1 Introdução
As diversas transformações na sociedade brasileira ocorridas nas duas últimas décadas acarretaram desenvolvimento, complexidade social, econômica, demográfica e ambiental, suscitando importantes desafios para os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) (Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2011). Um deles reside na capacidade de gestão, a qual exige um acervo de competências essenciais para gerir serviços nos variados níveis de atenção à saúde (Almeida et al., 2017).
Diante disso, os gestores desempenham papel fundamental nas organizações, visto que suas habilidades, conhecimentos e experiências impactam diretamente na eficiência e qualidade dos serviços, em especial na saúde. Assim, a capacitação da gestão em saúde é premente para a qualificação dos processos de trabalho e funcionamento do sistema de saúde brasileiro (Costa & Rocha, 2018).
As atribuições e os encargos da gestão em saúde, demandam a construção e harmonização entre conhecimento e técnica, para que haja congruência entre as mais variadas facetas dessa incumbência: planejamento, finanças, orçamento, faturamento, compras, convênios, consórcios, jurisprudência, logística, tecnologia entre outros (Carvalho et al., 2020). Porém, em face às mudanças políticas, a cada legislatura há rotatividade de gestores, que por muitas vezes desconhecem a realidade e as especificidades de gerenciar a saúde pública e desencadear na falta de continuidade nos processos de gestão (Santos et al., 2016).
Assim, a capacidade de uma pessoa para executar uma atribuição encontra relação nas ações elaboradas em conformidade com esferas de profundidade, em que é definido um conjunto básico de conhecimentos, habilidades, atitudes e experiência necessária no desempenho de um papel, definindo o termo competência segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 2013).
“Competência é ‘o tomar iniciativa’ e ‘o assumir responsabilidade’ do indivíduo diante de situações profissionais com as quais se depara.” Nesse ínterim, a temática “competências gerenciais” apresenta grande visibilidade no âmbito organizacional e acadêmico, especialmente nas questões como aprendizagem, desempenho e estratégia nas organizações (Brandão, 2018). Os gestores considerados competentes “(a) aprendem constantemente e proporcionam ambientes de aprendizagem; (b) conduzem suas equipes e organizações a um patamar mais elevado de desempenho; e (c) buscam alinhamento estratégico a fim de alcançar a visão institucional” (Freitas & Odelios, 2018).
A cobrança externa por agilidade, flexibilidade e resultados por parte da organização, somada à ânsia interna por controle e previsibilidade, leva o gestor ao centro do conflito, e ao exercício do papel de mediador entre as necessidades da gestão, trabalhadores e usuários. Neste aspecto, surge profissionalizar e formar gestores para que exerçam o papel de transformar planos e imprevisibilidades em resultados. Alguns autores acreditam ser inútil a formação de lideranças sem que os indivíduos atuem em equipes, ou a instituição possa ter proveito deste desempenho (Freitas & Odelios, 2018). Destarte, o tema “competências” encontra-se limitado quando seus componentes conhecimentos, habilidades e atitudes são considerados de forma isolada e não sinérgica (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde ([CONASEMS], 2019).
Diante do exposto, indaga-se: Quais as competências requeridas para gestores que atuam na atenção à saúde pública/coletiva são abordadas na literatura científica? A fim de responder tal questionamento, delimitou-se o seguinte objetivo: Analisar evidências científicas que abordem as competências requeridas para gestores que atuam na atenção à saúde pública/coletiva.
2 Método
Pesquisa com abordagem qualitativa, realizada consoante ao método de revisão do Joanna Briggs Institute (JBI) denominado Scoping Review (ScR) (JBI, 2020), utilizado no mapeamento dos principais conceitos que sustentam uma área de pesquisa, nesse caso a Gestão Pública de Saúde, bem como esclarecer definições, e/ou os limites conceituais de um tópico. A metodologia escolhida se propõe a trazer à tona o conhecimento construído, com identificação dos estudos que propiciem uma visão geral das competências requeridas ao gestor de saúde coletiva/pública evidenciadas na literatura, em consonância, com a profundidade da coleta e análise de dados características da pesquisa qualitativa.
