Introdução
A microtia é uma anomalia congénita do pavilhão auricular. Esta malformação está geralmente associada a atresia congénita do canal auditivo externo (CAE). A incidência de microtia foi relatada como sendo de 1 para 10000 e foram sugeridos factores etiológicos ambientais e genéticos1. A microtia/atresia congénita do CAE podem ocorrer em associação com anomalias oculares, cervicais, cardíacas e renais que devem ser avaliadas e tratadas se presentes. Existem atualmente vários sistemas que permitem classificar o grau de microtia (Marx2, tabela 1) e de atrésia do canal (Weerda3, tabela 2 e figura 1), que nos fornecem pistas sobre qual a abordagem terapêutica mais adequada para cada doente.
Grau I | Pavilhão auricular mais pequeno, mas todas as características de um pavilhão auricular normal são reconhecíveis. |
Grau II | Algumas características de um pavilhão auricular normal são reconhecíveis. |
Grau III | Rudimento de tecidos moles e cartilagem (remanescente de cartilagem superior, lóbulo com rotação ântero-superior). |
Grau IV | Ausência do pavilhão auricular e do canal auditivo. |
Tipo A | Estreitamento acentuado do CAE com uma camada de pele intacta. |
Tipo B | Patência parcial do CAE lateral com uma placa meatal medial atrésica. |
Tipo C | Atresia completa do CAE. |
O sistema de classificação de Jahrsdoerfer baseado na tomografia computorizada (TC) do osso temporal (tabela 3) ajuda a determinar quais os doentes candidatos a canalplastia4.
Estrutura Anatómica | Pontuação |
---|---|
Estribo favorável | 2 |
Janela oval aberta | 1 |
Ouvido médio pneumatizado | 1 |
Nervo facial favorável | 1 |
Bigorna/martelo favoráveis | 1 |
Articulação incudoestapédica íntegra | 1 |
Mastoide bem pneumatizada | 1 |
Janela redonda aberta | 1 |
Pavilhão auricular normal | 1 |
Total | 10 |
Para doentes não candidatos à canalplastia, ou que a recusem, as opções terapêuticas incluem: vigilância se a atrésia for unilateral, dispositivo auditivo de condução óssea com banda rígida ou macia (idade pediátrica), dispositivo auditivo de condução óssea osteointegrado ou sistema Contralateral Routing of Signals (CROS)/Bilateral with Contra-lateral Routing of Signal (biCROS) dependendo da função auditiva do ouvido contralateral5.
Caso clínico
Doente de 62 anos, sexo feminino, leucodérmica, com antecedentes pessoais de dislipidemia, osteoporose e hipotiroidismo, apresentou-se em consulta de consulta de Otorrinolaringologia (ORL) do Hospital Pedro Hispano (HPH) por um quadro de hipoacusia do ouvido direito desde nascença e hipoacusia do ouvido esquerdo desde há 2 anos, associado a acufeno, constante, tipo água do mar. Sem outras queixas da área ORL. Tinha como antecedentes cirúrgicos, cirurgia reconstrutiva do pavilhão auricular direito em 2010 em contexto particular, para a qual não apresentava registos cirúrgicos. Sem história de reabilitação auditiva. O exame geral ORL revelava um pavilhão auricular esquerdo normalmente implantado, sem malformação, com CAE permeável e membrana timpânica sem alterações. O pavilhão auricular direito apresenta uma microtia grau II (figura 1, tabela 1), com meato acústico externo presente, canal auditivo externo em fundo de saco, não sendo visualizada a membrana timpânica. À acumetria, apresentava uma prova de Rinne negativa à direita, positiva à esquerda, com o teste de Weber a lateralizar para a direita.
A audiometria tonal (figura 2 ) e vocal mostrava à direita uma surdez mista severa, com GAP áereo-ósseo (AO) de 40 a 60 dB nas frequências conversacionais e com um Speech Recognition Threshold (SRT) de 80 dB e 100 % de inteligibilidade a 110 dB. À esquerda mostrava uma surdez neurossensorial ligeira, com um SRT de 30 dB e 100 % de inteligibilidade a 60 dB.
A TC de ouvidos (fig. 3 ) revelou à direita atrésia membranosa do CAE, displasia do ouvido médio com cabo do martelo rudimentar, indefinição da articulação incudomaleaolar e incudoestapédica. O canal carotídeo apresentava uma protusão e encontrava-se deiscente a nível do ouvido médio. O ouvido esquerdo não apresentava alterações.
A doente foi diagnosticada com uma microtia grau II (tabela 1) e atrésia congénita do CAE do tipo B (tabela 2 e figura 1 ) do ouvido direito que condicionava uma surdez mista severa.
Dada a anatomia desfavorável do ouvido médio, optou-se por não se proceder à canalplastia. Após explicar as opções terapêuticas disponíveis, nomeadamente vigilância ou colocação de um implante osteointegrado, a doente optou por colocar um implante auditivo osteointegrado no ouvido direito.
Discussão
A atresia do CAE corresponde à ausência de um canal auditivo patente, que pode ser adquirida ou congénita. A atresia adquirida é mais frequentemente devida a um processo inflamatório ou na sequência de um traumatismo ou cirurgia otológica1. A atresia congénita é uma malformação do canal auditivo externo que resulta em surdez de condução no recém-nascido e que persiste até mais tarde na vida1. No contexto de uma atresia aural congénita, o ouvido médio pode ser completamente normal em termos estruturais e funcionais ou pode apresentar malformações concomitantes1. Ocorre normalmente em conjunto com a microtia, uma malformação do pavilhão auricular6. O caso apresentado diz respeito a uma atrésia congénita membranosa do CAE, que apresenta concomitantemente malformações do ouvido médio e do pavilhão auricular.
