Introdução
O acufeno define-se como uma perceção do som na ausência de um estímulo auditivo. A sua classificação pode ser efetuada segundo vários critérios, mas deve ter em conta a diferenciação entre características pulsáteis e não-pulsáteis. Os acufenos pulsáteis e unilaterais podem constituir a apresentação inaugural de uma doença grave, enquanto o acufeno bilateral não pulsátil é geralmente benigno1.
Menos de 10% dos acufenos são pulsáteis2, possuindo etiologias vasculares e não-vasculares. Dentro das primeiras, podemos distinguir entre causas arteriais (arteriosclerose, uma artéria carótida aberrante, fístulas ou malformações arteriovenosas (FAV/MAV), aumento da vascularização na doença de Paget) e venosas (bulbo jugular alto, hipertensão intracraniana benigna) (3. Nas segundas, distinguimos paragangliomas, patologia óssea temporal, hipertensão intracraniana idiopática e estados hiperdinâmicos (anemia).
Existem diferentes abordagens ao diagnóstico etiológico desta patologia4,5. Uma história clínica completa e um exame objetivo exaustivo são fundamentais, juntamente com o recurso a exames complementares de imagem 6. A ecografia Doppler e Angio-TC/RM são ferramentas úteis para a avaliação das estruturas ósseas e neurovasculares nestes pacientes7.
Objetivos
Avaliar os resultados dos exames complementares de imagem requisitados em contexto de consulta externa a doentes com acufenos de caráter pulsátil no serviço de Otorrinolaringologia (ORL) da Unidade Local de Saúde da Região de Aveiro (ULS-RA), entre 2019 e 2023.
Material e métodos
Foram recolhidos os resultados de 98 exames de imagem, dentre os quais 53 (54,1%) pertenciam a doentes com acufenos de caráter pulsátil. No total, 45 (84,9%) foram ecografias doppler carotídeas, e 8(15,1%) a angio-RM/angio-TC. Três doentes foram submetidos simultaneamente a ambos os exames.
Resultados
A amostra englobou 35 (69,4%) mulheres e 15 (30,6%) homens. A média de idades foi de 58,2 anos, mínima de 16 e máxima de 87, com erro padrão da média 2,26. Os doentes sem alterações possuíam idades inferiores (56,98±2,35 anos) aqueles com alterações (73,75±3,35 anos) (p=0,049). 12 doentes (24%) queixavam-se de acufenos bilaterais, 24 (48%) de acufenos exclusiva ou principalmente direitos e 14 (28%) de acufenos exclusiva ou principalmente esquerdos. Nos doentes inicialmente submetidos a angio-TC, 4 (44,4%) possuíam alterações compatíveis com etiologia neurovascular de acufenos pulsáteis, contra nenhum (0%) dos doentes submetidos a ecografia doppler (p < 0,001). Do primeiro grupo, 25 doentes (55,5%) foram subsequentemente submetidos a angio-RM/angio-TC. 19 destes (76%) não possuíam nenhuma alteração, 1 (4%) um neurinoma do acústico e em 4 (16%) aferiu-se um contacto neurovascular entre ramos da artéria cerebelosa ântero-inferior (AICA) com a porção cisternal do feixe acústico-facial homolateral.
25 (50%) doentes não apresentavam hipoacusia, 9 (18%) apresentavam hipoacusia direita, 4 (8%) hipoacusia esquerda e 9 (18%) hipoacusia bilateral. Não foi realizada estudo audiométrico completo a 3 doentes (6%). Os pure-tone averages (PTA) calculados a 500, 1000, 2000 e 4000Hz dos doentes submetidos a audiometria foram, em média, 29,3±3,4. A fig. 1 apresenta a sua distribuição.
Verificou-se uma correlação estatisticamente significativa entre lateralidade de acufeno e lateralidade de hipoacusia (p=0,002). 45% dos acufenos bilaterais acompanhavam-se de hipoacusia bilateral, todos os casos de hipoacusia direita ocorreram em casos de acufeno direito, e 75% (4) dos casos de hipoacusia esquerda foram diagnosticados em doentes com acufeno esquerdo.
A fig.2 ilustra esta distribuição.
21 (42%) doentes apresentavam hipertensão arterial, mas a diferença entre a prevalência no grupo com alterações (75%) e o grupo sem alterações (36,7%) não foi estatisticamente significativa (p=0,0132).
15 (30%) doentes apresentavam dislipidémia, prevalência essa que era de 32,7% no grupo sem alterações e 0% no grupo com alterações, diferença novamente sem significado estatístico (p=0,171). O mesmo verificou-se no que toca a diabetes: no total, 7 (13,2%) do total dos doentes apresentavam diabetes, prevalência que não variou entre os doentes com e sem alterações no exame (14,3% e 0%, respetivamente, para p=0,417).
A figura 3 evidencia as correlações entre alterações imagiológicas e cada um destes fatores de risco.
Discussão
O ecodoppler é um exame não invasivo, seguro, e facilmente aplicável para a avaliação de estruturas vasculares superficiais. Possui elevada sensibilidade a distúrbios de fluxo sanguíneo carotídeo7. Porém, é bastante limitado no diagnóstico de outro tipo de etiologia de acufeno pulsátil. Na nossa população, a maioria dos ecodopplers foram relatados como “sem alterações”. As alterações mais frequentemente detetadas por este (sem significado hemodinâmico) foram placas de ateroma (7/15,9%) e aumento da espessura da íntima (4/9,1%). Já o uso de angio-TC/angio-RM permitiu o diagnóstico etiológico de quatro casos distintos de acufenos pulsáteis.
