1.Introdução
A realização de entrevistas em pesquisas qualitativas sempre exigiu organização dos pesquisadores, bem como capacidade de adaptação destes. No entanto, o contexto pandêmico trouxe desafios adicionais para a implementação deste método e dos procedimentos de coleta de informações investigações qualitativas. A entrevista para estudos desta natureza permite diálogo ampliado entre pesquisador e participantes. Também possibilita aprofundamento dos conhecimentos acerca do objeto pesquisado, por propiciar ajuste contínuo do processo com base em perguntas e respostas, diálogos e reflexões, os quais emergem da interação. Os questionamentos realizados são basilares na condução das entrevistas e retroalimentam novas indagações em um ciclo de aprofundamento e produção de conhecimentos, graças às experiências individuais e coletivas, tão caras aos estudos de cunho qualitativo. Isso corrobora o conceito de pesquisa qualitativa como processo iterativo e interativo que busca aproximação com o fenômeno estudado (Aspers & Corte, 2019). Nessa perspectiva, são diversos os objetos de pesquisa trabalhados no mundo valendo-se de entrevistas, o que denota a importância deste procedimento investigativo e a disseminação de seu uso por pesquisadores (Kvale, 1983; 1994). Na perspectiva de Cristancho et al. (2018), a entrevista apresenta-se particularmente potente para a compreensão de eventos passados que não podem ser replicados. Estes podem ser analisados por meio das narrativas dos participantes, construídas com base nas memórias sobre os fatos. Podem ser utilizadas, segundo a visão dos participantes ou sujeitos de estudo , como oportunidade para interpretação, percepção, posição ou opinião sobre fatos específicos ou contextos experienciados. Nesse âmbito, o pesquisador deve planejar bem o desenho do estudo, especialmente quando inclui entrevistas como procedimentos de coleta dos dados. Deve olhar com atenção para a possibilidade de entrevistas mais fechadas (estruturadas) em algumas situações e mais abertas (semiestruturadas e não estruturadas) em outras, com a permissão para inserir perguntas que visem ao esclarecimento de pontos da narrativa. Ressalta-se que, a depender da perspectiva do estudo, a validação do material pelos entrevistados, após a transcrição, é importante para a credibilidade da pesquisa e traz confiabilidade das informações para a etapa da análise (Johnson et al., 2020). Conforme a organização ou o contexto da pesquisa, o entrevistador precisa preparar a estrutura necessária para o alcance do objetivo primordial dessa etapa, qual seja, acessar as narrativas dos participantes. Assim, torna-se fundamental atentar para o planejamento da ação da pesquisa de campo, levando em consideração condições atinentes tanto ao pesquisador quanto ao entrevistador, como: o aprofundamento teórico sobre o tema de estudo; a preparação do guia de entrevista; o levantamento da quantidade total de entrevistados, a forma de efetivação das entrevistas, individual ou coletiva; a escolha do local de realização destas e o período disponível para desenvolver a completa ação. Tais condições produzem desafios como. a necessidade de confluência da disponibilidade do entrevistador e do entrevistado; a organização do deslocamento do pesquisador para o local das entrevistas; designação de um ambiente adequado, sem influência ou interferência de outras pessoas, barulhos ou e situações que possam atrapalhar o processo; disponibilidade de equipamentos eletrônicos de apoio para registro das atividades, como gravadores de voz e vídeo. Algumas técnicas diferentes de entrevistas têm sido utilizadas para auxiliar a coleta de informações qualitativas, como a realização de entrevistas com uso de telefone celular, proposta por Gonçalo e Barros (2013, 2014) e Gibson et al. (2017), mesmo antes do período pandêmico. A utilização de novos meios de comunicação foi ampliada. Assim, as entrevistas também são realizadas por meio de videochamada (Aughterson et al., 2021) e com o uso de aplicativos de mensagens (Srivastav et al., 2021). Isso inclui os mecanismos empregados para obter o consentimento dos participantes, atendendo a princípios éticos de construção de pesquisas com qualidade (Rodriguez-Patarroyo et al., 2021). Salienta-se que um estudo comparativo proposto por Krouwel et al. (2019), entre a implementação de entrevistas qualitativas presenciais ou por videochamadas, evidenciou uma diferença modesta entre os dois tipos. Denotou que restrições de orçamento e tempo podem tornar o uso de videochamadas mais vantajoso para o desenvolvimento de pesquisas em situações que envolvam distanciamento geográfico ou maior quantidade de entrevistados. Além disso, os benefícios