1.Introdução
Reunir-se, trocar perspectivas e construir soluções constitui uma atividade social presente desde os primórdios da humanidade, sendo uma estratégia de sobrevivência e prosperidade coletiva (The World Café, 2021). Sobre esse embasamento o World Café foi criado por Juanita Brown e David Isaacs, em 1995, nos Estados Unidos da América, como um método que almeja promover uma conversação colaborativa, capaz de estimular os participantes a produzirem ideias e propostas assertivas e inovadoras dentro do contexto proposto. Nele, a conversação é tida como o processo central para efetuar uma mudança sistêmica positiva (The World Café, 2021; Hurley & Brown, 2019; 18; Saback, 2016). Em um World Café típico, os participantes sentam-se em grupos de quatro ou cinco pessoas em torno de pequenas mesas ou grupos de conversa. As mesas podem ser preparadas de forma similar às mesas encontradas em cafeterias, muitas vezes com toalhas, vasos com flores e papel e lápis para escrever, rabiscar, desenhar ou tomar notas. Os participantes exploram perguntas importantes e significativas e colaboram com pensamentos e ideias que podem realmente fazer diferença. Cada grupo elege um anfitrião, que permanecerá na mesa no mesmo lugar e partilha os destaques da conversa anterior com as pessoas que chegaram até a sua mesa (os disseminadores do conhecimento), ao mesmo tempo que solicita novas ideias e percepções para que haja uma “polinização cruzada”, ou seja, para que saberes diversos possam construir um saber novo. Conforme as conversas vão se conectando entre si, novas descobertas e inovações começam a emergir. Conclui-se uma rodada quando os disseminadores retornam às suas mesas de origem e reencontram o anfitrião original, o que só ocorre após percorrerem todas as demais mesas. Após várias rodadas (uma rodada por pergunta), os anfitriões de cada mesa expõem ao grande grupo o aprendizado e as ideias que surgiram desse processo (a colheita de ideias), dando assim visibilidade à inteligência coletiva (The World Café, 2021; Hurley & Brown, 2019; Santos, Queiroz, Pereira, Rosas, Silveira & Rodrigues, 2019). O método é ainda pouco difundido, embora seja um método descomplicado, promissor para a fomentação de debates e para encontrar soluções coletivas; além de bastante flexível, por admitir adaptações de acordo com as necessidades identificadas pelo pesquisador (Hurley & Brown, 2019). Já em sua proposição mostrava-se aplicável nas pesquisas qualitativas que visam a emersão de ideias construídas coletivamente. No Brasil, foi observada sua aplicação em estudos de diferentes áreas, como relações comerciais, engenharia de produção, ciências sociais, estratégias de ensino (Torres & Neto, 2018; Machado et al, 2018; Oliveira; Marques & Schreck, 2017; Santos et al, 2019) e, especificamente na pesquisa qualitativa em saúde, como se pode evidenciar em alguns estudos exemplares ou da discussão do seu uso como técnica de coleta de dados em eventos científicos (Bazilio et al, 2020; Ferreira; Ramos &
Teixeira, 2021; Machado & Passos, 2018). Considerando o crescente interesse sobre o tema, este artigo objetivou descrever a aplicação do World Café para coleta de dados em pesquisa qualitativa e refletir quanto as suas possibilidades de utilização no meio digital.
2.O World Café
Ao propor a realização de um World Café, é preciso ter claro o propósito da estratégia para elaborar as perguntas e explorar o máximo da temática, envolvendo todas as partes interessadas. O propositor também deverá optar pelos melhores recursos para atingir o objetivo com os participantes do World Café (The World Café, 2021). Embora seja flexível e adaptável conforme o contexto trabalhado (número de encontros, participantes e temas, escolha das perguntas, entre outros), o World Café apresenta alguns pressupostos que devem ser considerados antes e durante a aplicação do método. Há cinco componentes que compreendem o modelo básico (The World Café, 2021):
Cada componente do método tem uma finalidade específica e corresponde a um ou mais princípios de design. Os princípios de design são sete conjuntos de ideais e práticas que constituem o padrão do processo e garantem a flexibilidade, simplicidade e eficácia do método (Tabela 2) (The World Café, 2021).
Usando os sete princípios de design, atentando para seus referidos componentes, o Word Café se transforma em um método poderoso para envolver pessoas em conversas importantes e no processo de fomentar ideias de forma integradora e não fragmentada.
2.1 Construindo o World Café
Usando os sete princípios de design, atentando para seus referidos componentes, o Word Café se transforma em um método poderoso para envolver pessoas em conversas importantes e no processo de fomentar ideias de forma integradora e não fragmentada. 2.1 Construindo o World Café Orientando-se pelos princípios e seus componentes, pode-se iniciar o planejamento do World Café. Tendo em vista o objetivo almejado com esta prática, o propositor deverá elaborar os critérios de inclusão para selecionar as pessoas que possam contribuir para o alcance do objetivo. Uma vez traçado o perfil dos participantes, deve-se elaborar o convite conforme o perfil do grupo, com dados claros e compreensíveis, para circulação na forma impressa ou virtual. As informações essenciais para a decisão de participar ou não devem se encontrar ali resumidas: a temática a ser desenvolvida, como o World Café funciona, dia, horário e opções de contato para sanar dúvidas. Convém salientar que o convite, por mais informativo que seja, não substitui a concordância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O ambiente ideal para um World Café (princípio 2) deve ser agradável, acolhedor, capaz de permitir a acomodação adequada dos participantes e ser de fácil acesso aos que se dispuseram a participar. Nesta escolha também é preciso considerar a disponibilidade, desde ambientes que já possuem as caraterísticas desejadas (cafeterias, bistrôs ou salas equipadas para dinâmicas grupais) até aqueles que podem ser adaptados (salas de aula, de reunião ou estar dentro de diferentes instituições ou serviços). Embora estas últimas possam requerer um preparo ou montagem prévia, podem facilitar o acesso aos participantes. Exemplos:
- Saioron (2021) usou salas de aula da própria instituição dos estudantes e professores participantes do estudo para facilitar a realização do World Café, uma vez que as agendas dos participantes eram muito destoantes;
- Ferreira (2019) usou o espaço de uma cafeteria (reservada/alugada) e um espaço de coworking, para que profissionais de diferentes equipes da Estratégia de Saúde da Família de um mesmo distrito de saúde de um município se encontrassem fora de seu ambiente de trabalho para discutir questões significativas sobre o próprio processo de trabalho, daí a necessidade de distanciamento das atividades e contexto laborais e da ambiência contextual.
Devido à informalidade do ambiente de uma cafeteria, que o método busca propositadamente cultivar, é preciso que o anfitrião/organizador do encontro oriente o grupo (princípios 3 ao 7) para que não haja dispersões. Como coadjuvante às questões norteadoras, pode-se utilizar textos e imagens sobre as mesas para contextualizar a temática, facilitando assim o processo criativo direcionado. Exemplos:
- Saioron (2021) usou uma apresentação inicial com slides que traziam frases e imagens comumente relacionadas a percepção do tema (inclusive com visões limitadas e distorcidas), para estimular o debate;
- Ferreira (2019) usou flip chart para exibição inicial da questão significativa e placas de acrílico sobre as toalhas de mesa como lembretes da mesma questão, além de um mini banner destacando a etiqueta do café.
Para representar o cenário aconchegante e informal de uma cafeteria, prepara-se o ambiente com comidas e bebidas, com pequenos grupos de pessoas dispostos em círculo com cadeiras, mesas, papéis e canetas. Os participantes deverão ser esclarecidos de maneira mais aprofundada sobre a dinâmica a ser realizada (Tabela 1), sanando dúvidas preferencialmente antes da escolha dos “anfitriões” e dos “disseminadores do conhecimento”. Os eleitos “disseminadores do conhecimento” devem ficar 10-20 minutos em cada mesa discutindo e argumentando quanto à questão norteadora da rodada, havendo uma pausa de aproximadamente cinco minutos para disfrutarem do lanche-café antes de se mudarem para outra mesa, na qual serão recebidos por outro “anfitrião”.
Termina-se uma rodada quando todas as mesas voltam a apresentar a sua configuração inicial. O World Café pode ter uma ou mais rodadas, dependendo da quantidade de perguntas norteadoras que se almeja abarcar para alcançar o objetivo proposto.
Termina-se uma rodada quando todas as mesas voltam a apresentar a sua configuração inicial. O World Café pode ter uma ou mais rodadas, dependendo da quantidade de perguntas norteadoras que se almeja abarcar para alcançar o objetivo proposto. Figura 1. Representação da dinâmica do World Café.
3. Reflexão
O World Café é uma técnica que objetiva aprimorar o diálogo na construção coletiva de conhecimento sobre determinado objeto de estudo. Seus sete princípios visam à conexão de pensamentos e conhecimentos e a valorização de todos os indivíduos participantes. É um método interativo de coleta de dados que pode abarcar um grande grupo de participantes com expressiva exploração dos temas em curto espaço de tempo. Possui dimensões teórico-metodológicas fundamentais para a transformação de possibilidades em realidades vibrantes, quais sejam: a crença em todos; a diversidade; o convite; o ouvir; o movimento; boas perguntas; a energia. (Brown & Isaacs, 2007).
A integração do método World Café no desenho da pesquisa qualitativa contribui para aumentar a amostra e o nível de participação. Além de produzir dados para a pesquisa, beneficia os participantes por meio do diálogo e da aprendizagem mútua (Löhr, Weinhardt & Sieber, 2020). O World Café adapta-se a diferentes contextos e necessidades de pesquisa. Para tal, é necessário considerar o cenário da coleta de dados e como cada questão será formulada, inclusive com abordagem para a narrativa, com possibilidade de respostas em um nível pessoal mais reflexivo (Löhr, Weinhardt & Sieber, 2020). Considera-se que o World Café é interessante como um método complementar de coleta de dados de pesquisa, o que tem sido uma recomendação na busca de métodos mais robustos para a pesquisa qualitativa, considerando a pluralidade da ciência e a complexidade dos fenômenos estudados de forma qualitativa.
A pesquisa qualitativa vem ampliando o seu reconhecimento, influência e complexidade ao utilizar teorias e métodos derivados da filosofia e das ciências humanas e sociais, assim como distintas posições epistemológicas somadas às inovações no campo da saúde (Correa & Bosi, 2021). Nesse sentido, busca-se a ampliação de métodos de coleta de dados que incentivem a contribuição de todos os participantes, produza uma polinização cruzada e conecte perspectivas diversas compartilhando descobertas (Van Wyngaarden, Leech & Coetzee, 2018) é recomendada. No World Café, o princípio da polinização cruzada representa o diálogo em evolução, conforme as pessoas se movem de mesa em mesa em várias rodadas.
Elas conversam com novas pessoas, contribuindo ativamente com o pensamento de cada participante e vinculam a essência do coletivo em um pensamento cada vez mais amplo. O compartilhamento do conhecimento atrai as pessoas para a conversa, estimulando uma teia de interações (Brown & Isaacs, 2007). Ao mover-se de mesa em mesa, os participantes carregam “ideias-semente” para serem polinizadas por meio da conexão de saberes diversos na construção de novos saberes. Posições fixas podem ser removidas e um clima mais aberto e exploratório, para o surgimento de novos insights, pode acontecer quando os participantes são encarregados de levar, para a próxima mesa, não somente as suas ideias, mas também as de outros participantes. A movimentação entre as mesas, desenvolvendo novas conexões e relacionamentos, estimula a geração de novas sinapses na mente do grupo (Brown & Isaacs, 2007).
As conversas do World Café envolvem concomitantemente o processo intencional do design e o processo natural de emergência com intuito de estimular a “coerência sem controle”. Nesse contexto, os sete princípios de design do World Café convergem para revelar a magia do entendimento e percepção coletivos, a partir de um campo de investigação motivador e focado. Entretanto, é a polinização cruzada de pessoas e ideias criativas, associada a perguntas significativas, que contribui para a aprendizagem dialógica e o desenvolvimento da inteligência coletiva. Por meio da polinização cruzada as ideias principais das conversas anteriores visibilizam a essência do todo na rede de conversação (Brown & Isaacs, 2007). Nesse contexto, destacam-se algumas contribuições da técnica World Café na pesquisa qualitativa:
• a exploração coletiva da pergunta de pesquisa por uma rede de ideias conectadas em profundidade e abrangência amplia os significados e possibilita a construção do conhecimento (Brown & Isaacs, 2007);
• o fio condutor consistente para atender à necessidade de novos conhecimentos que desafiem as relações hierárquicas entre pesquisador e pesquisado (Fouché & Light, 2011);
• a relevância para a modalidade de pesquisa-ação (Fouché & Light, 2011; Van Wyngaarden, Leech & Coetzee, 2018; Machado & Passos, 2018).
Quando analisado o potencial e restrições do World Café em comparação com outros métodos de coleta de dados, como entrevistas e grupos focais, percebe-se que ele enriquece consideravelmente as ferramentas dos pesquisadores, além de possibilitar a exploração de temas com um grande número de pessoas em um curto espaço de tempo, mostrando-se eficiente em termos de recursos (Löhr, Weinhardt & Sieber, 2020).
Em uma espécie de relação com o todo maior, os participantes se desafiam a afastar-se dos seus julgamentos e posições pessoais para se tornarem “embaixadores do significado”, ouvindo juntos e isseminando as ideias essenciais em rodadas progressivas de conversas. Assim, as posições rígidas aparentemente se dissipam, conforme as pessoas ouvem juntas, divergem e consensuam quando possível, descobrem conexões criativas e compartilham descobertas (Brown & Isaacs, 2007). Desta forma, os dados coletados revelam percepções individuais que por meio do diálogo, reflexão e consenso se tornaram coletivas num processo de aprendizagens mútuas.
4. World Café virtual - possibilidades, contributos e limitações
Após o início da pandemia de 2020, abordagens virtuais vêm ganhando cada vez mais protagonismo nos mais diversos âmbitos da vida. Sendo assim, convém questionar: seria possível e viável a realização de um World Café no ambiente virtual?
Partimos do suposto que isso é possível, desde que os procedimentos metodológicos sejam adaptados de forma criativa e sem prejuízos aos princípios e etapas de desenvolvimento da inteligência coletiva e co-criativa, a começar pelo convite.
A partir de plataformas automáticas de agendamento como SympleBook, Write, Wix, Sage HR e Google Agenda é possível convidar os participantes para a sessão de café, proceder a divulgação, monitorar os convites aceitos e recusados bem como aglutinar a disponibilidade e compatibilidade da agenda dos convidados até o alcance do mínimo de participantes necessários a realização da rodada. Outra possibilidade é o uso do WhatsApp como aplicativo de envio dos links/convites aos sistemas de agendamento para cada participante convidado (fig2).
As salas, salões de cafeterias e coworking darão lugar às plataformas de videoconferências e reuniões nline como Zoom, Google Meet, Cisco Webex Meetings, GoToMeeting e outros que ofereçam o recurso de organizar os participantes em ambiente único para o grande grupo, e em salas simultâneas para divisão em pequenos grupos, analogamente às mesas de café. Essa função favorece a geração de equipes em salas digitais separadas, permitindo a manutenção do anfitrião de mesa (fixo na sala) e as rodadas dos demais participantes na totalidade de salas/equipes envolvidas na discussão.
Os registros nas toalhas de mesa em papel darão lugar às lousas interativas e colaborativas como Google Jamboard, Whithe Board, Open Board, Classroomscreen, ou um arquivo de Google Docs compartilhado com todos os participantes. Outra alternativa são os próprios chats das plataformas de videoconferência simultaneamente integrados ou em abas/janelas a parte.
Quanto ao momento do café, propriamente dito? Nesse procedimento vê-se um limitante no aspecto da convivência prazerosa em torno do lanche, no entanto, à depender de apoio e fomento disponível, é possível criar alternativas, como: - o envio de pequenas cestas personalizadas, caixinhas ou kits para a residência/trabalho dos participantes a fim de possibilitar a criação/adaptação da dimensão café por cada participante em seu ambiente; - sugestão que cada um faça seu próprio ambiente de café e tenha um momento de relaxamento, de papo livre com o grupo. Claro que as condições para tal, dependem de recursos ou de um acordo e disponibilidade do grupo.
O fundamental é que os cinco componentes básicos sejam mantidos, mesmo que de forma ajustada ao novo contexto, conforme se demonstra na Tabela 3 (conteúdo da Tabela 2 adaptado ao ambiente virtual).
5. Considerações Finais
A adaptação da conversação vivenciada no meio digital revela mudanças, inova os métodos e estimula outras possibilidades de utilização sem comprometer a construção coletiva dos participantes quanto a oportunidade de troca, escuta e partilha na promoção do co-desenvolvimento mediado pela co-criação mas impõe desafios aos componentes originais do cenário e de boas vindas da dinâmica grupal.
O World Café mostra-se um recurso promissor para a coleta de dados grupais em pesquisas qualitativas enriquecendo as ferramentas dos pesquisadores. Permite a exploração de temas complexos por maior número de pessoas, em curto tempo e com maior participação, uma vez que capta percepções individuais e promove novos e criativos saberes por meio do diálogo e reflexão. Revela-se como alternativa metodológica estratégica para a construção coletiva do conhecimento e inovação entre pares de comunidades presenciais e virtuais.