Introdução
A dacriocistorrinostomia é o tratamento de eleição na resolução de epífora e dacriocistites de repetição, resultantes de uma obstrução anatómica ou funcional do saco ou ducto lacrimal.1-3 Este procedimento tem como objetivo a criação de uma comunicação direta entre o saco lacrimal e fossa nasal, criando um “shunt” à obstrução distal e/ou melhorando a drenagem da via lacrimal, resolvendo os sintomas obstrutivos.
A abordagem endonasal direta foi inicialmente descrita por Caldwell em 1893, caindo em desuso devido às dificuldades de visualização da anatomia da fossa nasal. Assim, a dacriocistorrinostomia por abordagem externa, descrita por Toti (1904), permaneceu como referência cirúrgica do tratamento da obstrução da via lacrimal durante várias décadas, apresentado taxas de sucesso entre os 90-95%.1,3-8
Com o desenvolvimento e inovação gerada pela experiência da endoscopia endoscópica endonasal e a adaptação das técnicas descritas por McDonogh e Meiring em 1989, a dacriocistorrinostomia endoscópica (DCRe) ganhou popularidade.5 Esta técnica permite uma abordagem menos invasiva, com preservação da pele, da função de bomba lacrimal do músculo orbicular palpebral e dos ramos periféricos dos ramos zigomáticos e bucal do facial, oferecendo ainda uma visão direta das estruturas endonasais e a possibilidade de realizar procedimentos acessórios, como a septoplastia. A esta técnica associa-se assim, a menor incidência de complicações, menor morbilidade e taxas de sucesso equivalentes. (1-3,9
Com os objetivos de avaliar a eficácia cirúrgica do procedimento e determinar fatores preditivos de sucesso cirúrgico desta técnica, os autores propuseram a realização de um estudo retrospetivo de doentes submetidos a DCRe.
Material e Métodos
Neste estudo retrospetivo incluíram-se os 82 doentes submetidos a DCRe entre janeiro de 2017 e dezembro de 2022, num centro terciário - Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Foram revistos os processos clínicos e registados os dados demográficos (idade e sexo), antecedentes pessoais, indicação cirúrgica, lateralidade, exames complementares de diagnóstico, nível de obstrução, variações da técnica cirúrgica (abertura da agger nasi, colocação de tubo de silicone, preservação do retalho mucoperiósteo e osteotomia do processo frontal do maxilar com recurso a broca), procedimentos acessórios intra-operatórios (septoplastia, turbinoplastia média, aplicação de mitomicina C e sinusotomia maxilar, etmoide e frontal), tempo de permanência do tubo de silicone (quando aplicável), complicações intra e pós-operatórias, sucesso clínico, sucesso cirúrgico e duração de seguimento pós-operatório.
Os autores preconizam a técnica cirúrgica descrita por Wormald3, realizada sob anestesia geral e que se descreve sumariamente: descongestionamento da mucosa nasal com solução contendo adrenalina (diluição 1:5000); confeção de retalho mucoperiosteal de base posterior com eletrocautério monopolar com ponta de colorado (incisão horizontal superior 8-10mm acima da axila do corneto médio); identificação e remoção do osso lacrimal; osteotomia ampla do processo frontal do seio maxilar com exposição do saco lacrimal até ao seu limite superior, posterior e anterior (com recurso a pinça Kerrison e broca); uncinectomia e abertura da agger nasi; remoção total ou “near-total” do mucoperiósteo, no último caso posicionando o remanescente apenas sobre osso exposto; dilatação dos puncta lacrimais e sondagem dos canalículos superior e inferior até alcançar o saco lacrimal; marsupialização do saco lacrimal e abertura anterior e posterior dos respetivos folhetos; passagem dos condutores e fixação do tubo de silicone com um tubo de silastic e clips cirúrgicos. Sempre que necessário foram adaptados passos cirúrgicos, descritos de seguida. Foi recomendada a realização de lavagens nasais a partir do primeiro dia de pós-operatório, assim como profilaxia antibiótica sistémica, aplicação de colírio oftálmico contendo corticoide e de corticoide tópico nasal, favorecendo a diminuição de edema e tecido de granulação. (1,11,12 Quando aplicado, o stent foi removido em média ao final de 7 semanas, sendo na maioria das vezes removido após 4 a 6 semanas.