Segundo a abordagem do JBI, o primeiro passo foi definir a pergunta da pesquisa alinhada ao objetivo, utilizando o expediente da Population, Concept e Context (PCC) para uma (ScR) (JBI, 2020), na construção de um título que fornece aos leitores em potencial, informações importantes sobre o foco, escopo da revisão e sua aplicabilidade às suas necessidades. Assim, definiu-se que: P= gestores; C = Competência Profissional e C= gestão em saúde pública. Com base nessas definições foi estabelecida a pergunta norteadora: “Quais as competências requeridas para gestores que atuam na atenção à saúde pública/coletiva são abordadas na literatura científica”?
Em seguida, os critérios de inclusão: a gray literature, na seleção de dissertações e teses brasileiras presentes nas bases de dados e fontes de informações relacionadas no (quadro 1) e artigos científicos nos idiomas inglês e português; independente da abordagem para considerar diferentes aspectos das evidências sobre a temática requerida; estudos primários; revisões sistemáticas, integrativas, metanálises e/ou metassínteses, e publicados ou disponibilizados, por conveniência no período entre 2015 a 2019.
Como exclusão, considerou-se estudos sobre gestão em saúde pública ou gestor em saúde pública, sem abordar a identificação de competências profissionais/gerenciais ou competências profissionais/gerenciais sem associá-las à saúde pública/coletiva. A busca de fidedignidade das informações incluídas nos manuscritos originais, foi assegurado com a correta referenciação, tratamento e apresentação dos dados, alinhando os critérios aos objetivos e à questão norteadora proposta.
O levantamento bibliográfico foi realizado no período de março a maio de 2019, a partir da definição dos descritores, organizados com auxílio do Decs (Descritores em Cências da Saúde), nos idiomas português: “gestores” “competência profissional”e “gestão em saúde pública/coletiva” e em inglês: “health manager” “professional competence”; “health management public health”. As bases de dados e fontes de informação acessadas foram a National Library of Medicine (PubMed); Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências de Saúde (LILACS); Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Google Scholar. Junto aos descritores foram empregados os operadores booleanos: AND e OR para compor as estratégias de busca, conforme quadro 1.
A ferramenta utilizada para nortear e sistematizar a busca e seleção dos estudos foi o checklist do PRISMA - Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR), que permite aos revisores um registo consolidado do seu processo de revisão e possibilita identificar um índice de evidências observadas e selecionadas, de modo que o fluxo traz a narrativa da pesquisa e as decisões quanto à inclusão e exclusão de estudos de modo lógico.
O que faz com que as concepções utilizadas e seus resultados com relação às questões da revisão sejam evidenciadas (Tricco et al., 2018).
Na análise qualitativa, utilizou-se o modelo organizacional de Quinn et al. (2003), representado por um modelo de competências gerenciais com representações genéricas, consubstanciados em arquétipos de gestão emergentes no século XX, desligados de qualquer nível exclusivo na estrutura administrativa. Tal modelo, baseia- se em um arcabouço de quatro modelos, cuja construção maior é a efetividade organizacional e oito papéis baseados em liderança gerencial, que possuem três competências chaves cada. Ainda, pela forma paradoxal, seus componentes são capazes de estarem integrados e complementares, apesar da aparência incongruente dos valores concorrentes (Quinn et al., 2015).
Modelo que também desenvolve a ideia de que as organizações sejam flexíveis e adaptáveis, estáveis e controladas, e os gestores aptos a desenvolver os mais variados tiops de comportamento para que se complementem e garantam êxito às suas instituições (Quinn et al., 2015). Sumarizando, a ideia central do modelo utilizado como referencial teórico, é apresentar a evolução dos quatro modelos fundamentais do pensamento gerencial, edificados em princípios que fomentam sensibilidades, decisões e comportamentos heterogêneos. (Fernandes et al., 2017). Não se pode olvidar que, a fim de atingir a eficácia gerencial a que se propõem o modelo de Quinn et al. (2003), os domínios devem estar integrados, sendo complementares. Uma síntese desse modelo pode ser representada pela Figura 1.
