1 Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) tem o objetivo de prover, universalmente, ações de promoção, prevenção, restauração, reabilitação e cuidados paliativos (Brasil, 2017). Para tanto, espera-se que o SUS garanta acesso, equidade, qualidade, efetividade e sustentabilidade do Sistema (Duncan et al., 2015).
Uma das medidas para oportunizar isso, é o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS), na qual as Unidades Básicas de Saúde (UBS), devem se colocar como coordenadoras dos cuidados, considerando os atributos preconizados por Starfield (2002), e que se referem aos atributos essenciais, que compõem a garantia do primeiro contato, integralidade, longitudinalidade e coordenação, bem como os derivados, pautados na orientação familiar, orientação comunitária e competência cultural (Starfield, 2002).
Nesse contexto, o enfermeiro se destaca, tanto pelo seu quantitativo, que quando analisado no âmbito do território brasileiro, representa segundo um estudo de 2016, do Conselho Federal de Enfermagem, 23% dos profissionais da categoria de Enfermagem, totalizando, aproximadamente, 414 mil trabalhadores (Cofen, 2019; Machado et al., 2016), bem como profissional integrante da equipe mínima de saúde na APS, seja na prerrogativa da Estratégia Saúde da Família (ESF) ou das unidades de saúde tradicionais (Biff et al., 2020).
A Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), de 2017, determina as atividades a serem executadas pelos membros da equipe de saúde na ESF, entre eles, o enfermeiro - as quais, se referem à atenção à saúde aos indivíduos e famílias, em diferentes cenários de cuidado do território, e com o uso de diferentes práticas, como: acolhimento, escuta qualificada, classificação de risco, consulta de Enfermagem, realização de procedimentos, prescrição de medicamentos e solicitação de exames complementares (conforme protocolos estabelecidos), visita domiciliária, supervisão das ações dos técnicos/auxiliares de Enfermagem, bem como dos agentes comunitários de saúde, além da organização do processo de trabalho, por meio da implementação de rotinas, fluxos e protocolos (Brasil, 2017).
Isso demonstra a forte presença dos enfermeiros no processo de cuidar na APS, tal como apresentado por um estudo irlandês, que discutiu que a efetividade da APS está diretamente relacionada às boas práticas de Enfermagem, pautada na necessidade de melhorar a integralidade do cuidado, potencializar os conhecimentos e estimular o engajamento da população nas ações de saúde (Hanafin & Dwan O´Reilly, 2015).
Os enfermeiros são articuladores do processo de cuidar (Mendes & Ventura, 2017). Um estudo multicêntrico evidenciou a precariedade e o déficit no ambiente de trabalho, em relação à disponibilidade de recursos materiais, equipamentos e humanos, além do excesso da demanda assistencial. Tudo isso impactou negativamente a prática profissional do enfermeiro atuante na ESF (Biff et al., 2020).
Essas barreiras na atuação dos enfermeiros na APS são produto de políticas, que têm o objetivo de minimizar o compromisso do Estado na resposta às necessidades em saúde da população (Viana & Silva, 2018), o que exige estudos que busquem identificar as barreiras enfrentadas por esses enfermeiros durante a atuação em UBS.
Para investigar esse fenômeno, software Web Qualitative Data Analysis (webQDA®) foi escolhido considerando a sua potência para apoiar a organização e análise de dados qualitativos (Minayo & Costa, 2019), por meio da inserção dos discursos transcritos em word, bem como da codificação de categorias empíricas, que podem ter os seus conteúdos revisitados inúmeras vezes, sendo alvo de readequações, contribuindo para o uso da técnica de análise de conteúdo de Bardin (Bardin, 2011).
Neste sentido, as perguntas de pesquisa deste estudo foram: a) Quais são as potencialidades e limites da atuação da Enfermagem no nível municipal? e b) Quais são as potencialidades do webQDA® para a análise qualitativa das barreiras enfrentadas por enfermeiras atuantes em UBS?