O nível de obstrução da via lacrimal (desde os canalículos até à válvula de Hasner) foi definido com base na dacriocistografia (DCG), tendo sido também realizado estudo imagiológico por tomografia computorizada dos seios peri-nasais para avaliação anatómica e planeamento pré-operatório.
O sucesso clínico foi definido como a resolução completa dos sintomas relatados pelo doente e o sucesso cirúrgico, foi baseado em critérios endoscópicos do sucesso em alcançar um neo-óstio patente e sem obstrução, ambos avaliados a partir dos 6 meses de pós-operatório. 3,9
A análise estatística da amostra foi realizada com o programa IBM-SPSS ® v28.0 (Statistical Packages for the Social Sciences) e o teste qui quadrado foi aplicado para comparar as variáveis categóricas. O nível de significância foi estabelecido em 2% (p < 0.02).
Resultados
Durante o período de 6 anos, foram operados na nossa instituição 82 doentes [66 mulheres; idade média 63 anos (( = 17.71, mínimo 3 - máximo 87); <18 anos, n=5; 18-64 anos, n=26; ≥ 65 anos, n=59], totalizando 90 procedimentos cirúrgicos. A epífora foi a apresentação clínica mais comum em 59% (n=53), seguida de dacriocistites de repetição em 19% (n=19). As comorbilidades mais frequentemente associadas foram a hipertensão arterial (n=48), diabetes mellitus (n=23), hipotiroidismo (n=8) e outras (n=20), nas quais se incluíram a doença cardiovascular, renal, respiratória e oncológica. Apenas 5 doentes apresentavam hábitos tabágicos. A caracterização resumida da população é apresentada na tabela 1.
N (%) | ||
Sexo | Feminino | 66 (73) |
Masculino | 24 (27) | |
Clínica | Epífora | 53 (59) |
Dacriocistite de repetição | 19 (21) | |
Epífora + dacriocistite | 18 (20) | |
Cirurgia | Primária | 73 (81) |
Revisão | 17 (19) |
Legenda: Caracterização da população por sexo, apresentação clínica e tipo de cirurgia
O lado intervencionado foi o direito em 47%, esquerdo em 45% e bilateralmente em 8% (n=7), destes últimos 2 num único tempo e 5 em tempos cirúrgicos diferidos.
A DCG foi realizada em 72% dos doentes (n=65). A transição do saco-ducto lacrimal (válvula de Krause) foi o local de obstrução mais frequentemente acometido em 19% (n=14). Num caso não foi possível aceder aos resultados da DCG e noutro caso não foi identificada obstrução anatómica. Verificou-se a presença de dacriocistocelo em 13 casos. Os níveis de obstrução são apresentados na tabela 2.
Nível de Obstrução | Número |
---|---|
Canalículo comum | 2 |
Transição canalículo comum/saco lacrimal | 4 |
Saco lacrimal (proximal) | 11 |
Saco lacrimal (distal) | 12 |
Transição saco lacrimal/ducto lacrimal | 14 |
Ducto lacrimal (proximal) | 8 |
Ducto lacrimal (distal) | 11 |
Não disponibilizado | 27 |
Legenda: Caracterização do nível de obstrução, definido por dacriocistografia e tomografia computorizada
A DCRe foi primária em 73 doentes (81%) e de revisão nas restantes 17 cirurgias. Nos procedimentos de revisão, a cirurgia primária foi realizada por abordagem endoscópica em 14 casos e abordagem externa em 3 casos. A taxa global de sucesso clínico foi de 89% (n=80), 86% na cirurgia primária e 100%. na cirurgia de revisão. O sucesso cirúrgico anatómico foi alcançado em 90% dos casos.
Em relação à técnica cirúrgica, foi realizada osteotomia ampla do processo frontal do maxilar com recurso a broca motorizada em 86% (n=77), abertura da agger nasi em 74% (n=67), e o retalho mucoperióstero removido de forma total ou “near total” em 76% (n=69). A via lacrimal foi canalizada com tubo de silicone em 91% (n=82), sendo removido em média após 7 semanas (( = 3.54; mínimo 2 - máximo 16). Registaram-se 4 extrusões acidentais.
