1 Introdução
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento, que se apresenta nos primeiros anos de vida da criança (American Psychiatric Association [APA], 2014). Aspectos etiológicos ainda são desconhecidos, embora pesquisas mostrem correlatos neurobiológicos e genéticos (Loke, Hannan, & Craig, 2015; Maia et al., 2018).
Pesquisas mostram o aumento da prevalência de casos TEA na população mundial, incluindo o Brasil (Fombonne, 2018; Fuentes, Hervás, & Howlin, 2020). Isto pode estar relacionado a maior conscientização sobre essa condição, aos critérios e ferramentas de diagnóstico e a melhor comunicação (Araújo, Veras, & Varella, 2019). A World Health Organization (WHO) aponta que uma a cada 160 crianças tem TEA, estimando que 1-2% das crianças em todo o mundo tenham o diagnóstico, o que corresponde a aproximadamente 52 milhões de pessoas (WHO, 2019).
O desenvolvimento infantil é definido como um processo multidimensional e integral, que se inicia a partir da concepção, englobando o crescimento físico, a maturação neurológica, o desenvolvimento comportamental, sensorial, cognitivo e de linguagem (Brasil, 2016). Em contrapartida, alterações no desenvolvimento assumem relevância nas sociedades atuais, e crianças com esse tipo de acometimento são consideradas mais vulneráveis e requerem suporte específico.
Autores destacam que o brincar se relaciona com os diversos níveis de desenvolvimento da criança (Figueiredo, Gatinho, Torres, Pinto, Santos, & Veríssimo, 2015), sendo o principal potencializador do desenvolvimento infantil. Nessa compreensão, o brincar é fundamental para o bem-estar social, emocional, cognitivo e físico (Vieira, 2018).
Crianças com TEA podem apresentar dificuldades no desenvolvimento da interação social, da comunicação e motor. Muitas também apresentam comportamentos que prejudicam a experiência do brincar, visto que se limitam, na maioria das vezes, a repetições ritualísticas, brincar isolado e disfuncional, não permitindo a interferência e a participação de outras pessoas (Calegari, Luz, Campos, Borba, & Ribeiro, 2018).
Leal, Gradim, & Souza, (2020) relatam uma intervenção com base em atividades lúdicas para o treino de habilidades sociais em crianças com TEA, a qual foi realizada por cinco meses, com oito crianças de 3 a 5 anos. Observaram que o uso desse recurso foi um fator essencial no treino de habilidades sociais em todas as crianças.
Quanto ao envolvimento da família no ato de brincar, uma pesquisa realizada no Reino Unido, com 306 pais, mostrou que os respondentes informaram que eram principalmente ou igualmente responsável pelas rotinas diárias dos cuidados com seus filhos, e que passavam mais tempo brincando do que realizando qualquer outra atividade, embora quase a metade não tivesse recebido treinamento para tal (Potter, 2017).
Diante de dois cenários, o primeiro, em que os profissionais mediam o brincar; e, o outro, em que os familiares se envolvem e conduzem as brincadeiras, percebe-se que esse tipo de atividade é usado tanto no processo terapêutico, como também faz parte da rotina diária das famílias de crianças com TEA, auxiliando na estimulação dessas crianças.
Dentre as lacunas para a compressão do brincar como uma abordagem necessária a promoção do desenvolvimento de crianças com TEA, o presente estudo justifica-se pela necessidade de obtenção de uma base teórica para o melhor entendimento sobre o assunto. Assim, objetivou-se identificar estudos que propiciem reflexões sobre a relevância do brincar para a promoção do desenvolvimento integral de crianças com TEA.
2 Metodologia
Existem vários caminhos para refletir sobre a produção do conhecimento. Neste estudo, realizou-se uma revisão integrativa (RI) para verificar a produção científica a partir de pesquisas qualitativas. A RI permite a investigação criteriosa e sistematizada sobre determinado problema, objetivando identificar eventuais lacunas do conhecimento científico (Mendes, Silveira, & Galvão, 2008). Nessa perspectiva, busca-se o aprofundamento sobre o assunto, no intuito de ampliar os referenciais teóricos e respaldar a pesquisa, favorecendo o domínio sobre a temática e trazendo elementos relevantes para a construção do conhecimento.
Percorreram-se cinco etapas para a realização desta RI: estabelecimento da questão norteadora; seleção e obtenção dos artigos (critérios de inclusão e exclusão); avaliação dos estudos pré-selecionados; discussão dos resultados; e apresentação dos resultados da revisão (Sousa, Silva, & Carvalho, 2010).
Na primeira etapa, estruturou-se a seguinte questão norteadora: o que a literatura evidencia sobre o ato de brincar para o desenvolvimento integral da criança com TEA?
