Introdução
A otosclerose é uma das doenças otológicas mais frequentes, com uma prevalência clínica estimada entre 0.3% a 0.4% da população. É uma doença com preponderância no sexo feminino e manifesta-se tipicamente entre a 3ª e a 4ª décadas de vida. Cursa com surdez de condução progressiva secundária a fixação otospongiótica da platina do estribo, podendo evoluir até envolver a cóclea e condicionar também uma perda auditiva neurossensorial.1
A componente auditiva da otosclerose está bem estudada e descrita de forma compreensiva na literatura. (2,3 No entanto, a evidência relativa ao compromisso vestibular é escassa. Estudos recentes sugerem que poderá haver algum grau de atingimento do sistema vestibular em doentes com otosclerose, com potencial de ser objetivado por via de uma avaliação vestibular compreensiva, nomeadamente recorrendo ao video head impulse test (vHIT), provas calóricas e potenciais evocados miogénicos vestibulares cervicais (cVEMPs) e oculares (oVEMPs). (4-6 No entanto, não existe ainda um consenso relativamente à etiologia e fisiopatologia deste compromisso vestibular, assim como à melhor forma de o avaliar.
O objetivo deste estudo foi caracterizar a função vestibular de uma população com otosclerose não operada, recorrendo ao video head impulse test (vHIT), e a qualidade de vida relacionada com sintomas vestibulares com recurso ao questionário Dizziness Handicap Inventory (DHI), assim como compará-las com uma população saudável.
Material e Métodos
Amostra
Estudo transversal observacional de caso-e-controlo. Foram recrutados participantes entre outubro de 2022 e fevereiro de 2023, tendo estes sido divididos em 2 grupos. O primeiro grupo (Casos), é composto por doentes com otosclerose provenientes da consulta de otorrinolaringologia de um hospital terciário (Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga), recrutados por amostragem consecutiva. Os critérios de inclusão foram a suspeita clínica e audiológica de otosclerose (evidência de hipoacusia de condução com uma membrana timpânica íntegra), com doença uni ou bilateral em ouvidos não previamente operados, e cujo diagnóstico foi confirmado a posteriori intra-operatoriamente. Os critérios de exclusão definidos foram a presença de patologia vestibular, história de cirurgia otológica prévia, otite média crónica e a ausência de confirmação cirúrgica do diagnóstico.
Foi também incluído no presente estudo um grupo de Controlo, que inclui uma amostra de controlos hospitalares saudáveis recrutados através de uma amostragem por conveniência, sem antecedentes de patologia otológica ou vestibular, ajustados para idade e sexo.
Avaliação Vestibular
A função vestibular foi avaliada pré-operatoriamente com recurso ao sistema Video Head Impulse Test (vHIT) (ICS Impulse System, GN Otometrics). Após uma avaliação inicial para a presença de nistagmo espontâneo, o aparelho foi calibrado e o exame foi realizado com 20 colheitas de impulso cefálico para cada direção em cada um dos 3 planos vestibulares - Horizontal, RALP (right anterior/left posterior) e LARP (left anterior/right posterior). Os critérios utilizados para definir uma disfunção de canal semicircular foram ganhos inferiores a 0.8 (nos canais semicirculares horizontais) ou 0.7 (nos canais semicirculares verticais), assimetria >15%, assim como a presença de sacadas corretivas (overt e covert), definidas como patológicas de acordo com o software do sistema, após inspeção visual do traçado para exclusão de artefactos. (7 Os exames foram levados a cabo por um médico ou um audiologista com experiência na sua execução.
Foi também aplicado o questionário Dizziness Handicap Inventory (DHI), nomeadamente a sua versão traduzida e validada em português8, composto por 25 itens (pontuados de 0 a 4) referentes à avaliação subjetiva da sintomatologia vestibular e do equilíbrio, e consequentemente à qualidade de vida associada a estes sintomas. Este questionário encontra-se subdividido em 3 domínios, nomeadamente o físico, funcional e emocional.
Análise Estatística
Foi utilizada estatística descritiva para documentar as características da população. A distribuição normal foi avaliada através de inspeção visual de histograma. As variáveis categóricas estão apresentadas como frequências e percentagens (n, %) e as variáveis contínuas normais como média ± desvio padrão (DP). Foram utilizados o testes não-paramétricos de Mann-Whitney, Wilcoxon e Kruskal-Wallis para comparar o ganho médio do reflexo vestíbulo-ocular (VOR) dos canais semicirculares entre grupos, tendo sido utilizado o teste de Mann-Whitney para comparar a pontuação obtida no DHI. Foi aplicado o teste Exato de Fisher para comparar a presença de sacadas corretivas no vHIT entre ambos os grupos.