O tempo médio de seguimento pós-operatório foi de 14 meses. A referir que 8 doentes faltaram a consultas subsequentes, perdendo o acompanhamento antes de completar o primeiro ano após a cirurgia.
Não se verificaram complicações major ou intra-operatórias, ocorrendo complicações minor (n=28) nos pós-operatório de 22 doentes (24%), expostas na tabela 3. O insucesso cirúrgico não foi considerado como complicação pós-operatória.
Complicação | Número |
---|---|
Sinéquia turbino-septal | 9 |
Sinéquia turbino-lateral | 8 |
Extrusão acidental da sonda | 4 |
Laceração dos puncta | 2 |
Epistáxis | 2 |
Equimose palpebral | 2 |
Vestibulite | 1 |
Total | 28 |
Legenda: caracterização das complicações cirúrgicas
Foram associados a maior eficácia clínica a abertura da agger nasi (p =0.018) e a remoção do retalho mucoperiósteo (p=0.005). A cirurgia de revisão (p=0.105), antecedentes de dacriocistite (p=0.054), colocação de tubo de silicone (p =0.19), osteotomia ampla do processo frontal do maxilar com recurso a broca (p =0.217), nível de obstrução (p=0.511), realização pré-operatória de dacriocistografia (p =0.096), realização pré-operatória de dacriocistografia nos casos de epífora (p =0.179), sexo (p =0.613) e idade (p=0.156) não alcançaram significância estatística no sucesso cirúrgico. Nos 10 casos de insucesso clínico, o nível de obstrução era alto em 2 (entre o canalículo comum e a metade proximal do saco lacrimal), baixo em 3 (desde a metade distal do saco lacrimal até à válvula de Hasner) e em 5 casos o nível de obstrução não era conhecido. Realizaram-se ainda procedimentos acessórios em 12% das cirurgias (n=11), apresentados na tabela 4, não se associando a diferença estatisticamente significativa no sucesso cirúrgico.
Discussão
Os resultados obtidos neste estudo enquadram-se nos valores descritos na literatura, tanto para o sucesso clínico como para o cirúrgico. (1,3,6,7,9
No nosso estudo, o tempo médio de seguimento foi superior a um ano (14 meses), e muito embora tal seja uma limitação, enquadra-se nas recomendações e critérios de outros estudos. (3,6,10 A eficácia global do procedimento é influenciada pelo tempo decorrido desde a cirurgia, sendo a redução mais significativa no primeiro ano, período com maior risco de estenose, seguida de uma redução gradual constante até aos 10 anos de seguimento. (9
A maioria dos estudos aponta para a formação de sinequias ou granulomas com oclusão do óstio como principais causas de insucesso da DCRe. (1,3,9,11 Outros fatores importantes incluem a má seleção dos doentes, técnica cirúrgica inadequada (exposição e marsupialização do saco insuficientes) e a experiência do cirurgião. As cirurgias no grupo de doentes apresentados não foram realizadas por um único cirurgião o que pode ter impacto sobre a técnica adotada bem como nos resultados alcançados e na comparação dos mesmos. Na população idosa o processo de cicatrização pode ser mais dificultado, tornando-a particularmente suscetível ao encerramento do óstio. (1 No entanto, na nossa população não houve correlação entre a idade e o insucesso.
Enfatizamos a importância da realização de uma osteotomia completa e da abertura da agger nasi, permitindo a completa exposição e marsupialização do limite superior do saco lacrimal, reduzindo o risco de oclusão pela ampliação da abertura e coaptação dos folhetos da mucosa do saco com a mucosa da nasal da agger nasi. A abertura da agger nasi permite um melhor posicionamento do folheto posterior do saco lacrimal3 e foi associada no nosso estudo a um impacto estatisticamente significativo no sucesso cirúrgico.