Após a seleção dos estudos, as autoras construíram um instrumento para sua caracterização com a composição de: título, ano, autor, país, tipo de publicação, períodico e metodologia, contexto, competências e sugestão dos autores. Este instrumento permitiu a organização dos dados e facilitou a interpretação e discussão dos resultados com base na literatura e no referencial proposto, após o levantamento das principais evidências.
3 Resultados
A apresentação dos resultados foi mapeada a partir da diagramação no formato sistematizado na Figura 2, o que se ajusta o objetivo da ScR.
Do levantamento bibliográfico, após a realização por dois autores da avaliação e seleção dos estudos, foram elegiveis oito artigos, publicados no período de 2015 a 2018, sendo cinco artigos científicos, duas teses de doutorado e uma dissertação de mestrado.
Os estudos sobre a temática, abarcaram pesquisas de abordagem quantitativa, qualitativa, qualiquantitativa e descritiva transversal, provenientes dos países: Brasil, Austrália, Suécia, Gana e Irã. (Quadro.2).
4 Discussão
Ao destacar as competências encontradas, das quais foi possível observar no aspecto interno e externo das organizações que a liderança foi a mais evidenciada, explicitada em seis e implícita em dois dos oito estudos. Assim, realizou-se a escolha do referencial teórico para análise dos achados, especificamente com aplicação das competências presentes nos modelos definidos pela flexibilização, o Modelo dos Sistemas Abertos e Modelo das Relações Humanas.
O Modelo dos Sistemas Abertos, a proposta é a adequação às transformações do mundo, com inovação contínua, para que a gestão promova eficácia e resolutividade. Sua ênfase reside na adaptação política, resolução criativa de problemas inovação e gerenciamento da mudança. No Modelo das Relações Humanas, os indivíduos possuem relevância intrínseca, a eficácia da gestão reside no engajamento, coesão e moral, e o comprometimento implica em compromisso, destacando-se, “a participação, resolução de conflitos e criação de consenso” (Quinn et al., 2003; 2015).
Ressalte-se com relação aos focos interno e externos definidos pelo controle, que o Modelo das Metas Racionais visa o lucro e a produtividade, e os indivíduos possuem valor no momento em que participam significativamente ao alcance dos objetivos e a “explicitação de metas, análise racional e tomada de iniciativas”, apareceram com pouca intensidade. Já o Modelo de Processos Internos, encontrado com baixa representatividade, caracteriza-se pela conservação e encadeamento no cerne do sistema, com ênfase na “definição de responsabilidade, mensuração e documentação” (Quinn et al., 2003).
Evidenciado o papel gerencial de Negociador entre as competências relacionadas nos estudos, com preocupação central de ser sustentáculo da legitimidade exterior e angariar recursos externos, o que o faz defender de forma fundamentada suas ideias e o alcance dos objetivos. Tal indicativo pode ser explicado em razão de que os estudos trazem competências exigidas no âmbito da esfera da gestão pública, contexto de maior atuação e inserção dos agentes públicos nas negociações dos processos internos e externos aos órgãos dos quais estão subordinados (Picchiai, 2008; Quinn et al., 2015; Parreira, 2015).
Posteriormente, encontra-se o papel gerencial do Diretor, que age com planejamento e demarcação de metas, sendo assertivo na definição de problemas, elegendo possibilidades, definindo objetivos, papéis e tarefas, gerando diretrizes e políticas, por meio de orientações. Elementos característicos das organizações públicas, em que os gestores têm que lidar com regras burocráticas e orçamentos apertados para tomar decisões assertivas e rápidas, com clareza em suas expectativas e distribuição de tarefas entendidas pela equipe (Picchiai, 2008; Gemelli & Filippim, 2010; Marques, 2020).
Na sequência os papéis de Facilitador e Mentor, dos quais, espera-se do gestor que este promova empenho coletivo, propicie coesão, intervindo em conflitos e disputas interpessoais, obtendo colaboração, participação na resolutividade de demandas e compromisso na realização do trabalho, ou seja, é aquele com capacidade de construção de equipes. Já o Mentor, gera o interesse humano da organização, cuidando do desenvolvimento dos indivíduos de forma empática, atenciosa, com disposição para ouvir necessidades e aprimorar competências individuais, reconhecendo e elogiando esforços (Quinn et al., 2015; Marques, 2020).