Portanto, os objetivos deste estudo foram conhecer as potencialidades e os limites da atuação da Enfermagem no nível municipal e reconhecer as potencialidades do webQDA® para análise qualitativa das barreiras enfrentadas por enfermeiras atuantes em Unidades Básicas de Saúde (UBS).
2 Metodologia
Estudo qualitativo, realizado em julho de 2019, e fundamentado na Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva (TIPESC), a qual está ancorada no referencial teórico do Materialismo-Histórico e Dialético (Egry, 1996).
Ele foi realizado com a colaboração de 21% (13) das enfermeiras da APS de um município do estado de São Paulo, que possui - aproximadamente - 235 mil habitantes, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,815 - classificado como “alto” pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e com presença de forte desigualdade social mensurada pelo coeficiente de Gini de 0,42 (Jannuzzi, 2009).
Os dados foram coletados por meio de dois grupos focais, que contou com a presença de dois mediadores: um que conduziu as atividades dos grupos, facilitando o debate junto às participantes, e o outro que procedeu com a gravação do áudio das interações em mídia digital. Ambos mediadores eram enfermeiros e com sólida experiência profissional e formação em nível de Pós-Graduação Stricto Sensu.
As enfermeiras participantes dos grupos focais, compareceram à atividade após contatadas por e-mail, pela chefia imediata, que convidou todos os aqueles atuantes na APS e que totalizavam 62 trabalhadores. Entretanto, devido à ocorrência de férias, afastamentos e sobreposição de compromissos, 13 participaram das atividades.
A totalidade delas era pós-graduada, em sua maioria em cursos de especialização em Saúde da Família, e uma delas em nível Stricto Sensu. Em relação ao vínculo empregatício, três delas tinham dupla vinculação, sendo o outro vínculo em serviços especializados de municípios vizinhos.
A duração dos grupos focais foi de duas horas e ocorreram em uma escola do município, cedida pela Secretaria de Saúde.
No início de cada grupo focal, os mediadores se apresentaram e enunciaram o objetivo da atividade, bem como apresentaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), uma vez que essa pesquisa atendeu ao preconizado pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/2012 (Brasil, 2012), sendo apreciada por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e registada sob o CAAE nº 02395418.7.0000.5392.
Os grupos focais foram conduzidos de forma semi-estruturada, com o auxílio de um roteiro, elaborado especificamente para esse estudo, o qual foi testado anteriormente por um grupo de cinco estudantes de pós-graduação em Enfermagem.
O roteiro continha quatro momentos: aquecimento - quando se propôs uma atividade visando o fortalecimento das relações interpessoais entre as participantes; reflexão individual - que partiu da proposta de introspecção de situações vivenciadas que colocavam em debate a atuação da enfermeira em UBS; reflexão grupal - ao se propor uma discussão coletiva, considerando como a prática profissional em UBS tem se mostrado no cotidiano do serviço; e - por fim, a síntese, quando o mediador elencou os tópicos relevantes construídos coletivamente (Fonseca & Amaral, 2012).
Um dos grupos focais contou com oito participantes e o outro com cinco. Os dados gravados em mídia digital, foram transcritos em arquivo word por um dos pesquisadores e organizados com o auxílio do software webQDA® e analisados posteriormente por outros dois pesquisadores que compuseram o grupo de trabalho (GT) que totalizou quatro profissionais.
Os dados organizados no webQDA® foram submetidos à técnica de análise de conteúdo de Bardin (2011), a partir das categorias e subcategorias empíricas: 1) Barreiras Identificadas: 1.1) Sobrecarga de Trabalho, 1.2) Enfrentamento às Necessidades em Saúde Complexas e 1.3) Déficit na Disponibilidade de Recursos; e 2) Superação da Realidade: 2.1) Enfermagem como Prática Social.
A proposição das categorias empíricas emergiu do amplo debate dos integrantes do GT que buscaram conhecer as potencialidades e os limites da atuação da Enfermagem no nível municipal.
