008 12. O DHI-PC, uma adaptação para idade pediátrica, a ser respondida pelos cuidadores, pode ser utilizado como o primeiro passo para avaliar o impacto que a patologia do equilíbrio tem na vida quotidiana de uma criança. É também uma ferramenta útil para determinar a magnitude do desequilíbrio quando existe uma história sugestiva, ou quando estamos perante uma criança com história de perda auditiva neurossensorial. Pode igualmente ajudar o clínico a determinar se se justifica a referenciação da criança para uma avaliação formal da função vestibular, bem como monitorizar a resposta ao tratamento instituído. O DHI-PC foi traduzido e posteriormente validado para utilização na população pediátrica coreana. 13
A simples tradução de um questionário pode levar a interpretações erradas devido a diferenças culturais e idiomáticas (9). Relativamente às instruções do questionário, foi colocado apenas o termo “tontura” e não “tontura/vertigem” na tradução de “Dizziness”, para simplificação e melhor compreensão pela população portuguesa. Pelo mesmo motivo, em relação ao item 7, o painel decidiu substituir a tradução literal “tenso” da palavra “tense” pelo termo “ansioso”.
Após a discussão em grupos focais, o comité de especialistas decidiu alterar o item 1, em grande parte devido ao facto de a maioria dos pais/cuidadores interpretar de forma errada a tradução realizada (tabela 1). Na correção estrutural da frase, o sentido original da frase mantem-se e esta torna-se mais percetível. Nos itens 8 e 12, decidiu-se substituir os termos usados na tradução literal “enervadas” e “infeliz” respetivamente, dada a conotação demasiado negativa em português europeu. No item 18, optou-se por sugerir como exemplo “andar de trotinete ou patins” em vez de “scooter” para uma melhor adaptação à realidade das crianças portuguesas.
Após a fase de adaptação cultural do DHI-PC, verificar-se-á se a nova versão mantém as propriedades psicométricas do instrumento original. É importante a avaliação da validade (capacidade discriminativa), da fiabilidade (correlações item/escala e consistência interna, e confiança teste-reteste) e da resposta à alteração clínica, o que constitui uma limitação deste estudo. Esta limitação será retificada após avaliação da validade do instrumento e será possível utilizar o instrumento na prática clínica ou em investigação.
Consideramos importante para a atividade clínica a validação deste instrumento para avaliação e acompanhamento dos doentes em idade pediátrica, que se apresentam com sintomas de vertigem, instabilidade e/ou tontura. A utilização clínica de instrumentos internacionais já validados e com adaptação cultural a Portugal permite a comparação de resultados quando os instrumentos são aplicados em países com diferentes contextos culturais.
Conclusão
A versão original do questionário “Vanderbilt Pediatric Dizziness Handicap Inventory for Patient caregivers” foi traduzida e adaptada para uso na população pediátrica que apresente sintomas vestibulares. A sua validação, realizada numa segunda fase, permitirá a sua utilização clínica para avaliação e acompanhamento das crianças portuguesas com patologia vestibular.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.