O primeiro caso consiste numa FAV entre colaterais da carótida externa e golfo da jugular. Uma FAV consiste numa ligação direta anormal entre as artérias e veias durais ou entre as primeiras e um seio venoso, sem a presença de um nido vascular8. A FAV é descrita como a causa mais frequente de acufeno pulsátil resultante de lesões vasculares (de 2 a 20% de todos os casos de acufeno pulsátil), sendo responsável por 10-15% de todas as malformações vasculares cerebrais 9. No nosso caso, foi diagnosticada num homem de 74 anos com hipoacusia neurossensorial moderada, bilateral e simétrica, associado a acufeno aos 500Hz e 20Db no ouvido direito, no qual se auscultou um sopro carotídeo mais audível. A Angio-TC descreveu “uma marcada vascularização arterial acessório laterocervical direita, com origem da artéria carótida externa”. Nem sempre é fácil detetar uma fístula arteriovenosa numa angio-RM ou angio-TC, dado que frequentemente apenas sinais indiretos- como a dilatação dos vasos sanguíneos, edema cerebral ou (micro)hemorragias- são encontrados. A avaliação da dinâmica do fluxo sanguíneo é limitada nessas modalidades, sendo a angiografia convencional o goldstandard para detecção e avaliação de FAVD10. Assim, procedeu-se à realização de uma angiografia convencional, que descreveu “intenso blush vascular aparentemente extracraniano na região submastoideia e retroauricular à direita, alimentado pela artéria faríngea ascendente, auricular posterior e occipital, que se encontram dilatadas. Trata-se de um blush de alto débito, quase fistuloso, com drenagem para a veia jugular (nomeadamente para o bulbo)”.
O segundo caso traduz-se num contacto neurovascular da artéria cerebelosa ântero-inferior (AICA) esquerda com a porção cisternal do feixe acústico-facial homolateral junto ao poro acústico. O doente referia acufenos bilaterais, mais sintomáticos à esquerda. O audiograma realizado no serviço demonstrou uma surdez neurossensorial leve, assimétrica (pior à esquerda). O doente referiu queixas de vertigem rotatória concomitantes. Inicialmente, foi submetido a ecodoppler carotídeo, sem alterações relevantes. O contacto neurovascular é uma etiologia controversa de acufeno pulsátil11
Em casos de contacto com o nervo vestibulococlear, os vasos mais frequentemente envolvidos são a AICA, a artéria cerebelosa postero-inferior (PICA) e as artérias basilares. Estes contactos são geralmente unilaterais12. A ressonância magnética é a modalidade preferencial de imagem para identificar conflitos neurovasculares em pacientes com distúrbios neuro-otológicos, devido à sua definição permitir visualizar estruturas menores que 1 mm na região do ângulo cerebelopontino e meato acústico interno.
O terceiro caso consiste numa recidiva (pós-mastoidectomia) de um paraganglioma jugulo-timpânico direito num doente com queixas de instabilidade, acufenos e hipoacusia direitos. O paranganglioma (anterior glomus) é um tumor de células neuro-endócrinas, com origem num paragânglio. Representam 0,6% de todas as neoplasias da cabeça e pescoço, e 80% destes são neoplasias do glomo carótico e jugular. A recorrência é frequente, mas a malignização rara13. Constituem a causa tumoral mais comum de acufeno pulsátil. Tanto a TC como a RM são ferramentas úteis no diagnóstico desta patologia. A invasão óssea é mais bem avaliada na TC, facilitando a classificação do tumor segundo as classificações de Fisch14 e Glasscock-Jackson15, com impacto terapêutico. A relação do tumor com as estruturas vasculares vizinhas é mais bem descrita pela RM16. Classicamente, esta demonstra um padrão em “sal e pimenta”, mistura de hipo e hiperintensidade nas sequências T1-W e T2-W, assimetria essa devida às múltiplas áreas de ausência de sinal intercaladas com focos hiperintensos17.
O quarto caso diz respeito a um meningioma temporal num doente com queixas de acufeno pulsátil direito com 2 anos de evolução e hipoacusia associada. Não possuía alterações no exame audiológico. O meningioma temporal é uma etiologia rara de acufeno, mimetizando displasia fibrótica óssea. Dependendo da sua localização, pode-se expandir para o ouvido médio ou para o labirinto18. Deve ser estudado por RM ou TC19.
A TC descreve: “lesão expansiva na cisterna pré-pôntica à direita, cavalgando o ápex petroso e com aparente extensão à cisterna do ângulo de Gasser e parede do seio cavernoso direito, podendo traduzir a presença de meningioma”. A RM confirmou os achados. Simultaneamente, foi submetido a ecodoppler, sem alterações significativas
Conclusão
A reduzida dimensão da nossa amostra e o tipo de estudo retrospetivo dificultam inferências epidemiológicas. Ainda assim, os nossos dados vão ao encontro do presente na bibliografia: o exame imagiológico deve ser escolhido baseado na probabilidade pré-teste e da necessidade de excluir patologia mais rara, mas clinicamente relevante. O diagnóstico etiológico de um acufeno pulsátil não prescinde de uma colheita de história clínica exaustiva, mas dirigida. Como verificado, o papel do ecodoppler é limitado, embora possa ser útil no rastreio de patologia vascular. Quando há um grau elevado de suspeita de patologia da base do crânio/osso temporal20, paragangliomas21 ou conflito neurovascular22, devemos iniciar o nosso estudo com o pedido de uma angio-TC ou angio-RMN.