De fevereiro de 2019 a outubro de 2020, selecionaram-se os textos, por meio da busca na literatura científica, nas principais bases de dados e portais da área da saúde (Biblioteca Virtual em Saúde - BVS, CAPES, EBSCOhost, Google Scholar, Scientific Electronic Library Online - SciELO, Science Direct, Researchgate, Redalyc, e BDTDibict e livros). Para isso, utilizaram-se os seguintes descritores e seus correspondentes, em português e inglês indexados nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): habilidades (skills), desenvolvimento infantil (child development), brincar/brincadeiras e brinquedos (play and playthings), atividades lúdicas (play activities) e transtorno do espectro autista (autistic disorder). Foram realizadas todas as possibilidades de cruzamento entre os descritores selecionados, por meio de duas estratégias de busca (A e B). As palavras foram cruzadas utilizando-se os operadores booleanos “AND”, na estratégia A, e “OR”, na estratégia B.
Os critérios de inclusão foram: textos publicados de 2010 a 2019, que abordam o brincar para o desenvolvimento infantil, incluindo conceitos, metodologias, intervenções que usem o brincar para estimular crianças com TEA; e textos que contemplem a questão norteadora. Foram excluídos os textos que não apresentavam conteúdo relevante para a temática; que incluíam outros grupos, como idosos e adultos; e os que não referenciavam as crianças com TEA.
A análise crítica dos textos pré-selecionados foi realizada a partir da leitura aprofundada, bem como da interpretação. A análise foi predominantemente de cunho qualitativo, considerando-se os objetivos e os resultados dos estudos, interpretando-se os sentidos das ideias centrais das teorias que abordam o ato de brincar no contexto da criança com TEA. Para isso, utilizou-se a análise de conteúdo na modalidade temática (Minayo, Deslandes, & Gomes, 2013). Esse método possibilita um maior conhecimento sobre o assunto em pauta dentro de um contexto específico (Minayo, 2014). Em síntese, realizou-se a identificação das ideias centrais dos textos, passando pela interpretação dos sentidos e agrupamento dos pontos relevantes em duas temáticas de análise.
3 Resultados e Discussão
Como resultado, identificaram-se 108 produções científicas que contemplam o tema, sendo 100 artigos, 5 dissertações e teses, e 3 livros (Tabela 1).
Dentre as publicações listadas na tabela 1, excluíram-se aquelas em que, mesmo presente o descritor pesquisado, após a leitura, verificou-se que não abordavam o brincar para o desenvolvimento da criança com TEA (74). Mantiveram-se para análise 34 artigos. Assim, criou-se uma tabela para melhor explorar os objetivos e resultados dos estudos inclusos. Dessa forma, definiram-se duas temáticas de análise, quais sejam: reflexões teóricas sobre o brincar; e ato de brincar no contexto do desenvolvimento da criança com TEA.
3.1 Reflexões Teóricas Sobre o Brincar
São diversas perspectivas teóricas que discutem o brincar, variando conforme as perspectivas filosóficas e características do contexto social, histórico e cultural que sustentam suas ideias, concepções e pontos de vista. Segundo Souza, (2019), a relação da criança com o mundo é mediada e o brincar possui diferentes significações e construções que sofrem variações com o tempo.
Apesar de existir uma diversidade de teorias, consideram-se relevantes para compreensão científica aquelas que facilitam o entendimento sobre desenvolvimento infantil. Portanto, mencionam-se alguns renomados autores, que mesmo com visões um pouco distintas, consideram que o brincar é fundamental para o desenvolvimento da criança, como: Piaget, (1978), Ferland, (2006), Vygotsky, (2008) e Huizinga, (2019).
Na antiguidade, a atividade lúdica não estava ligada unicamente à infância, mas às pessoas em geral (Moraes, 2012). O filósofo Platão falava da formação moral do cidadão a partir da infância, por meio de brincadeiras. Desde então, outros estudiosos, antropólogos, filósofos, psicólogos e educadores empenharam esforços teóricos e práticos para valorizar o papel do brincar no desenvolvimento humano, sobretudo na infância (Ferreira, 2010).
Para Piaget, (1978), o brincar assume um papel fundamental nas etapas de desenvolvimento da criança. É nessa fase do desenvolvimento que são caracterizadas diferentes formas do indivíduo interagir com a realidade e organizar seus conhecimentos visando sua adaptação. Dessa forma, desde criança, o indivíduo vai construindo seu desenvolvimento mental, levando em consideração as áreas motora, intelectual e afetiva.
Santos, (2016), enfatiza que o brincar traz possibilidades de construir conhecimento e levar ao desenvolvimento cognitivo, sendo o principal meio utilizado pela criança para desenvolver suas potencialidades e habilidades, de acordo com o contexto e a idade.