do uso de técnicas alternativas de entrevistas podem aproximar os pesquisadores de significativa parcela populacional que se sente mais à vontade no ambiente virtual, mediado por tecnologias que fazem parte de seu cotidiano. Isso provoca a exigência de um importante questionamento: que tipo de público as tecnologias podem aproximar entrevistador e entrevistado e a que tipo de público isso se torna um empecilho para esta interação? As disparidades de acesso ao mundo da tecnologia podem ocasionar barreiras digitais que reverberam negativamente em diversos aspectos sociais, especialmente em grupos vulnerabilizados socioeconomicamente, indivíduos com menos anos de educação formal, com mais idade, com problemas de saúde física ou menor habilidade no uso da internet (Deursen, 2020). Em um mundo cada vez mais tecnológico essas dificuldades geram perdas de oportunidades de informações interessantes para essa população. Na perspectiva da saúde, mundialmente, as tecnologias digitais estão sendo cada vez mais utilizadas para superação de desafios no cotidiano dos serviços de assistência. Os países, no entanto, precisam discutir e construir mecanismos de proteção contra possíveis ameaças aos direitos humanos de quem os utiliza, em um ambiente de ampliação dos investimentos neste tipo de processo comunicativo (Sun et al., 2020). É necessário atentar também para os riscos das tecnologias no campo da precarização e uberização do trabalho, com aumento da jornada de trabalho, redução dos direitos trabalhistas, discursos de comodidade em função das novas formas de trabalho potencializadas por recursos tecnológicos digitais (Antunes, 2020). O contexto pandêmico atual ampliou os desafios relativos às medidas sanitárias de distanciamento social, além de apresentar dificuldades de contactar presencialmente os possíveis participantes das pesquisas (Deslandes & Coutinho, 2020). Soma-se a isso a necessidade de continuar discussões, reflexões e pesquisas acerca de variados objetos, contrapondo-se à quase unânime busca por explicações e compreensões acerca da Doença do Coronavírus (COVID-19). Perante esse cenário, a sociedade tem procurado adaptar-se por meio da ampliação de procedimentos remotos de interação, mediados pelo uso de novas tecnologias informacionais nas atividades cotidianas. O ambiente virtual ganhou vultosa importância em face da necessidade de aproximação das pessoas em um cenário do distanciamento social prescrito pelas medidas sanitárias. Muitas ações cotidianas, antes realizadas unicamente de forma presencial, foram, aos poucos, sendo substituídas pelo uso de aplicativos, chats de discussão e reuniões on-line. Neste âmbito, a telessaúde tem avançado em diversos países do mundo, especialmente nos de população com alta renda. Há fatores que influenciam esta situação, tais como: acesso a equipamentos de comunicação e informática; conhecimento dos usuários acerca das ferramentas para interação; disponibilidades de redes de dados capazes de suprir a demanda, que foi ampliada durante a pandemia de COVID-19 (Doraiswamy et al., 2020). Isso denota, no limite, a necessidade de adaptações do âmbito cadêmico para a continuidade de suas ações, que antes eram majoritariamente de interação presencial. Ademais, em relação à pesquisa nessa perspectiva, a nova situação vivida produz pistas acerca dos fatores que precisam ser focados para propiciar o desenvolvimento de atividades no ambiente virtual, de forma a seguir os padrões éticos e científicos, tão importantes, particularmente no caso das pesquisas qualitativas (Caetano et al., 2020). Este capítulo objetiva discutir as perspectivas e os usos das entrevistas por telefone no desenvolvimento de projeto de pesquisa qualitativo durante a pandemia da COVID-19. A problematização apresentada no capítulo provem dos vários arranjos que precisaram ser considerados para o desenvolvimento de uma pesquisa multicêntrica no Brasil, cujo objetivo geral é analisar a oferta de Práticas Integrativas e Complementares nos serviços de Atenção Primária à Saúde, dos 93 municípios de quatro regiões metropolitanas brasileiras: Fortaleza, Goiânia, Campinas e Porto Alegre. A organização logística para execução das entrevistas individuais em diversas regiões do país, por diferentes integrantes do grupo de pesquisa, revelou questões e desafios que antes eram desconhecidos pelos pesquisadores. Estão organizadas, neste capítulo, a partir de uma visão geral da realização da entrevista on-line: as possibilidades de sua utilização e limitações; do relato da experiência do grupo de pesquisadores no desenvolvimento de um estudo multicêntrico; e nas reflexões sobre a condução das entrevistas no cenário pandêmico da COVID 19.