A preservação do retalho mucoperiósteo é defendida por alguns autores, justificando o seu papel na incorporação do saco na mucosa da parede lateral e reduzindo a formação de granuloma resultante da exposição óssea. No entanto, a maioria dos estudos demonstra resultados equivalentes em termos de eficácia cirúrgica a longo prazo com a preservação ou remoção do retalho. (1,7,13,14 No presente estudo, houve uma associação estatisticamente significativa entre remoção do retalho e a eficácia cirúrgica. Uma melhor exposição do campo cirúrgico, com menor hemorragia, e a ausência de sobreposição de tecido mucoso sobre os folhetos do saco lacrimal, permitindo uma melhor drenagem e cicatrização, poderão contribuir para esta associação.
A canalização da via lacrimal é usada com o objetivo de manter a permeabilidade do rinostoma. Embora popularizada em estudos que avaliaram o sucesso cirúrgico da abordagem externa com e sem stent, no entanto, a sua utilização não é consensual na literatura, com múltiplas revisões sistemáticas e meta-análises evidenciando ausência de benefício na DCRe. (1,14-16 Os tubos de silicone aparentam ter maior taxa de sucesso e menores complicações, em comparação com outros tipos de material. A sua recomendação na DCRe é opcional. (1 Porém, a sua utilização é recomendada nas abordagens externas. Na nossa casuística a via lacrimal foi canalizada com tubo de silicone em 91%, não se verificando impacto estatisticamente significativo no sucesso cirúrgico. Não foi aplicado stent nas seguintes situações: 3 casos em crianças com menos de 5 anos, pela dificuldade expectável da sua remoção sem recurso a sedação e para evitar complicações decorrentes da sua utilização; 2 casos com distorção da anatomia da pirâmide nasal no contexto de acidente de viação; 2 casos por preferência técnica do cirurgião; 1 caso de revisão em que um dos punctus não estava patente.
Nas DCRe de revisão (n=17) foi alcançada uma taxa de sucesso de 100%. Nestes casos, os autores reforçam a importância da revisão e ampliação da osteotomia, muitas vezes incompleta, para exposição de toda a altura do saco lacrimal, resolução de possíveis complicações minor de cirurgias prévias e da marsupialização completa do saco lacrimal.
Em duas cirurgias de revisão foi utilizada mitomicina C tópica na concentração de 0,4 mg/mL, ambas com sucesso cirúrgico. Este agente inibe a síntese proteica e a proliferação celular de fibroblastos, modulando a formação de cicatrizes e de fibrose, com o objetivo de manter o neo-óstio patente. (1,17,18 No entanto, o impacto desde adjuvante no sucesso cirúrgico da DCRe não é consensual. (17,18 Alguns autores não recomendam a sua utilização na DCRe primária, reservando-a como opção nas cirurgias de revisão. (1
As principais complicações da DCRe incluem a hemorragia, infeção, formação de sinequias, re-estenose e erosão dos canalículos. A lesão da lâmina papirácea, da órbita e fístula de líquido cefalo-raquidio são raras. (3,19 A formação de sinequias representou 60% (n=17) de todas as complicações observadas, ocorrendo recidiva do quadro clínico em dois desses casos. Por outro lado, a extrusão acidental da sonda (n=4) esteve associada a insucesso cirúrgico em metade dos casos. Nos restantes casos de insucesso não se verificaram complicações. Não se registaram complicações graves, demonstrando a segurança da DCRe.
Não se verificou impacto significativo entre a eficácia da DCRe e o sexo, quadro clínico (antecedentes de dacriocistite), nível de obstrução e a realização de procedimentos acessórios.
Dada a restrição do tamanho da amostra e limitações intrínsecas de um estudo retrospetivo, não foi realizada uma análise multivariada. Os autores reconhecem que essa análise poderá elucidar sobre a contribuição relativa de cada variável e revelar possíveis correlações entre elas.
Conclusão
Os resultados obtidos na nossa amostra demonstram a eficácia da DCRe no tratamento da obstrução da via lacrimal. Em semelhança a estudos previamente publicados com avaliação de fatores de “outcome”, a remoção do retalho mucoperiósteo e a abertura da agger nasi foram associados a maior sucesso clínico. Tendo em contas as limitações de um estudo retrospetivo e tamanho da amostra, as conclusões retiradas deste estudo devem ser suportadas por estudos prospetivos e amostras mais representativas.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.
Confidencialidade dos dados
Os autores declaram que seguiram os protocolos do seu trabalho na publicação dos dados de pacientes.