O uso do webQDA® ocorreu devido à sua compatibilidade para hospedar o arquivo word em que os discursos das participantes dos grupos focais foram transcritos, possibilitando maior agilidade e fidedignidade no processo de análise do seu conteúdo.
Esse processo foi favorecido, uma vez que o software permitiu a inclusão das categorias empíricas nos códigos permitindo o manejo de trechos dos discursos inúmeras vezes, como característica de uma das etapas da técnica de análise de conteúdo, que preconiza a releitura constante e exaustiva dos dados buscando a extração das unidades de significado que possuem potência para responder ao fenômeno (Bardin, 2011), momento em que as subcategorias empíricas emergiram.
3 Resultados e Discussão
O processo de análise dos dados iniciou com a inserção no software webQDA® do arquivo word como fonte interna dos dados a serem analisados, seguido da construção da árvore de codificação das categorias empíricas: 1) ‘Barreiras Identificadas’ e 2) ‘Superação da Realidade’.
Da análise de conteúdo emergiram subcategorias que foram renomeadas diversas vezes, frente à lapidação dos significados que elas precisavam traduzir para responder ao objetivo do estudo. Os dados analisados foram remanejados entre diferentes subcategorias empíricas, constituindo o processo de exaustão da compreensão hermenéutica dos fragmentos selecionados.
Isso possibilitou que na categoria empírica ‘Barreiras Identificadas’, a subcategoria ‘Sobrecarga de Trabalho’ fosse evidenciada, como demonstrado em:
[...] são 623 casas [novas] sem um posto de saúde. E nós já estamos trabalhando acima do nosso limite. Cada uma das nossas equipes, na mesma unidade são três equipes, a gente atende quase 12 mil pessoas, são quase quatro mil pessoas por equipe. [grifo nosso].
[...] a demanda é grande por ser uma área distante, a população tem portas abertas ali, o único recurso deles é ali no posto. [...] [são] quase quatro mil habitantes, e é lotado. [grifo nosso].
[...] [dizem que] não custa nada você fazer 30 testes rápidos [...] é um atendimento rápido, de uns 20 minutos ou meia hora, se der negativo, mas e se dá positivo? Aí mina na sua cabeça. [...] [grifo nosso].
[...] como você não acompanha seus casos de sífilis? É complicado, porque como vou acompanhar, lá gira em torno de 60 a 80 gestantes, a gente teve mês com 100 gestantes. [grifo nosso].
A Organização Pan-Americana da Saúde publicou, em 2018, um material que recomenda a ampliação do quantitativo e do papel dos enfermeiros na APS, haja vista o seu reconhecimento como categoria fundamental para alcançar os objetivos de fortalecimento e/ou implantação de sistemas de saúde universais (OPAS, 2018).
Isso é possível diante da maior autonomia que a APS oportuniza ao enfermeiro em sua prática, mas que exige dos sistemas de saúde a oferta de uma estrutura para o desenvolvimento do trabalho de forma a possibilitar responder às diferentes necessidades em saúde da população (Pereira & Oliveira, 2018).
Os resultados deste estudo em contraposição ao que a literatura aponta, demonstrou que as enfermeiras atuantes em UBS vivenciam a sobrecarga de trabalho, o que pode estar impondo a elas um processo de trabalho com menor capacidade crítico-reflexiva influenciando a qualidade do cuidado oferecida à população.
Na subcategoria ‘Necessidades em Saúde Complexas’, o aumento da vulnerabilidade social e a distribuição geográfica desigual dos serviços de saúde emergiram dos dados, sendo possível problematizar o quanto as políticas brasileiras voltadas para a APS estão pautadas no produtivismo e na oferta de uma cesta de serviços, desconsiderando a compreensão aprofundada das necessidades em saúde, em especial de grupos sociais específicos - o que exige forte articulação intersetorial para resposta às heterogêneas e complexas necessidades em saúde da população (Nascimento & Egry, 2017) - o que foi evidenciado em:
Não é ESF é uma UBS [tradicional], em torno de sete mil famílias, a população que a gente atende é de alta vulnerabilidade social, muitas gestantes, a gente não atende só crônico [...].