Para Vygotsky, (2008), o brincar é visto como uma maneira de interpretar e assimilar o mundo. Teoriza que, ao brincar, a criança constrói situações, desenvolve o pensamento abstrato e o amadurecimento de regras sociais. A partir da imitação e da representação, a criança promove e facilita a interação social, iniciando a apropriação das normas e comportamentos sociais.
Em conformidade, os estudos analisados contribuem com as reflexões sobre o brincar, salientando que esse ato leva as crianças a atribuírem significado às situações vivenciadas e adquirem, de forma ativa, novos conhecimentos sobre objetos, pessoas e acontecimentos. Tudo isso ocorre por meio da integração de novas experiências, considerando o que já é familiar (Santos, 2016).
Hiuzinga, (2019) aponta que o brincar é uma atividade repleta de sentido, uma ocupação vital. Segundo o autor, brincar implica em interessar-se pelo desconhecido, envolvendo uma série de atividades físicas, mentais sociais, comunicativas e emocionais, fundamentais ao desenvolvimento humano.
Aguiar, (2018) aponta que o lúdico (ludus) abrange jogos infantis, recreação, divertimento, brincadeira, brincar, competições, representações litúrgicas e teatrais, e jogos de azar. O lúdico é a essência do ser humano, pois, antes de se tornar Homo Sapiens, quer dizer, um ser pensante, e, Homo Faber, aquele que faz; ele se constitui como Homo Ludens, um ser lúdico, que brinca, joga e interage de forma lúdica conforme a sua realidade.
Ferland, (2006) reafirma que, ao brincar, a criança progride nas diferentes esferas do seu desenvolvimento. A partir da brincadeira, a criança vincula o que é familiar ao desconhecido, e, a partir dessa conexão, ela consegue construir a sua realidade. O autor ressalta que a definição do brincar ainda é uma incógnita, e, mesmo tendo vários conceitos, é unanime sua repercussão no desenvolvimento integral do sujeito.
Alguns fatores podem dificultar o engajamento da criança ao ato de brincar, tais como: ter pouca ou nenhuma convivência com outras crianças, estar inserida em um ambiente restrito de estímulos ou não privilegiar o tempo de brincar. Isto mostra a importância de oferecer condições que favoreçam o brincar para todas as crianças, mesmo aquelas com algum transtorno ou deficiência (Albuquerque & Benitez, 2020).
O ato de brincar, além de evidenciar possíveis déficits, possibilita identificar e acompanhar algumas alterações no desenvolvimento, o que inclui o TEA. Para as pessoas com autismo, o brincar não é aprendido de forma espontânea e/ou por observação, é necessário introduzir o brincar, a partir de estímulos, respeitando suas demandas e especificidades (Cipriano & Almeida, 2016).
3.2 O Ato de Brincar no Contexto do Desenvolvimento da Criança com TEA
O autismo configura-se como um transtorno do neurodesenvolvimento, com origem neurobiológica que compromete regiões específicas para o funcionamento cerebral, levando o sujeito a dificuldades diversas para o desenvolvimento satisfatório de suas habilidades. Assim é descrito pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da American Psychiatric Association; o DSM - V, que está em sua quinta edição; e apoiado pelo Código Internacional de Doenças, décima edição - CID-10 (APA, 2014).
O TEA apresenta prejuízos na comunicação e na interação social (déficits de reciprocidade social e emocional, nos comportamentos e compreensão do uso da comunicação não-verbal e na formação e manutenção de relações adequadas ao nível de desenvolvimento); além de comportamentos restritos e repetitivos (estereotipias motoras, ecolalia, manipulação de objetos, fixação à rotina, interesses restritos e excessivos, hiper ou hiporreação a estímulos sensoriais), limitando ou desabilitando o indivíduo para o funcionamento diário (Griesi-Oliveira & Sertie, 2017).
Nesse sentido, o brincar, em suas propostas lúdicas, vem contemplar o grande número de manifestações do TEA, buscando atender e estimular cada criança em suas particularidades; mesmo que para algumas delas o ato de brincar esteja comprometido. Observa-se, portanto, que o nível de desenvolvimento físico, cognitivo e psicológico das crianças vai influenciar a prática do lúdico (Cipriano & Almeida, 2016).
No intuito de estimular as crianças com TEA e buscar a melhoria das habilidades comunicacionais, sociais e motoras, o ‘brincar’ constitui-se como atividade essencial, visto que é inerente ao ser humano e fundamental para o desenvolvimento infantil. No âmbito do TEA, o ato de brincar é também considerado um recurso terapêutico, relacional e lúdico (Calhoca, 2019).