Posteriormente, os papéis de Coordenador e Inovador. O Coordenador é responsável pelo suporte a estrutura e ao sistema do fluxo de trabalho na busca de eficácia e deve estar atento aos recursos essenciais à realização das tarefas. Entretanto, a pressão permanente da sociedade por celeridade de decisões e resoluções em curto prazo, impactam na necessidade de tempo político de maturação das deliberações e pode ser um entrave ao trabalho do Coordenador. O Inovador é o responsável pela necessidade de adaptar a organização e a equipe ao novo, identificando tendências com práticas inovadoras, visando contribuir para eficiência (Quinn et al., 2015; Marques, 2020).
O setor público tem revelado diversos intentos na promoção de inovação em suas organizações, entre elas planejamento e desenvolvimento organizacional, gestão de recursos humanos, informação, simplificação e modernização dos processos, atendimento ao usuário/cidadão, avaliação de desempenho e controle de resultados. Porém, a admissão de ideias inovadoras tende a ser baixa e fragmentada, podendo sofrer variações entre diversas organizações, apesar dos benefícios (Resende Junior et at., 2013; Lowen et al, 2017).
Por fim e menos evidente, os papéis de Produtor e Monitor, que cria um ambiente em que possa produzir e ser produtivo, com competência em organizar e administrar o tempo e o estresse na organização (Parreira, 2015). O orçamento apertado, submissão a políticas públicas nem sempre adequadas ao contexto, geram grande problema ao gerente exclusivamente produtor, o que reduz significativamente a capacidade da produtividade da organização. O papel do Monitor abarca o controle da unidade de trabalho, como verificação do cumprimento de regras, determinando se os indivíduos estão realizando adequadamente suas tarefas, bem como a realização de análise de dados, informações, relatórios, e a condução de vistorias, inspeções e respostas a solicitações e documentos (Barbosa et al., 2017). Na gestão pública, geralmente há um acúmulo de tarefas, de maneira que o gestor não consegue dar conta de realizar todo o trabalho, desviando-se das funções originais, sem apoio institucional e de recursos financeiros.
5 Conclusão
Esta pesquisa reflete que ser gestor na área de saúde pública/coletiva, exige múltiplas competências, e os estudos foram unânimes quanto à necessidade desse desenvolvimento, por meio de ações no sistema de saúde como um todo, para o aperfeiçoamento da capacidade de gestão e apoio de políticas governamentais.
Numa outra perspectiva, o modelo teórico utilizado para mapear os modelos e os papéis gerenciais encontrados, também exprime a identificação de lacunas, e pode servir de base ao planejamento institucional alicerçado na gestão por competências.
Estas estratégias organizacionais podem transformar gestores em líderes de sucesso, com capacidade de tornar seu ambiente de trabalho mais produtivo, de maneira estruturada, utilizando uma variedade de perspectivas e recursos, vislumbrando-o como um sistema complexo, dinâmico, em constante transformação.
As estratégias sugeridas ao desenvolvimento das competências ao gestor em saúde concentram-se em ações formais de aprendizagem, aperfeiçoamento e treinamento. A EPS deve ser considerada como estratégia prévia à implementação de políticas públicas, de modo que a transformação de conhecimentos e o agir contextualizado, expressem a valorização da gestão, impactando na qualidade da atenção desenvolvida nos serviços de saúde. Tais inferências, em uma scoping review, foram possíveis graças à utilização de uma abordagem qualitativa, que permitiu aprofundamento na análise das particularidades dos contextos e experiências individuais, dentre outros aspectos inseridos nos estudos selecionados.
A contribuição do estudo reside no fato de que os gestores, ao atuarem nos níveis estratégico, tático e operacional, são elos entre os objetivos organizacionais e os da atenção em saúde pública, buscando eficiência, efetividade e qualidade nos cuidados prestados. Logo, o desenvolvimento de competências diferencia o nível de atuação do gestor público e por consequência a instituição.
A limitação desta pesquisa foi a escassa oferta de publicações sobre o assunto, sugerindo que existe uma lacuna a ser preenchida com novos estudos.