2.Entrevista eletrônica: perspectivas de utilização e limitações
Em um processo constante de mudanças sociais, provocado pela chamada Revolução Digital, mesmo que de forma desigual, o dia a dia de pessoas comuns é afetado nos diferentes contextos, seja nos modos de produção e trabalho, nos momentos de lazer ou mesmo na busca por serviços públicos. Compreender essa nova ordem de transformação da sociedade provocada pelas tecnologias digitais, a partir séculos XX e XXI, sejam nas micro ou macroestruturas sociais ou mesmo no cotidiano das pessoas comuns, tem se apresentado como objeto de estudo no campo científico, desafiando a constituição de novos métodos e procedimentos de investigação. De acordo com Denzin e Lincoln (2000, p. 18), nunca houve, no universo da pesquisa científica “[...] tantos paradigmas, estratégias de investigação, ou métodos de análise dos quais o pesquisador possa lançar mão”. O advento das tecnologias digitais, adentrando mais recentemente o grupo das chamadas tecnologias móveis, trouxe, como aponta Santaella (2014), possibilidades de acesso, sem restrição de tempo e espaço, a uma rede ampla de informações e comunicações. No campo da pesquisa científica, os pesquisadores têm se valido desses recursos e meios para o desenvolvimento dos estudos e efetuado adequações metodológicas para esse fim (Da Costa & Di Luccio, 2008; Janghorban et al., 2014). É o caso da entrevista, compreendida por Gil (2008), como um dos métodos mais utilizados em pesquisas das ciências humanas e sociais que, em princípio, adotam pesquisas de base qualitativa. Como método, a entrevista busca, na interação social por meio do diálogo, coletar dados e informações úteis ao objeto investigado (Gil, 2008). Com a ideia de que a interação social recebe reflexos da cultura e do campo digital, e se modifica em função do social (Castells, 1999), é razoável compreender que a forma de interação entre entrevistador e entrevistado também é alterada. O advento da internet, associado aos computadores e dispositivos móveis, mediante convergência de setores (comunicação, informática, audiovisual e outros), de serviços, de redes e de terminais, possibilitou também a confluência de recursos e serviços concentrados em um único aparelho, como é o caso das televisões digitais, laptops, tablets, celulares, dentre outros (Mattos, 2013). Com um único aparelho, o celular, por exemplo, quem tem uso direcionado para ligações telefônicas, no processo de tais agregações tecnológicas, é possível fazer o registro de entrevistas por meio de gravações em áudio ou vídeo, recursos esses que outrora tinham limitações de uso em função do custo, estrutura, capacidade de armazenamento e de conhecimentos técnicos. Com o barateamento das ligações e dos aparelhos, associado ao desenvolvimento tecnológico, pesquisas até então inviabilizadas por falta de recursos passaram a ser possíveis de ser executadas. Com advento da internet, as ligações via aplicativos específicos potencializaram a efetuação de entrevista eletrônica. Muito embora haja um crescente uso de tais recursos com apresentação de resultados satisfatórios, Gibson et al. (2017), em uma revisão sistemática em sete bases de dados, com a qual buscaram por estudos que se valeram do uso de telefones móveis para realização de entrevistas para coletar estimativas de nível populacional de baixa renda, identificaram reduzido número de artigos que contemplasse tal procedimento de estudo. O uso de voz sobre protocolo de internet, mais conhecido de Voz por IP ou VoIP (Voice over Internet Protocol), que transforma sinais analógicos de uma chamada em sinais digitais transmitidos pela internet, trouxe, para as entrevistas, além do uso exclusivo da voz, a possibilidade de interação entre ntrevistador e entrevistado, de forma síncrona, por meio de vídeo - as denominadas videochamadas de voz e vídeo. Com o surgimento da COVID-19, variadas plataformas dessa natureza apresentaram-se como solução para interação social, sendo usadas para fins de trabalho, de comunicação social e pesquisa científica. As entrevistas eletrônicas assim como as entrevistas por telefone têm se caracterizado como importante vertente nos estudos qualitativos (Gonçalo & Barros, 2013, 2014; Gray et al., 2020; Lobe et al., 2020; Teti et al., 2020). O estudo de Lacono et al. (2016) apresenta importantes reflexões acerca do uso de entrevistas eletrônicas, via tenologia VoIP, como procedimento de investigação. Os pesquisadores