Todos os dados foram processados e analisados utilizando o software IBM SPSS Statistics, versão 27, tendo sido definido um cutoff de p<0.05 para definição de significância estatística.
Consentimento Informado
Todos os procedimentos levados a cabo neste estudo estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pela Comissão para Investigação Clínica e Ética da instituição e de acordo com a Declaração de Helsínquia de 1964 da Associação Médica Mundial e posteriores revisões. O trabalho recebeu parecer positivo e aprovação por parte da comissão de ética supracitada, com a referência CES N.º 57_2022. Foi fornecido um consentimento informado para participação no estudo, tendo sido assinado por todos os participantes.
Resultados
Caracterização da amostra
A amostra final continha um total de 24 participantes, dos quais 12 no grupo de otosclerose e 12 no de controlo. Um total de 22 participantes (91.6%) era do sexo feminino e a idade média nos 2 braços era de 44 ± 8 anos. No grupo de otosclerose, de referir que 6 doentes (50%) apresentavam suspeita clínica e audiológica de doença bilateral à data do diagnóstico, e nenhum apresentava evidência de otosclerose coclear9 (definida como hipoacusia neurossensorial ou mista atribuível à doença).
A tabela 1 apresenta as características clínicas e demográficas da amostra incluída.
Análise comparativa dos resultados do vHIT
Os ganhos médios do VOR dos canais semicirculares horizontais no grupo de otosclerose e no grupo de controlo foram de 0.97 e 1.04 para o ouvido direito, e de 0.90 e 0.97 para o ouvido esquerdo respetivamente. Esta diferença nos resultados não se demonstrou estatisticamente significativa (Man-Whitney p=0.89 à direita e p=0.76 à esquerda). O mesmo se verificou para os restantes canais semicirculares, assim como para a presença de sacadas corretivas (Fisher p=0.32). Os resultados supracitados encontram-se ilustrados na tabela 2.
Foi posteriormente levada a cabo uma análise por subgrupos, comparando os ganhos do VOR dos três pares de canais semicirculares entre os subgrupos controlo, otosclerose unilateral e otosclerose bilateral. Não se registou uma diferença significativa entre os ganhos médios ao longo dos três subgrupos para nenhum dos canais (Kruskal-Wallis p>0.05), assim como para cada conjunto de dois subgrupos individualmente (Man-Whitney p>0.05).
Ao comparar os resultados obtidos entre os ganhos dos canais semicirculares horizontais direito e esquerdo em toda a amostra, observou-se uma superioridade estatisticamente significativa para as medições à direita (Wilcoxon p<0.001), não tendo sido realizada uma análise a nível de ouvido afetado.
Análise Comparativa dos resultados obtidos no DHI
No que diz respeito ao DHI, verificou-se uma diferença estatisticamente significativa entre a pontuação total média do grupo com otosclerose e a do grupo controlo (24.1 vs. 6.3; Mann-Whitney p<0.01). O mesmo se verificou para as 3 componentes do DHI (física, funcional e emocional). Os resultados respeitantes à análise comparativa da pontuação do DHI encontram-se ilustrados na tabela 3.
Discussão
A otosclerose é uma das causas mais frequentes de hipoacusia progressiva na população adulta. (2 No entanto, apesar da sua aparente relação com sintomas vestibulares, a evidência objetiva relativa ao atingimento vestibular per se é escassa, tendo vindo recentemente a ser alvo de investigação clínica. (4-6
A associação entre a otosclerose e a sintomatologia vertiginosa e do equilíbrio tem vindo a ser descrita na literatura ao longo do tempo. (10-12 Uma das causas propostas como possível etiologia para estes sintomas é o atingimento otosclerótico do próprio órgão vestibular, com alguma evidência histopatológica que o suporta. (11,13 Outra teoria refere que este atingimento se dá a nível do gânglio vestibular de Scarpa. (14 No entanto, existe sempre a possibilidade de a sintomatologia reportada pode corresponder patologia vestibular concomitante. (15 Estão reportados na literatura casos isolados de vertigem posicional paroxística benigna (VPPB) que poderão estar relacionados com a localização e extensão da otosclerose16, e que parecem ser mais comuns no período pós-operatório precoce devido ao trauma cirúrgico. (17
Passando para a perspetiva dos estudos mais recentes que procuraram avaliar esta temática, Catalano et al. (4 analisaram prospectivamente uma amostra de doentes com otosclerose comparativamente a um grupo de controlo, tendo sido feita uma avaliação pré e pós-operatória. Apesar de reportarem uma ausência de diferença significativa nos parâmetros medidos pelo vHIT entre os 2 grupos, os autores sugerem um papel dos cVEMPS na avaliação da vertigem pós-operatória, apontando para uma possível disfunção sacular de etiologia traumática devido à sua proximidade da janela oval.
