Introdução
A discinésia ciliar primária (DCP) é uma doença genética rara caracterizada por uma anormalidade da função ou da estrutura dos cílios que compromete a depuração ciliar. Apresenta uma prevalência de 1/20000 nascimentos e tem uma transmissão autossómica recessiva ou ligada ao cromossoma X.1 Cursa habitualmente com alterações pulmonares (bronquiectasias crónicas ou infeções de repetição), manifestações nasossinusais e otológicas (rinossinusite crónica e otite média). Podem surgir, menos frequentemente, distúrbios da fertilidade e, raramente, hidrocefalia, malformações cardíacas, patologia esofágica ou atresia biliar. 2 O situs inversus é classicamente descrito em 50% dos doentes com DCP e constitui a síndrome de Kartagener quando associado a bronquiectasias e rinossinusite crónica. 3
A principal manifestação otológica da DCP é a otite média com efusão (OME). 4 A mucosa do ouvido médio é constituída por epitélio do tipo respiratório (cilíndrico ciliado). 5 Deste modo, nos doentes com DCP, a função mucociliar está comprometida, assim como a viscosidade das efusões, levando à OME. Além desta, complicações otológicas como perfuração timpânica, bolsas de retração e colesteatoma são observados em fases mais avançadas. 6,7 Consequentemente, a perda auditiva afeta quase 50% dos adultos com DCP. 8,9
Na população em geral, a indicação para miringotomia com colocação de tubos de ventilação transtimpânicos é a OME persistente com 3 meses de evolução, sem resposta ao tratamento médico, cursando com surdez de transmissão (limiares médios de condução de via aérea superiores a 20 dB) ou otite média aguda de repetição (OMAr), com recorrência de 3 episódios de OMA em 6 meses ou 4 episódios em 12 meses. 10
Contudo, especificamente na DCP, a inserção de TVTT é ainda um tratamento controverso da OME e da OMAr. 11,12 De facto, a superioridade da inserção de TVTT sobre o tratamento médico não foi comprovada em relação à melhoria da audição. 13,14 Além disso, a otorreia pós-operatória persistente é um efeito colateral frequente e problemático da miringotomia com TVTT, em particular nos doentes com DCP, afetando aproximadamente 50% dos casos, podendo complicar o uso e tolerância de aparelhos auditivos. 15
Uma opção a considerar na reabilitação auditiva nos doentes com DCP, são os implantes de condução óssea. Os implantes de condução óssea utilizam a vibração óssea para estimular diretamente a cóclea, ultrapassando as estruturas do ouvido externo e médio. São divididos em implantes de condução óssea percutâneos (penetram a pele) e transcutâneos (não penetram a pela), sendo estes últimos divididos em passivos e ativos. Estão indicados em casos de surdez de condução/mista ou surdez neurossensorial unilateral, quando os aparelhos auditivos convencionais não são indicados ou tolerados. 16
Caso clínico
SMFR, 52 anos, sexo feminino, raça caucasiana, com antecedentes pessoais de síndrome de Kartagener e depressão major, é seguida na consulta de Otorrinolaringologia (ORL) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra por rinossinusite crónica e otite média crónica bilateral, desde 2000. Está medicada habitualmente com formoterol associado a budesonida em suspensão aerossol, fluticasona nasal, montelucaste, mirtazapina e alprazolam e desconhece alergias a medicamentos. Tem como antecedentes cirúrgicos, miringotomia com colocação de tubos de TVTT de longa duração por 3 vezes (2001, 2008 e 2017) e cirurgia funcional nasal com antrostomia e etmoidectomia completa bilateralmente, em 2013. Apresentava as queixas nasais estáveis, cumprindo higiene nasal regular e terapêutica médica tópica, e tinha como principais queixas hipoacusia e diminuição da capacidade de discriminação, sem melhoria com o último tratamento cirúrgico dirigido. O exame geral ORL revelava otoscopia esquerda com presença de TVTT de longa duração normoposicionado, com presença de muco, e otoscopia direita com TVTT de longa duração igualmente normoposicionado, embora seco. Na rinoscopia anterior, salientar apenas hipertrofia bilateral dos cornetos inferiores, sem presença de rinorreia bilateralmente. A rinoendoscopia não revelava presença de polipose nasal, nem mucopús. A cavidade oral, a orofaringe e a palpação cervical não tinham alterações de relevo. O audiograma tonal simples mostrava uma surdez mista severa bilateral, com um Pure-Tone Average (PTA) de 82,5 dB à direita e de 80 dB à esquerda. O limiar médio da via óssea era de 36,25 db à direita e de 30 dB à esquerda. O audiograma vocal revelava um Speech Reception Threshold (SRT) de 75 dB bilateralmente.