Fala-se frequentemente do brincar relacionado ao desenvolvimento da criança. Contudo, diversas abordagens teóricas, descrições e definições, voltados tanto à educação como à saúde, chegam a confundir os termos ‘brincadeira, brinquedo e jogos’. Estes, porém, são definidos com base nas características das atividades, situações e comportamentos dos indivíduos e grupos em um dado período e contexto social (Fonseca & Da Silva, 2015). Portanto, destaca-se que o termo ‘brincar’ se refere a um somatório de saberes, que não comportam uma única definição.
Sob um aspecto mais abrangente e com base em interpretações de estudos brasileiros, a ‘brincadeira’ é vista como a ação de brincar. O ‘jogo’ pode ser considerado uma brincadeira com a presença de regras. Já o ‘brinquedo’ é o objeto com o qual as crianças brincam e interagem (Clemente, 2019). A mesma ideia é defendida por Cipriano e Almeida, (2016), em que o brincar abrange a brincadeira e o jogo, sendo ambos amparados pelo brinquedo, como objeto que dá suporte à ação brincante.
Alves e Bianchin, (2010) indicam que a palavra ‘jogo’ significa diversão, ou uma brincadeira. É um recurso capaz de promover um ambiente organizado, motivador, agradável e enriquecido, possibilitando a aprendizagem de várias habilidades. Para Ramos, Lorenset, & Petri, (2016), o ‘jogo’ é uma atividade com valor recreativo orientada por um ou mais jogadores que disputam entre si, no intuito de alcançar metas, por meio de regras e restrições previamente definidas. Essa organização e objetivação que os jogos propiciam favorecem o direcionamento das atividades de crianças com TEA, pois, nessa perspectiva, é possível imprimir normas, sequências e estabelecer objetivos a serem alcançados, o que facilita, em termos terapêuticos, acompanhar a evolução.
Os brinquedos também têm um papel fundamental, pois levam a criança a interagir ao brincar, o que deve ser estimulado nas crianças com TEA. Esses objetos, porém, precisam adequar-se ao interesse, às necessidades e às capacidades da etapa de desenvolvimento. Nesse sentido, objetos, sons e espaços podem virar brinquedo, por meio da interação com a criança. Importante destacar que os brinquedos representam o princípio de muitas brincadeiras, sendo um recurso facilitador para crianças com TEA (Saviani & Pinheiro, 2014).
Diante de diversas conjecturas sobre o brincar, identifica-se que este ato contribui para a criança desenvolver diversas habilidades. O brincar é também considerado importante para profissionais que trabalham com crianças e para o aumento do envolvimento dos pais e/ou familiares com seus filhos. Aliado a isso, os estudos de Lee, Xu, Guo, Gilic, Pu, & Xu, (2019) e Orr, (2020) mostram os vários benefícios do brincar para as crianças com TEA, quais sejam: favorece a formação de vínculos afetivos; propicia o estabelecimento e o aprofundamento das relações; amplia a comunicação e a compreensão; melhora a expressão de sentimentos e insatisfações; e possibilita maior qualidade de vida.
Diante do exposto, observa-se que a influência do brincar é relevante para o desenvolvimento de habilidades essenciais para as crianças com TEA. Nesse sentido, novas maneiras de estimular as habilidades estão sendo estudadas em pesquisas multidisciplinares que incluem profissionais da tecnologia, da educação e da saúde, no intuito de transformar a relação entre a tecnologia e o brincar cada vez mais favorável a evolução das crianças com TEA (Aragão, Bottentuit Junior, & Zaqueu, 2019).
4 Conclusões
As temáticas discutidas trazem uma reflexão teórica sobre o brincar, e reforçam que esse ato estimula o desenvolvimento integral de todas as crianças, considerando os níveis cognitivo, pessoal, social, afetivo, motor, linguístico e sensorial. Por isso, o brincar é um recurso que traz importantes benefícios ao desenvolvimento integral das crianças com TEA, devendo ser estimulado de forma direcionada, nos ambientes familiar, educacional e terapêutico.
A caracterização dos termos ‘brincadeira’, ‘jogo’ e ‘brinquedo’ e as reflexões que ajudam a relacionar esses conceitos ao processo do desenvolvimento infantil auxiliam o terapeuta e os familiares no desenvolvimento dessas atividades, chamando a atenção para a função de cada um no processo de estimulação da criança com TEA.
Pode-se afirmar que o brincar, ao acontecer na forma de brincadeira e/ou jogo, tendo ou não brinquedo como o suporte material, traduz-se como recurso, estratégia, instrumento, ação, possibilidade e intervenção promotora do desenvolvimento junto a crianças com TEA.
A relevância deste estudo, no âmbito da pesquisa qualitativa, reflete a significância das revisões de literatura para elucidar questões que associam o brincar ao desenvolvimento de crianças com TEA, elucidando teorias e estratégias que favorecem ao terapeuta a ampliação do embasamento teórico sobre o assunto.