buscaram demonstrar as potencialidades da tecnologia VoIP para ampliar o número de entrevistados, de forma a atingir uma amostra internacional variada e objetiva. Para tanto, valeram-se de uma investigação qualitativa, por meio da autoetnografia, utilizando-se da técnica bola de neve (snowball) para seleção de uma amostra internacional de pesquisadores, usuários da plataforma, como forma de captar variadas posições dos participantes sobre experiências com uso da tecnologia. No estudo, 14 pessoas de variados países (Rússia, Tailândia, Bélgica, França e em todo o Reino Unido) foram entrevistadas, via on-line, por meio do Skype, e oito mediante entrevistas pessoais ou presenciais. Como resultado, o estudo apresentou o seguinte:
3.Entrevistas por telefone no período pandêmico da COVID-19: um relato de experiência
Vários arranjos tiveram que ser considerados para o desenvolvimento de uma pesquisa multicêntrica no Brasil, com participação dos autores deste texto, que teve como participantes os profissionais de saúde e os gestores atuantes em serviços da Atenção Primária à Saúde. Faz-se importante salientar que a pandemia tem sido muito danosa à sociedade brasileira, em razão de um conjunto de fatores sociais, políticos e econômicos, além dos sanitários. O sistema de saúde nacional foi muito demandado e os trabalhadores da saúde focaram o enfrentamento da pandemia como prioridade, em detrimento de outros agravos e doenças que continuam a afetar os brasileiros (Boschiero et al., 2021). Neste cenário pandêmico, para esta pesquisa, optou-se pela entrevista por via telefônica, com o intuito de facilitar o acesso aos participantes, pois propiciaria maior flexibilidade para o horário de realização, bem como resolveria uma situação importante: a necessidade de realizar entrevistas com profissionais e gestores que, às vezes, se encontravam distantes dos respectivos entrevistadores. Neste contexto, com o intuito de evitar discrepâncias nas coletas realizadas, organizou-se um manual orientador das ações da pesquisa, com previsão de reuniões dos pesquisadores para a construção do roteiro de entrevistas, discussão, treinamento e alinhamento dos entrevistadores. Todas as etapas foram efetivadas coletivamente, com o propósito de encontrar as ferramentas mais acessíveis à realização das tarefas demandadas. Todo esse percurso favoreceu decisões para o desenvolvimento da pesquisa, como: organização de listas de contatos telefônicos dos gestores das diversas regiões pesquisadas; experimentação de distintos meios de gravação de voz até a definição do que seria utilizado e a construção de roteiro de entrevista que considerasse a interação à distância. Salienta-se que a entrevista qualitativa precisa ser conduzida pelo pesquisador com o entendimento acerca das dimensões socio-históricas e culturais que envolvem o contexto daquele momento. Há situações que podem interferir sobremaneira na forma como o entrevistado percebe a sua relação com o objeto de pesquisa, em razão do contexto em que vive no período da coleta das informações. Neste sentido, o pesquisador deve estar atento para os possíveis percalços oriundos desta situação, bem como deve ter entendimento das influências que determinadas situações alheias à pesquisa podem ter (Mcgrath et al., 2019). Esse cuidado aplica-se aos estudos realizados atualmente nas diversas áreas de conhecimento visto que, no contexto pandêmico da COVID-19, há reverberações em todas as situações cotidianas. As pesquisas empíricas, em grande parte, precisam de adaptações para a coleta de informações em ambientes que dificultam acesso aos participantes, especialmente em virtude da situação sanitária vigente na maioria dos países. Na perspectiva de Stuges e Hanrahan (2004), as barreiras impostas pelo campo de pesquisa exigem que o desenho da investigação seja revisto e estruturado para poder superá-las. E, nesse sentido, as entrevistas por telefone podem ser um importante instrumento de superação de dificuldades de acesso aos participantes da pesquisa por motivos distintos, com garantia da qualidade da produção das informações em comparação com a realizada de forma presencial. Vale ressaltar que o ambiente virtual tornou-se um novo campo para pesquisas sociais, com acesso permitido pelas plataformas digitais, que precisam ser apropriadas pelos entrevistadores (Deslandes & Coutinho, 2020).
4.Sobre a experiência dos pesquisadores “Eles não nos atendem, mas continuamos tentando...”
No desenvolvimento do estudo multicêntrico brasileiro, os pesquisadores perceberam que um desafio se destacaria: a operação da coleta em um período que exigia atenção dos profissionais e gestores do sistema de saúde, quase exclusiva, para o enfrentamento da pandemia de COVID-19. As situações sanitárias fizeram que houvesse reorganização, inclusive, das portas de entrada no sistema de saúde, com barreiras de acesso a serviços que poderiam aguardar melhoria da situação. Desse modo, tornou-se laboriosa a realização de investigações científicas em serviços de saúde durante a pandemia, o que impôs esforços criativos dos pesquisadores para superação dos novos desafios cotidianos (Travassos, 2020). O foco na segurança sanitária dos participantes e dos realizadores dos estudos tornou- -se primordial para evitar consequências negativas decorrentes do desenvolvimento da pesquisa. Diversos motivos podem ser citados para o entendimento acerca da vulnerabilidade dos profissionais de saúde brasileiros à pandemia: as desigualdades sociais no Brasil, que ampliam as demandas do sistema de saúde nacional; a insuficiência de tecnologias e de insumos para otimizar a resposta contra a pandemia; baixa remuneração do trabalho, o que exige dos profissionais a manutenção de diversos empregos, com carga laboral exaustiva. Soma-se a isso o parco conhecimento acerca da COVID-19, dificultando a construção de uma linha de cuidado efetiva, tornando o processo de trabalho difícil (Medeiros, 2020). Ademais, em um ambiente de batalhas cotidianas, a saúde física dos profissionais corre riscos. Não só isso, todavia. Há evidências de que, para a saúde mental dos profissionais de saúde, são intensas as reverberações deletérias do trabalho no contexto pandêmico, podendo gerar dificuldades para continuidade das ações laborais, bem como problemas nas relações pessoais (Pablo et al., 2020). Foi neste contexto que as entrevistas do trabalho de campo da pesquisa ocorreram. Embora os pesquisadores tenham tentado minorar os efeitos desfavoráveis à situação para o estudo, ainda houve necessidade de repensar estratégias para conseguir a amostra prevista. Pois, para a participação de quaisquer indivíduos nos estudos, há necessidade de que estes tenham interesse, após reflexão acerca dos riscos e benefícios informados. Uma questão emergiu: como atrair o interesse dos participantes em um contexto em que o assunto, pandemia, domina completamente a mente e os corpos dos profissionais e gestores da saúde? Não há resposta fácil para essa questão, especialmente pela falta de conhecimento dos pesquisadores acerca dos interesses individuais dos participantes. Inúmeras tentativas de contato com os profissionais e gestores componentes da amostra fracassaram, mesmo com a construção de uma potente rede de contatos e organização envolvendo as instituições participantes do estudo. Há uma sensação coletiva de que “eles não querem nos atender, mas precisamos continuar tentando, pois, esta pesquisa é importante para o sistema de saúde brasileiro”. Foram necessárias reflexões e o reconhecimento do contexto custoso no qual todos estão inseridos, o que demanda criatividade, paciência, persistência, adaptação e capacidade de superação das dificuldades. Foram buscadas formas de novos contatos com os participantes para mostrar-lhes a importância da pesquisa, deixando claro que as entrevistas poderiam ocorrer no momento mais conveniente para eles, desde o horário do almoço, até horários noturnos. Foram então enviados, antes da entrevista, formulários eletrônicos para que os participantes tivessem acesso prévio ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e pudessem responder ao questionário de ordem socioeconômica, minimizando assim, o tempo exigido para a realização das entrevistas. Em um cenário desfavorável, devido a pandemia, para o empreendimento da pesquisa, cada minuto é indispensável, pois pode constituir o caminho para uma eloquente narrativa. Nesse sentido, houve discussões e reflexões da equipe de pesquisa a partir de uma entrevista piloto que serviu para o refinamento das perguntas, com o intuito de incluir o mínimo necessário com potencial de gerar narrativas para análise das questões centrais do estudo. Este processo de planejamento horizontal da pesquisa é relevante para o êxito das ações, visto que as dúvidas e sugestões de todos os componentes da equipe podem ocasionar mudanças significativas nos rumos do processo planejado. Conforme a perspectiva de Moser e Korstjens (2018), o plano de coleta deve ser bastante discutido antes da pesquisa e precisa de flexibilidade para reorganização diante das facilidades e dificuldades encontradas no campo. Mesmo com o cuidado de organizar a logística e o monitoramento do processo (o que é realizado constantemente por coordenadores locais de cada região), os entrevistadores tiveram outros desafios para superar como a necessidade de manter o foco no objeto do estudo. Constantemente, os entrevistadores precisavam retomar perguntas após o participante desviar o assunto para a COVID-19. Também precisaram de sensibilidade e de acurada atenção no momento de ouvir as narrativas nas quais externavam dores e sofrimentos vividos atualmente pelos profissionais e gestores. A escuta requer sempre atentar a novas possibilidades. Isso gerou a inclusão de nova categoria de análise, relacionada às repercussões da pandemia, algo que inicialmente não estava planejado, no entanto, foi inserido na pesquisa com base no que o campo de coleta trouxe. Outras dificuldades enfrentadas pelos entrevistadores devem ser ressaltadas. Apontar estes empecilhos podem contribuir para que outros pesquisadores trilhem caminhos menos custosos durante a coleta de dados qualitativos com entrevistas telefônicas. Sem dúvidas, o primeiro obstáculo foi a efetivação da primeira abordagem com os participantes. Mesmo com os contatos telefônicos pessoais conseguidos pelos coordenadores de pesquisa ou pelos próprios entrevistadores houve vários impasses. A ausência de respostas aos e-mails e mensagens de WhatsApp enviados e as ligações telefônicas não atendidas foram os principais incômodos sentidos pelos entrevistadores. Não fazer essa interlocução com o gestor ou profissional da Unidade Básica de Saúde trazia angústia e muita preocupação aos entrevistadores. O sentimento de impotência também ocasionava certo sofrimento pois, para o processo de coleta de dados, o andamento das entrevistas estava sendo emperrado. Em algum momento, todos os entrevistadores se perguntaram: “E agora? Ele(a) não me responde?” Seguir tentando os contatos com os participantes foi a saída encontrada. Por vezes, foi uma solução exitosa. Outras, não. Diante dessa situação, um sentimento de estar sendo inconveniente, de gerar incômodo aos participantes trazia constrangimento aos pesquisadores. Era exigida do entrevistador preparo emocional para lidar com as adversidades e as emoções negativas presentes no campo científico. As habilidades intra e interpessoais dos pesquisadores pareciam fundamentais para o andamento da coleta de dados, ainda que o cenário pandêmico fosse pouco auspicioso para a operacionalização de entrevistas telefônicas. pesar dos contextos regionais serem diferentes, eram semelhantes às justificativas das não respostas aos convites para a participação na pesquisa. As mais recorrentes eram por conta dos processos gerenciais de trabalho da Atenção Primária à Saúde. A sobrecarga e o acúmulo de funções eram indicados como impeditivos para que os participantes deixassem de responder às mensagens e aos contatos telefônicos. Consequentemente, o agendamento das entrevistas era comprometido e, diante disso, o período de dois meses previsto e dedicado para a coleta de dados não foi cumprido. Parece sobressair que, perante tempos de pandemia, a fixação de um período médio para fazer contato com participantes, agendamento e execução das entrevistas, foi uma ousadia. Isso pode pressionar ainda mais os entrevistadores para o cumprimento do prazo, deixando essa etapa da pesquisa qualitativa mais exaustiva. Um planejamento de um calendário mais flexível talvez se mostre essencial, com a necessidade de discussão ampla acerca do tempo a ser despendido, considerando a COVID-19 um fator que demanda dos pesquisadores uma previsão do cronograma bem mais longo para a coleta de dados. Historicamente, a Atenção Primária à Saúde sofreu com a falta de recursos humanos e materiais, resultando no excesso de trabalho desenvolvido por gestores e profissionais de saúde. E a pandemia agravou essa situação, desfavorecendo o estabelecimento de conexões entre participante e entrevistador das investigações qualitativas. A efetuação de atendimentos aos pacientes, bem como a implementação dos testes diagnósticos e a vacinação contra a COVID-19 são fatores prejudiciais à coleta de dados de pesquisa durante uma pandemia, sobretudo, nas Unidades Básicas de Saúde. Além do mais, no ambiente da Atenção Primária à Saúde, a coordenação local não costuma ter autonomia gerencial, estando o gerente subordinado aos anseios e normas das secretarias de saúde. No caso de participação em investigações, isso fica evidente quando o participante diz ter a necessidade de uma autorização da gestão municipal para conceder entrevistas. Mesmo explicando que o estudo segue preceitos éticos, ainda assim, os entrevistadores encararam problemas dessa ordem, postergando o agendamento da coleta de dados. Minayo (2014) alerta para a imprescindibilidade de um mediador para a evolução do primeiro contato. Essa premissa foi adotada pelos coordenadores regionais da pesquisa, com o intuito de contornar esta situação. Os coordenadores estabeleceram contato com diretores das secretarias de saúde e responsáveis pela administração central das Unidades Básicas de Saúde. Alguns entrevistadores sentiram o impacto favorável dessa atitude no primeiro contato com os entrevistados. A marcação das entrevistas, contudo, constituiu um problema recorrente, ao lado da dificuldade de reagendamento por parte dos entrevistados. Com efeito, competir com as demais atividades desempenhadas por gestores e profissionais de saúde não foi tarefa nada fácil para os pesquisadores durante a maior crise sanitária do século XXI. Para os gerentes dos serviços de saúde, as prioridades são os seus usuários e o funcionamento da unidade de saúde. Falar com uma pessoa por telefone, sem conhecê-la, sem algum vínculo, pode gerar alguma estranheza para esse entrevistado ante às exigências do seu trabalho na saúde. A oferta de Práticas Integrativas e Complementares, tema da pesquisa em questão, era desconhecida pela maioria dos profissionais do setor de saúde. Isso também pode ter causado algum embaraço ao/a gestor(a) para confirmar a sua participação na pesquisa. Essa inabilidade ou falta de conhecimento dos participantes em narrar as suas vivências, sentidos e percepções sobre esse tema foi sentida pelos entrevistadores como uma dificuldade. A condução das entrevistas neste cenário pandêmico foi, pois, um grande desafio. Por diversas vezes, elas eram interrompidas, para que o entrevistado atendesse a alguma pendência a ser resolvida na unidade saúde. Essa circunstância não é uma peculiaridade em momento de pandemia, visto que, em estudos com temática similiar, foi detectada a ocorrência de experiências congêneres (Silva, 2019; Oliveira, 2018). No entanto, a COVID-19 foi adicionada aos processos prioritários da Atenção Primária à Saúde e as Unidades Básicas de Saúde estão próximas aos usuários, tendo papel indispensável na assistência à saúde da população acometida pelo novo coronavírus. Assim, era natural e esperado que esses cortes acontecessem no decorrer da entrevista. Uma boa cobertura de rede telefônica, indubitavelmente, beneficia a implementação da entrevista por telefone, uma vez que o risco de queda do sinal é bem menor, porém alguns contratempos com os recursos telefônicos foram observados. As quedas durante o decurso da ligação telefônica impediram o seguimento de muitas entrevistas, uma vez que nova chamada era realizada após a queda de sinal, entretanto o entrevistado não a atendia. Houve alguns relatos de que o volume da chamada estava muito baixo, danificando a qualidade de gravação da entrevista e sua transcrição. Os recursos de audiogravação também podem constituir um problema para o pesquisador. Os gravadores de voz dos computadores, os gravadores de chamadas telefônicas disponibilizados em algumas marcas de aparelhos celulares e aplicativos com a finalidade de capturar a ligação telefônica foram as ferramentas testadas e selecionadas para a execução das entrevistas. Os dois primeiros recursos mostraram-se mais satisfatório por não ter custo extra ao entrevistador. O gravador de voz do computador revela-se ainda mais vantajosa por salvar, automaticamente, a gravação, diminuindo o risco de perder os dados, caso algo aconteça durante a coleta. Os celulares que já possuem o recurso de gravação de chamada proporcionam ao entrevistador mais conforto e despreocupação, pois ele só precisa estar atento ao celular, ao passo que com o computador, o pesquisador precisa ter atenção ao celular e ao gravador. Houve relatos apenas uma perda de gravação com o uso da ferramenta selecionada nesta pesquisa. Experimentou-se essa perda em uma gravação telefônica, mediante aplicativo de celular. A propósito, os aplicativos de gravação de chamadas podem ser pagos, para que se tenha o uso permitido em ligações com durações médias ou longas. Salienta-se que, durante uma entrevista, há possibilidade de emergirem emoções e situações inesperadas. O pesquisador precisa estar atento e preparado para lidar em tais situações, de forma tranquila e rápida, especialmente com o entendimento de que é um acontecimento provocado por eventos vividos pelo entrevistado no contexto atual ou passado (McGrath et al., 2019). Essas circunstâncias têm um significado importante no caso de pesquisas realizadas a meio de uma pandemia responsável por milhões de mortes no mundo, afetando a vida de todos de diversas formas (McPeake & Pattison, 2020). Cabe ressaltar que, mesmo em uma conjuntura nefasta, em três meses de coleta de dados, conseguiram-se oitenta e nove entrevistas com gestores e profissionais de saúde de Unidades Básicas de quatro regiões metropolitanas. As entrevistas foram feitas mediante muita insistência e, ainda assim, obtiveram-se 28 recusas. Este dado pode ter uma conotação negativa, todavia, ao analisar o contexto sanitário, econômico, político e social do país, torna-se motivo de comemoração, já que nas unidades realizavam-se atividades a mais quais sejam: vacinação, testes diagnósticos, consultas médicas voltadas para a COVID-19. Ainda assim, quase noventa gestores tiraram um momento precioso do seu tempo para participar do estudo. Em concordância com diferentes investigadores (Schmidt et al., 2020; Mendez et al., 2021) cremos que, apesar dos desafios, as entrevistas eletrônicas foram uma alternativa positiva de continuidade para as pesquisas que já estavam em andamento durante a pandemia de COVID-19. Apesar das dificuldades aqui elencadas é pertinente destacar aspectos positivos nas relações entre os entrevistadores e pesquisador-pesquisado. As reuniões on-line com integrantes do grupo de pesquisa propiciaram trocas de experiências, compartilhamento das facilidades e dificuldades na condução das entrevistas. Foram momentos enriquecedores e de apontamentos para soluções das dificuldades encontradas no campo da pesquisa. A entrevista, ainda que por meio de telefone, permitiu, em alguns instantes, proximidade do entrevistador com cada participante individualmente. Possibilitou também um maior controle do investigador em determinadas situações da entrevista, tais como: o entrevistador esclarecer o significado das perguntas e adaptar-se mais facilmente às pessoas e às circunstâncias em que a entrevista ocorria. Para Szymansk (2011), a apresentação do pesquisador é a primeira consideração prática para o processo de interação com o entrevistado, uma vez que os pesquisados são tomados de surpresa e esta apresentação pode facilitar essa relação interpessoal. Em se tratando da pesquisa em questão, provavelmente, tal interação aconteceu graças ao cuidado que se teve na apresentação do entrevistador como membro de uma equipe de pesquisa por meio de uma carta meticulosamente escrita. Nela, continha informações acerca do entrevistador e dos objetivos da pesquisa, situava o pesquisado a respeito do que trata o estudo, os impactos esperados e a relevância social. Pode ser que tal procedimento tenha ajudado a criar uma atmosfera cordial, proporcionando um clima mais descontraído e menos formal de conversa. De mais a mais, a entrevista como procedimento metodológico em pesquisas de base qualitativa produz uma relação pujante entre entrevistador e entrevistado, com oportunidade para expressão de narrativas não compartilhadas em outros momentos. Essa situação pode mobilizar afetos, com a possibilidade do caminho para o sofrimento ou para a ressiginificação do fato lembrado. Há desse modo, necessidade de conhecimento teórico- -metodológico, disponibilidade para a escuta e tentativa de construção de espaço de confiança, a fim de que as narrativas façam sentido para ambos, pesquisador e entrevistado (Sionek et al., 2020).
5.Considerações Finais
Assim como toda técnica de coleta de dados a entrevista apresenta relevâncias e pontos importantes e, para que os seus produtos e os seus alcances sejam fundamentados, são necessários, além da conexão do método escolhido com o objeto de estudo, a compreensão e o domínio pelo pesquisador. A entrevista como procedimento metodológico em pesquisas de base qualitativa produz uma relação pujante entre o entrevistador e o entrevistado, com oportunidade para expressão de narrativas não compartilhadas em outros momentos. Essa situação pode mobilizar afetos, com possibilidade de abrir caminho para o sofrimento ou para a ressiginificação do fato lembrado. Há necessidade, portanto, de o pesquisador ter conhecimento teórico-metodológico, disponibilidade para a escuta e tentativa de construção de espaço de confiança, para que as narrativas façam sentido para ambos, entrevistador e entrevistado (Sionek et al., 2020). Este método, no entanto, pode ser acessível a todo pesquisador, principalmente aos principiantes. Todavia, a sua utilização por telefone lançou alguns desafios ainda maiores para o seu uso em tempo de pandemia de COVID-19. Além de requerer planejamento e manutenção do componente ético, expresso pela escolha do participante, do entrevistador, do local, do modo ou do momento para sua realização, essa técnica requisitou uma receptividade maior do participante, sobretudo nesse cenário tão preocupante no contexto da saúde pública mundial.