O estudo imagiológico por tomografia computorizada dos ouvidos revelou padrão esclerótico de ambas as mastoides, com preenchimento tecidual das células mastoideias remanescentes e dos antros mastoideus. Existia extensão deste preenchimento tecidual às cavidades timpânicas, de forma mais significativa à esquerda, onde existia também extensão deste processo à vertente ântero-medial do meato auditivo externo, identificando-se presença de tubos de arejamento transtimpânicos bilateralmente. Existia opacificação bilateral dos recessos fenestrais e não foram identificadas alterações erosivas nas cadeias ossiculares, nos scuta ou nos tégmen tympani. Estas imagens sugeriam, pois, processo inflamatório otomastoideu crónico, mas sem a existência de colesteatoma. Não eram evidentes alterações da morfologia ou da permeabilidade das cócleas, dos vestíbulos, dos canais semicirculares ou dos aquedutos vestibulares. Os meatos auditivos internos apresentavam dimensões e morfologia normais, não se identificando preenchimentos anómalos das cisternas dos ângulos ponto-cerebelosos, com tradução tomodensitométrica. Os meatos auditivos externos encontravam-se permeáveis. Nos planos obtidos, observavam-se fenómenos de pansinusopatia inflamatória, com sinais sugestivos de cronicidade a nível esfenoidal e maxilar.
A doente foi seguida durante vários anos em consulta de ORL e foi-lhe repetido o estudo audiométrico seriado, apresentando, após a última colocação de TVTT, manutenção dos limares auditivos, dos achados ao exame objetivo e queixas de surdez incapacitante e dificuldades na comunicação no quotidiano. Foi considerada a opção de reabilitação auditiva com próteses auditivas, contudo, devido à otorreia persistente não foi tolerada.
Neste sentido, realizou ensaio de condução óssea, apresentando resultados favoráveis para o ouvido direito, tendo sido realizada cirurgia para implantação de dispositivo osteointegrado bone anchored hearing aid (BAHA) neste ouvido, que decorreu sem intercorrências. A escolha pelo ouvido direito teve por base os resultados do ensaio, a preferência da doente e por uma questão de organização espacial. Apesar do limiar ósseo ser melhor no ouvido esquerdo e à partida o desempenho protético neste ouvido parecer superior, os resultados do ensaio, o facto da doente ser secretária de profissão e, por uma questão de organização espacial, utilizar mais o lado direito, fizerem com que a escolha do ouvido a implantar fosse o direito. Em todos estes casos, priorizamos o ensaio relativamente ao audiograma vocal.
Após 4 semanas da cirurgia, colocou-se o processador (BAHA T Power), tendo decorrido a adaptação favoravelmente, com um tempo médio de uso de 10 horas por dia. Não se registaram intercorrências no período pós-operatório. O limiar auditivo médio em campo livre com o implante de condução óssea foi de 26,25 dB, sendo o SRT, no audiograma vocal, de 35 dB, atingindo a máxima inteligibilidade de 100% aos 50 dB.
A doente mantém seguimento em consulta de ORL para acompanhamento clínico, apresentando-se bastante satisfeita com os resultados audiométricos obtidos.