O sistema de estadiamento clínico de Marx é uma ferramenta utilizada para classificar a microtia em quatro estadios, com base na severidade da malformação2) (tabela 1). No nosso caso a doente apresenta um grau II, em que algumas caraterísticas de um pavilhão auricular normal são reconhecíveis, neste caso o tragus, antitragus, lóbulo, concha auricular e meato auditivo externo.
O sistema de estadiamento clínico de Weerda é uma ferramenta utilizada para classificar a atrésia congénita do canal auditivo em três estadios, com base na gravidade da obstrução do canal auditivo3 (tabela 2 e figura 1). No nosso caso a doente apresentava um tipo B, com patência parcial do CAE lateral, porém com uma placa medial atrésica.
Esta malformação do pavilhão auricular e do CAE condiciona um grau de surdez importante para a doente, com impacto direto na sua qualidade de vida. As opções terapêuticas para a atrésia congénita do CAE incluem canalplastia, colocação de um implante auditivo osteointegrado ou de sistema CROS/biCROS5. O tratamento das formas congénitas de atrésia do CAE é orientado pela lateralidade da condição, pelo estado da audição, desejos estéticos e viabilidade da restauração auditiva. Estudos recentes demonstraram que a atresia unilateral na infância pode ter influência no desempenho académico7. Em casos de microtia e atresia, o momento da reparação da atresia do CAE deve ser coordenado com a reconstrução do pavilhão auricular. Não existem directrizes definitivas, porém a restauração da audição deve prevalecer sobre o objetivo estético. Por conseguinte, muitos cirurgiões defendem a reparação da atrésia do canal antes da reconstrução/criação do pavilhão auricular8. No caso apresentado presume-se que a doente tenha sido submetida a um procedimento de reconstrução do pavilhão auricular sem reparação da atresia do CAE. Esta opção pode ter sido justificada pela anatomia desfavorável do ouvido médio (cadeia ossicular displásica e protusão do canal carotídeo, com elevado risco cirúrgico).
O sistema de classificação de Jahrsdoerfer4 atribui uma pontuação anatómica (1-10) ao ouvido atrésico com base na presença/ausência de 9 estruturas, com o estribo a representar 2 pontos (tabela 3). A escala não só avalia a indicação cirúrgica do doente, como ajudar a prever o resultado audiométrico, de tal forma que quanto maior a pontuação, maior a probabilidade de recuperação auditiva pós-operatória4,9. A má pneumatização do ouvido médio e mastoide foi o melhor preditor de maus resultados pós-operatórios4. Doentes com uma pontuação superior a 6 são geralmente bons candidatos à cirurgia. No nosso caso a doente apresentava uma pontuação de 6 (tabela 3), não sendo então uma boa candidata à canalplastia (cadeia ossicular não favorável, dúvida na integridade da articulação incudoestapédica, mastoide pouco pneumatizada e microtia grau II).
Em doentes com quadros de surdez unilateral ou assimetrias auditivas importantes, os aparelhos auditivos de encaminhamento contralateral de sinal (aparelhos auditivos CROS) ou aparelhos auditivos de encaminhamento contralateral binaural (biCROS) podem ser armas terapêuticas importantes10. O CROS é geralmente prescrito em doentes com audiometria tonal normal no ouvido não afetado, e o BICROS em doentes com perda auditiva neurossensorial no ouvido menos afetado10. No nosso caso, a doente apresentava malformação do pavilhão auricular e canal auditivo externo, não beneficiando dos aparelhos auditivos convencionais e do sistema CROS/biCROS.
Outra arma terapêutica importante são os implantes auditivos osteointegrados. São dispositivos médicos implantados sob anestesia local ou geral, num procedimento simples de uma ou duas fases. A técnica permite uma alternativa cirúrgica reversível que não acarreta qualquer risco de perda auditiva adicional e evita as questões estéticas dos aparelhos auditivos convencionais11. A prótese é implantada diretamente no osso temporal e funde-se com o crânio, num processo designado por osteointegração. A implantação direta oferece vantagens em relação aos aparelhos auditivos convencionais, incluindo a eliminação do dispositivo médico "no ouvido" ou "no canal", reduzindo a humidade e o desconforto no CAE11. É uma alternativa importante em doentes com contraindicação para aparelhos auditivos convencionais: deformidades anatómicas congénitas/adquiridas e infeções crónicas do ouvido médio/externo12. Estudos recentes11,12) demonstraram efeitos benéficos do implante auditivo osteointegrado em doentes com surdez, tendo demonstrado que o implante proporciona uma melhor discriminação da fala em ambientes ruidosos, em comparação com a prótese auditiva CROS tradicional. No entanto, nem o implante auditivo osteointegrado nem o sistema CROS registaram quaisquer benefícios na localização do som.
A vigilância sem reabilitação auditiva é também uma opção terapêutica. Uma vez que a doente apresentava uma perda auditiva severa no ouvido afetado, com impacto na qualidade de vida, optou-se por uma estratégia reabilitadora.
Conclusão
O tratamento de doentes com microtia e atresia congénita do CAE é um processo desafiante, mas gratificante. A escolha da opção de reabilitação auditiva, seja cirúrgica ou não, depende em última análise da capacidade auditiva do doente, da anatomia do ouvido médio e interno, bem como das preferências do cirurgião. Este processo ocorre sempre em estreita consulta e discussão, procurando respeitar os desejos do doente e da família.
Conflito de Interesses
Os autores declaram que não têm qualquer conflito de interesse relativo a este artigo.