Por outro lado, Satar et al. (5 colocam uma hipótese semelhante, comparando doentes com otosclerose previamente operados, não previamente operados e um grupo controlo. Os achados reportados pela equipa apontam para uma redução significativa dos ganhos dos canais semicirculares horizontais nos grupos de otosclerose, assim como uma maior prevalência de sacadas corretivas.
Mais recentemente, Rajati et al. (6 procuraram estudar a mesma problemática com uma amostra maior e de forma mais abrangente. Os investigadores reportam uma disfunção vestibular no grupo de otosclerose através de um atingimento do sistema otolítico, objetivado por resultados alterados nos oVEMPs e cVEMPs, assim como dos canais semicirculares, através das provas calóricas e do vHIT (cujos ganhos demostraram ser significativamente inferiores em comparação com o grupo de controlo).
Até à data, no conhecimento dos autores, nenhum estudo publicado na literatura procurou avaliar subjetivamente a qualidade de vida relacionada com sintomatologia vestibular em doentes com otosclerose através de um estudo comparativo com uma população saudável.
Os achados elencados no presente estudo não parecem indicar uma diferença significativa dos resultados do video head impulse test no grupo com otosclerose (doença unilateral e bilateral) comparativamente ao grupo de controlo, nomeadamente nos ganhos calculados para o reflexo vestíbulo-ocular dos canais semicirculares e na presença de sacadas corretivas (Tabela 2).
Por outro lado, a pontuação total obtida no questionário DHI, assim como as pontuações parcelares atribuídas aos três domínios do questionário (físico, funcional e emocional) apresentaram uma diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos em estudo (Tabela 3).
Assim, o conjunto dos dados apresentados permite inferir que há uma eventual relação entre a otosclerose e uma maior prevalência de sintomatologia vestibular, que não parece ser explicada por uma disfunção dos canais semicirculares objetivada pelo vHIT.
Os achados apresentados estão em concordância com os resultados obtidos por Catalano et al. (4, que apontam para uma ausência de efeito da otosclerose na função dos canais semicirculares, mensurável através do vHIT. No entanto, estes achados divergem dos dois estudos mais recentes sobre o tema (Satar et al. (5 e Rajati et al. (6), que reportam atingimento deste sistema.
A principal limitação do presente estudo prende-se com o reduzido tamanho amostral, que condiciona uma diminuição da capacidade de medição de efeito. É também importante realçar o facto de a análise ter sido realizada a nível do indivíduo e não a nível do ouvido afetado, uma vez que isto pode ter implicações na análise estatística nomeadamente na inclusão de ouvidos saudáveis no grupo de otosclerose unilateral. O fator determinante para esta limitação corresponde ao facto do aparelho utilizado (ICS Impulse System, GN Otometrics) ser um sistema de captação monocular, que tende a sobrestimar os ganhos do lado onde a câmara se encontra instalada (lado direito). A utilização de um sistema de captação binocular seria útil para contornar esta limitação.
No que diz respeito à execução do vHIT, ressalva-se a limitação de os exames terem sido realizados por mais que um operador, com possíveis vieses de técnica inerentes. Outra limitação importante, transversal a todos os estudos que avaliem respostas a questionários, prende-se com a grande subjetividade de interpretação e preenchimento, assim como possíveis fatores excecionais não passíveis de controlo que possam influenciar o inquirido no momento do preenchimento.
No futuro, esta problemática deverá ser abordada com amostras maiores, procurando realizar um estudo compreensivo de todos os componentes da função vestibular de forma a ter uma avaliação global destes doentes. Deverá também ser empregue uma avaliação comparativa pré e pós-operatória, com o intuito de compreender o impacto da estapedotomia na função vestibular, assim como avaliar a presença de possíveis fatores modificadores
Conclusões
Este estudo permite verificar um compromisso funcional subjetivo do equilíbrio em doentes com otosclerose (tal como demonstrado pelo questionário DHI), que não parece estar associado a uma disfunção dos canais semicirculares evidente no vHIT. Estudos futuros deverão procurar avaliar esta problemática com amostras maiores, assim como avaliar os restantes componentes da função vestibular em doentes com otosclerose, nomeadamente através de VEMPs e provas calóricas.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.