[...] é bem periférico, é no fim, um dos extremos da cidade [...]. Eles até fizeram uma UPA mais pra cima [...]. Deu uma desafogada pra gente, mas não supre a necessidade da população. [...]” [grifo nosso].
Na subcategoria ‘Déficit na Disponibilidade de Recursos’, as enfermeiras verbalizaram vários limites para a atuação em relação à dificuldade de fixação dos profissionais da equipe da ESF e o quanto que isso impacta o cotidiano profissional, como está apresentado em:
[...] antes a gente tinha uma médica da ESF que estava atendendo, mas saiu, não foi reposta - há mais ou menos um ano. [...] e a gente está trabalhando assim: só o tempo de você receber a queixa, desse tanto de pessoas, para você levantar todos os prontuários, impossível. Você não consegue lançar isso em prontuário eletrônico, você não consegue fazer pré- consulta. [...] Faz o atendimento ali na porta [...] [grifo nosso].
[...] a médica está de férias, você tem que ficar atrás de outro médico para se dispor a fazer as receitas controladas que tem bastante. Fala para o médico, por favor, digitaliza as receitas, manda tudo. Quem vai fazer isso? O enfermeiro, porque você escuta o técnico falar, mas isso não é função nossa, fazer receita para o médico assinar. Não é mesmo, mas aí você pensa no paciente. A gente faz pelo paciente. [grifo nosso].
Essas barreiras estão relacionadas à escassez de recursos para a atuação das enfermeiras em UBS, sendo produto da adoção de métodos quantitativos para demonstrar a qualidade dos serviços.
Ao considerar produtividade como sinônimo de qualidade incorre-se num equívoco - em especial no contexto das UBS, que acolhem necessidades em saúde complexas, que demandam atuação interprofissional e articulação das ações para atenderem às necessidades em saúde (Biff etl al., 2020; Cardoso & Vieira-da-Silva, 2012).
Na categoria ‘Superação da Realidade’ a subcategoria ‘Enfermagem como Prática Social’ foi codificada evidenciando o esforço individual das enfermeiras para garantir o acesso à saúde, em especial, dos grupos sociais vulneráveis.
[...] num contexto social diferente, com estrutura diferente, a começar da estrutura familiar, do conhecimento, do grau de conhecimento dessa família, [...] com certeza um ganho de peso inadequado é um sinal de alerta para a família, a gente lida com isso e vai atrás para ajudar, sabe que quando a mãe tem uma escolaridade maior o desfecho é outro, porque ela vai brigar, ou ela vai ao prefeito, vai ao vereador, ela vai por qualquer via, ela vai à defensoria pública, ela vai buscar fazer valer esse direito que ela tem de [ter acesso à] saúde, mas e quem não tem esse conhecimento, essa atitude? [grifo nosso].
Entre esses achados, as enfermeiras se utilizam da Enfermagem como Prática Social, ao mediar o empoderamento da população na luta do acesso universal à saúde - o que reconhece a Enfermagem como profissão com potencial para transformação da realidade (David et al., 2012).
4 Conclusões
O software webQDA® permitiu a compatibilidade do arquivo word como fonte interna e o remanejamento de trechos dos discursos entre os códigos, reconhecendo-o como um importante aliado para sistematizar o processo de análise crítica dos dados.
As evidências demonstraram que a atuação da Enfermagem em UBS está pressionada por barreiras relacionadas à sobrecarga de trabalho, déficit na disponibilidade de recursos e resposta às necessidades em saúde complexas. Por outro lado, a superação da realidade é potencializada pelo reconhecimento da Enfermagem como Prática Social, que atua buscando fomentar o emporaderamento da populção para garantia do acesso à saúde.