Discussão
As manifestações otológicas dos doentes com DCP devem-se à deficiente função ciliar do epitélio do ouvido médio e da tuba auditiva, prejudicando a clearance mucociliar e, assim, predispondo a ocorrência quase universal de OME e OMAr. 17 A surdez associada à OME na população em geral constitui uma indicação para a colocação de TVTT, contudo esta abordagem não é consensual para a reabilitação auditiva na população com DCP. 6 A inserção de TVTT em doentes com DCP apresenta eficácia limitada na reabilitação auditiva, uma vez que a otorreia, que é mais frequente nestes doentes, e a sua obstrução pelo glue viscoso do ouvido médio são sistemáticas e persistentes. Além disso, a colocação de TVTT repetida está associada a alto risco de perfuração timpânica persistente. 18,19 Ao contrário da OME na população geral, a causa não é consequência da má ventilação do ouvido médio, e isso explica o insucesso da colocação de TVTT, nestes doentes. Deste modo, pacientes com DCP que apresentem surdez acima de 25 dB, a decisão quanto ao tratamento com miringotomia e colocação de TVTT e a quase inevitável ocorrência de otorreia persistente deve ter em conta os seus riscos e benefícios, devendo-se considerar os aparelhos auditivos como opção de reabilitação auditiva. 20 A colocação de TVTT poderá evitar complicações de OMC resultantes de OME persistente em doentes com DCP, contudo, estudos realizados indicam que o número de casos de bolsas de retração e de colesteatomas permaneceu baixo, no caso da sua não colocação, daí o seu uso ser ainda uma controvérsia e mais estudos serem necessários. 6
No nosso caso clínico, foram realizadas repetidas miringotomias com colocação de TVTT, que contribuíram, numa fase inicial, para a melhoria auditiva da doente, mas que, na fase avançada em que encontrámos a doente, não apresentou ganhos auditivos significativos. Por outro lado, a otorreia persistente fez com que a doente não conseguisse tolerar os aparelhos auditivos e, desta forma, melhorar as queixas de hipoacusia e diminuição da discriminação, que prejudicavam a comunicação da doente no seu quotidiano. Desta forma, a opção considerada foram os sistemas de implantação de condução óssea, tendo sido implantado cirurgicamente um dispositivo percutâneo de condução óssea BAHA, utilizando o processador T Power. Atualmente, sempre que possível, tende-se a utilizar sistemas de condução transcutâneos, uma vez serem mais estéticos e com menos complicações cutâneas. No entanto, os implantes percutâneos ainda têm as suas indicações em casos de perdas auditivas mistas onde os implantes transcutâneos não são suficientes, como é o caso apresentado.
No que respeita aos dispositivos transcutâneos passivos, da qual fazem parte o sistema BAHA Attract (Cochlear), nestes ocorre uma atenuação devido à perda de sinal durante a transmissão através da pele e tecidos moles. Esta atenuação é mais evidente em altas frequências e pode chegar até 25 dB em frequências de 6000 a 8000 Hz, quando comparadas a dispositivos percutâneos. 21
Quanto aos dispositivos transcutâneos ativos, estes incluem o Bonebridge (Medel) e o recentemente introduzido OSIA (Cochlear). O Bonebridge está indicado para pacientes com perda condutiva e mista com limiares auditivos de via óssea melhores ou iguais a 45 dB HL ou perda auditiva unilateral. 22 Quanto ao sistema OSIA, está indicado para pacientes com perda auditiva mista ou condutiva com limiares de via óssea de 55 dB HL ou melhor, e ainda perda auditiva unilateral. 23
Relativamente aos sistemas de condução óssea percutâneos, destaca-se o Ponto (Oticon Medical) e o Sistema BAHA Connect (Cochlear). Estão indicados para quadros de surdez de condução ou mista com um limiar ósseos inferior a 45 dB, tendo sido desenvolvidos processadores, no caso do sistema BAHA, que permitem uma adaptação de perdas auditivas até 65 dB de via óssea, nomeadamente através do processador T Power. 24 Desta forma, a escolha do BAHA com processador T Power foi condicionada pelos limiares ósseos a 60 dB em 2000 Hz no ouvido direito, motivo pela qual se optou por este implante e este tipo de processador.
As principais patologias otológicas dentro das indicações para implante de condução óssea são atresia do CAE, OMC, estenose de CAE, otosclerose, surdez unilateral e pós-mastoidectomia. Como indicações particulares, destacam-se casos de aqueduto vestibular alargado, displasia de Mondini e a discinésia ciliar primária, sendo esta última a patologia considerada neste caso clínico. 25 A doente apresentava uma surdez mista severa e, após a colocação do implante, o limiar auditivo médio em campo livre passou para 26,25 dB, sendo o SRT, no audiograma vocal, de 35 dB.
Conclusão
É fulcral um acompanhamento rigoroso dos doentes com DCP, devendo os médicos adotar uma conduta terapêutica específica. Nestes doentes, a inserção de TVTT é ainda um tratamento controverso da OME e da OMAr. A otorreia pós-operatória persistente é um efeito colateral frequente, podendo complicar o uso e tolerância dos aparelhos auditivos. Além destas, também os implantes de condução óssea devem ser considerados na reabilitação auditiva nos doentes com DCP, apresentando excelentes resultados audiométricos.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.
Proteção de pessoas e animais
Os autores declaram que os procedimentos seguidos estão de acordo com os regulamentos estabelecidos pelos diretores da Comissão para Investigação Clínica e Ética e de acordo com a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial.