1.Introdução
Os resquícios da escravização dos povos negros ainda se reverberam na sociedade até os dias atuais, seja por meio do racismo individual, estrutural ou institucional. O racismo individual ocorre através de ações pontuais e explícitas de discriminação, como ataques físicos ou verbais, entre outros tipos de agressão e constrangimento. Já o racismo estrutural ocorre de modo sutil, mas não menos agressivo, e se estabelece através de relações e ideologias naturalizadas que sustentam as iniquidades e desigualdades entre brancos e negros no Brasil, o que se comprova com base nos fatos de que as maiores taxas de mortalidade se concentram entre homens negros, bem como os maiores índices de aprisionamento no cárcere, entre diversos outros exemplos. Tal dinâmica se projeta nas instituições, como unidades de saúde, igrejas, escolas, espaços de trabalho e universidades, configurando o racismo institucional (Almeida, 2019). Os povos indígenas, os primeiros escravizados no Brasil, também são alvo do racismo, já que são vítimas dos resquícios da exploração, do genocídio e da escravização sofrida no passado, a qual muitas vezes é negada, o que acentua o processo de marginalização e de privação de direitos para este grupo. Como costuma ser negada, até os dias atuais a escravização indígena é uma prática constante, a exemplo do que ocorre com os Guarani e os Kaiowa nas fronteiras agrícolas do Mato Grosso do Sul, além do subemprego nas lavouras de soja do Mato Grosso (Milanez et al., 2019). Na tentativa de ir de encontro a esse cenário, as Políticas de Ações Afirmativas, a exemplo da Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas), promulgada a partir da luta dos movimentos sociais, trouxeram diversas conquistas, entre elas a reserva de vagas para ingresso em universidades públicas com base no critério étnico-racial (Brasil, 2012). Outra conquista importante foi a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei nº 9.394/1996, viabilizando a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que dispõem acerca da obrigatoriedade do ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Rede de Ensino Fundamental e Médio (Brasil, 2003; Brasil, 2004). Nesse sentido, para que o debate étnico-racial, de fato, se faça presente nos currículos da educação básica, com adoção de atitudes, posturas, debates e valores que estimulem o pertencimento e a valorização étnico-racial no contexto das populações negra e indígena, é importante que professores sejam formados nas Instituições de Ensino Superior (IESs) de acordo com esses pressupostos (Brasil, 2004). Nas Universidades, o racismo institucional se apresenta de diversas formas, seja por meio do pouco acesso de pessoas negras e indígenas; da dificuldade de permanência, em razão dos resquícios econômicos gerados pela escravização; ou ainda por ausência ou pouca representatividade a nível docente e de referências bibliográficas que também apresentem autores não brancos de forma expressiva (Brasil, 2004). Essa é uma das principais razões para que a educação para as relações étnico- raciais seja um pilar da formação docente. A respeito disso Arroyo (2011) defende, que o currículo é o núcleo fundamental e basilar da função da escola e por essa razão constitui o território mais cercado e normatizado. No entanto, por outro lado, também é aquele mais ressignificado, inovado e politizado. Um indicador significativo dessa realidade seria a quantidade de Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, Educação Básica, EJA, Educação Infantil e Ensino Fundamental, Educação Quilombola, Indígena, Étnico-racial, do Campo, e Formação de Professores instituídas nos últimos anos. Dessa maneira, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) foi a primeira do Brasil a adotar a reserva de vagas para estudantes negros (40% das vagas), com aprovação em 2002 e implementação em 2003. No mesmo ano, a Universidade de Brasília (UnB) aprovou a reserva de vagas para estudantes negros e realizou a implementação em 2004. Até o ano de 2017, cerca de 180 IESs possuíam algum tipo de ação afirmativa, de acordo com a autonomia concedida às universidades pela Constituição Federal. Todavia, ainda existe um longo caminho para plena implementação e alcance de resultados (Negreiros, 2017). Na literatura, estudos que se propõem a analisar a formação de professores a partir da perspectiva das relações étnico-raciais têm como importantes eixos norteadores o ideal de necessidade de uma reeducação para as relações étnico-raciais, a partir de mudanças significativas na forma com que tradicionalmente o tema é trabalhado, destacando a importância da construção de iniciativas como uma pedagogia étnica; e a inquestionável importância do trato pedagógico para a diversidade, enfatizando práticas que promovam rupturas com o cenário dominante e estejam comprometidas com a proposta de uma educação antirracista (Coelho, 2014). É nesse contexto e com bases nos pressupostos das Diretrizes supracitadas que se insere a seguinte pergunta de investigação: Como os cursos de Licenciatura da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) articulam uma formação no contexto étnico-racial? A partir desta pergunta, o objetivo do estudo foi analisar, de que maneira estão inseridos os conteúdos étnico-raciais nos currículos dos cursos de licenciatura da UNEB.
2.Metodologia
O presente trabalho trata-se do resultado de um estudo documental, transversal de caráter exploratório e abordagem qualitativa. Para tanto, foi desenvolvida uma análise de similitude dos textos das ementas desses cursos e também foi criada uma nuvem de palavras, ambas as ações utilizando o software Iramuteq para organização e tratamento dos dados. De acordo com Minayo (2001), a pesquisa qualitativa permite que o pesquisador adentre “[...] no universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (p.22). De forma complementar, Cellard (2012) explica que a pesquisa documental, tem como uma de suas principais vantagens envolver um método de coleta de dados que elimina ou diminui influências externas ao objeto de análise. O autor acrescenta ainda, que o documento é uma fonte de dados muito valiosa porque permite considerar a dimensão do tempo no processo de compreensão de fenômenos sociais. Por estas razões, este foi o delineamento metodológico considerado mais adequado para a investigação em questão.
2.1 Cenário e Origem dos Dados
A Universidade do Estado da Bahia foi fundada em 1983 e, atualmente, está estruturada em formato multicampi e presente em todas as regiões da Bahia. Ela conta com mais de 170 cursos, distribuídos entre os níveis de graduação e pós-graduação e nas modalidades presencial e ensino à distância (Ead). Configurando-se assim, como a maior instituição pública de ensino superior do estado. (Portal Uneb, 2022) A instituição possui na atualidade 72 cursos de licenciatura presenciais, distribuídos entre 24 campi. A seguir, a Tabela 1 apresenta o quantitativo desses cursos por campus.
A busca pelas ementas se deu através do site oficial da instituição, que disponibiliza a maioria dos projetos político-pedagógicos e ementário de suas disciplinas. Diante disso, foram analisadas 3.654 ementas de 69 cursos de Licenciatura. As ementas de três cursos não foram analisadas porque as pesquisadoras não conseguiram acessá-las. Foram elas as seguintes: Licenciaturas em História e Pedagogia, do campus Alagoinhas e Licenciatura em Letras - Inglês, do campus Seabra.
2.2 Procedimentos de Análise
O Iramuteq é um software gratuito, bastante utilizado para o tratamento de dados textuais e para realização de análises lexicográficas. Baseado no ideal de “ciência livre”, o programa foi desenvolvido na linguagem de programação Python, possui código fonte aberto e utiliza o software R para desenvolvimento de suas análises estatísticas (Camargo & Justo, 2013). Um dos principais benefícios de sua utilização está no fato dele proporcionar uma dinamização de etapas metodológicas de uma investigação, como maior agilidade no processo de codificação e facilidade para encontrar segmentos de texto (Camargo & Justo, 2013). Os tipos de análises que o software oferece são Análises Estatísticas, Especificidades e Análise Fatorial de Correspondência (AFC); Classificação Hierárquica Dependente ou Método de Reinert; Análise de Similitude; e Nuvem de palavras (Camargo & Justo, 2013). Cada uma delas permite uma exploração dinâmica dos dados, baseada em frequências textuais. No entanto, é importante ressaltar que o uso de dados gerados a partir de qualquer programa que auxilie em investigações qualitativas, como o Iramuteq, depende exclusivamente da interpretação dos pesquisadores envolvidos. Afinal, cabe a estes a atribuição de significado aos achados encontrados em um estudo. É sabido que utilizar tais ferramentas para análise de corpus textuais pode “[...] tornar o processo de pesquisa mais sistemático e explícito, e por isso mais transparente e rigoroso” (Kelle, 2010, p. 408). Com isso, a partir das possibilidades disponibilizadas pelo Iramuteq, decidiu-se pela realização de uma análise de similitude das informações obtidas e de forma complementar, pela criação de uma nuvem de palavras. Dessa maneira, inicialmente foi realizada a leitura preliminar e exploratória dos textos das ementas de todas as disciplinas dos cursos de Licenciatura da UNEB obtidos no levantamento de dados. Nesta leitura, as pesquisadoras selecionaram aquelas ementas que apresentavam qualquer relação com conteúdos ou temáticas étnico-raciais. A seleção dessas ementas e a análise do seu conteúdo construíram-se a partir das disposições das DCN para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, publicadas em março de 2004, assim como da Lei 11.645/2008, que prevê a obrigatoriedade de inclusão no currículo da educação básica, do ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Os parâmetros que foram utilizados para a identificação relacional dos conteúdos dessas ementas com as DCN para a Educação das Relações Étnico-Raciais e com a referida Lei 11. 645/2008 foram, no caso das DCN, os itens pertencentes à subseção de “ações educativas de combate ao racismo e à discriminação”, e no caso da Lei 11.645/2008, em seu artigo 1º, §1º e 2º, que versam sobre a inclusão no conteúdo programático da educação básica, dos aspectos sociais, econômicos e políticos, resultados das contribuições africana e indígena para a história do Brasil. Estas normativas explicitam que os conteúdos concernentes à história afro-brasileira e indígena devem ser ministrados em todo o âmbito do currículo escolar e evidenciam a necessidade de estudo dos inúmeros aspectos históricos e culturais que compõem a formação da população brasileira à luz desses dois grupos étnicos (Brasil, 2008). A partir dessa leitura, as ementas foram categorizadas a priori de acordo com o tipo de menção aos conteúdos étnico-raciais dispostos nos documentos de referência para a investigação: Ementas com menção direta de conteúdos étnico-raciais e Ementas com menção indireta de conteúdos étnico- raciais. Na sequência, foi criado o corpus textual que seria processado no programa, incluindo o conjunto de textos selecionados na etapa anterior. Posteriormente, este corpus foi revisado e adequado às orientações dos manuais de utilização do Iramuteq, seguindo todas as normas quanto à formatação do texto, do tipo de arquivo e das linhas de comando (Camargo & Justo, 2013). No processo de codificação, foram consideradas como variáveis o campus de ensino, o curso de licenciatura e a categoria pensada anteriormente: se o texto em questão apresentava a menção direta ou indireta aos conteúdos de cunho étnico-racial. Em seguida, realizou-se o processamento do corpus no software. Optou-se pela análise de similitude porque esta, por ser baseada na teoria dos grafos, permite a identificação das coocorrências entre as palavras do texto analisado (Camargo & Justo, 2013). Então, foi gerada uma árvore de similitude, que consiste num diagrama que apresenta visualmente as conexões entre as palavras como ramos de uma árvore e as agrupa em halos coloridos de acordo com sua correlação. Além disso, neste diagrama as palavras são exibidas em tamanhos diferentes de acordo com a intensidade de sua frequência no texto e os ramos que conectam as palavras também têm espessura variável, de acordo com o grau de correlação entre elas. De modo que quanto maiores as palavras e quanto mais espessos os ramos que as conectam, maior a significância delas no corpus textual e seu grau de correlação, respectivamente. A partir dessa árvore, foi possível explorar mais minuciosamente as subtemáticas emergentes nos tipos de menção aos conteúdos étnico-raciais identificados. Dando continuidade ao processo, na sequência foi gerada uma nuvem de palavras no software. Esta, por sua vez, consiste também num diagrama de fácil visualização de todas as palavras de um corpus textual, exibidas em diferentes tamanhos de acordo com sua frequência no texto em questão (Camargo & Justo, 2013). No entanto, optou-se também pela criação da nuvem, de maneira complementar à árvore de similitude, porque ela permitiu uma visão geral dos termos mais importantes de todo o corpus, enquanto na árvore, vislumbrou-se os termos mais importantes de cada halo. Feito isso, seguiu-se finalmente para a etapa de análise e interpretação dos resultados obtidos pelo programa.
3.Resultados e Discussão
No presente estudo, de 3.654 componentes curriculares analisados, foram encontradas 550 ementas com a abordagem da temática étnico-racial (15,05%). Ressalta-se que deste número, 181 apresentaram relação direta com as DCN para a Educação das Relações Étnico-Raciais e a Lei 11.645/2008, constituindo uma porcentagem de 32,9% em relação ao total analisado. Por outro lado, 369 apresentaram relação indireta com essas DCN e a Lei 11.645/2008, totalizando uma porcentagem de 67,09%. Ressalta-se que a porcentagem geral de ementas com abordagem da temática foi relativamente baixa e que, dentro desse grupo, predominaram as ementas que abordaram conteúdos étnico-raciais de modo indireto. As licenciaturas com maior número de oferta de componentes curriculares relacionados à temática étnico-racial foram as de História dos municípios de Caetité, Itaberaba e Santo Antônio de Jesus; Pedagogia dos municípios de Irecê, Itaberaba, Senhor do Bonfim, Paulo Afonso e Valença; Teatro do município de Senhor do Bonfim; Geografia dos municípios de Caetité, Serrinha e Santo Antônio de Jesus; Matemática dos municípios de Caetité e Senhor do Bonfim; e Letras Português dos municípios de Brumado, Caetité, Ipiaú, Irecê, Itaberaba, Salvador e Euclides da Cunha. Aquelas que menos ofertaram disciplinas com essa temática, por sua vez, foram as licenciaturas de Física e de Química do município de Salvador; Ciências Biológicas do município de Teixeira de Freitas; Letras Francês do município de Alagoinhas; Letras Inglês dos municípios de Alagoinhas, Santo Antônio de Jesus, Salvador, Conceição do Coité, Jacobina e Teixeira de Freitas; Letras Espanhol dos municípios de Santo Antônio de Jesus e Salvador; e Educação Física dos municípios de Teixeira de Freitas, Jacobina e Guanambi. Como exemplo de disciplinas com menção direta dos conteúdos étnico-raciais no texto de suas ementas, é possível citar “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, presente no curso de Letras/Inglês do campus Salvador, nos cursos de Pedagogia dos campi Seabra, Bom Jesus da Lapa, Barreiras, Guanambi e Teixeira de Freitas. E “Literatura e Cultura Afro-Brasileira”, do curso de Letras/Português dos campi Brumado, Salvador, Barreiras, Conceição do Coité, Eunápolis, Jacobina e Teixeira de Freitas. Estes componentes apresentam em suas ementas, respectivamente, a proposta de repensar “a identidade étnico-racial do educador e dos educandos, educação antirracista: contexto escolar e prática docente, estudo de Políticas de Ação Afirmativa e Legislação específica e análise e produção de material didático de valorização e resgate da história e cultura afro-brasileira e indígena” e o estudo “de textos de literaturas de Língua Portuguesa que abordam questões étnico-raciais, visando o resgate e a valorização do povo negro, assim como a sua contribuição para a formação da cultura brasileira”. Já exemplificando o grupo de disciplinas com menção indireta, pôde-se observar “Diversidade Linguística”, dos cursos de Letras/Português dos campi Brumado, Euclides da Cunha, Barreiras, Conceição do Coité, Eunápolis, Jacobina e Teixeira de Freitas. E componentes da área “Cultura documental e Patrimonial”, dos cursos de História dos campi Salvador, Jacobina e Teixeira de Freitas. Tais ementas possuem em seu texto questões relacionadas ao estudo das diferenciações dialetais do português brasileiro à luz da sociolinguística, estudo da identidade histórica e valorização da diversidade cultural. Considerando tais fatos, na nuvem de palavras, apresentada na Figura 1 a seguir, observou-se em destaque palavras como “educação”, “social”, “cultural”, “cultura” e “estudar”. Também foi possível a observação de termos como “brasileiro”, “formação”, “histórico”, “Brasil”, “sociedade”, “história”, “processo”, “analisar”, “político”, “discutir”. A partir disso, aduz-se que nas ementas analisadas, a abordagem da temática étnico-racial foi construída a partir das vertentes sócio-historiográficas, culturais e políticas que conformam o Brasil.
Partindo dessa perspectiva, é importante considerar que a sociedade brasileira, em seus múltiplos aspectos, é extremamente marcada pela colonialidade. Esta, por sua vez, é um produto da dominação colonial e de um imperativo de poder que perpassa as estruturas subjetivas de um determinado povo, adentra a conceituação daquilo que ele caracteriza como sujeito e propaga-se para a sociedade de modo que, sua reverberação seja sentida mesmo após a finalização do domínio colonial. Ao longo desse processo, observa-se que há determinadas instituições sociais e espaços nos quais ela é sentida com maior força como nos campos de produção científica e nas escolas de educação básica, sendo nestas últimas, a esfera curricular aquela em que existe uma maior presença da colonialidade (Gomes, 2018). Exatamente por estes fatos torna-se evidente a necessidade de se pensar a abordagem de conteúdos inerentes ao campo das relações étnico-raciais a partir de perspectivas que considerem a pluralidade histórica, política e cultural que é inerente a essas discussões. Neste ponto, a nuvem contribui para a percepção de que na UNEB, de maneira geral, isso está ocorrendo. Já na árvore de similitude, apresentada na Figura 2, a seguir, foram identificados 6 halos. Foi possível observar que assim como na nuvem de palavras, o termo “estudar” também teve grande destaque na árvore, compondo o halo amarelo, de maior representação do corpus. Bem como, outras palavras de destaque na nuvem, também se configuraram como termos centrais dos outros grupos gerados pelo software.
No halo amarelo, como mencionado anteriormente, destaca-se a palavra “estudar” e como principais termos associados a ela estão “formação, questão, cultura, brasileiro, analisar, texto, abordar e diverso”. Além destes, mais alocados na periferia do halo, também emergiram os termos “produção, nacional, literário, antropologia, literatura, espaço, século, perspectiva, diferente e novo”. Neste agrupamento observou-se que entre as ementas analisadas um dos enfoques da abordagem de conteúdos étnico-raciais no currículo é o estudo do processo de formação da sociedade brasileira, destacando-se o estudo de textos literários e como eles refletem essa realidade e a diversidade da cultura nacional. Para Silva (1995), as narrativas curriculares são definidoras acerca de quais grupos sociais podem apenas ser representados e quais possuem o poder de representar a si e aos outros, e quais devem ser excluídos de qualquer espécie de representação. Além disso, essas narrativas tendem a valorizar de diferentes maneiras os grupos sociais, de modo que elementos como a história, política, cultura, conhecimentos, religião, de determinados grupos são mais valorizados em detrimento de outros. Dessa maneira, a análise de textos literários pode ser uma importante ferramenta para identificar essas relações de dominação e problematizá-las, no sentido de promover mudanças nessa realidade. Parcialmente imerso no halo amarelo, reforçando sua forte conexão com o mesmo, o halo azul teve como palavra principal: “cultura”, e ligados a ela os termos “conceito, história e contemporâneo”. Considerando isso, percebe-se que outro destaque na abordagem de conteúdos étnico-raciais nos currículos é o aprendizado do conceito de cultura e suas nuances, considerando perspectivas históricas e suas influências para a realidade contemporânea. A respeito disso, sabe-se que as concepções de cultura presentes e consolidadas no âmbito curricular escolar, em sua maioria, reiteram-se pelo racismo, pelo sistema patriarcal, pelas relações de poder, pela pobreza e produzem práticas coloniais e colonizadoras. Há materialização da colonialidade nos espaços educacionais quando há a adoção, pelos educadores, de posturas arrogantes no que tange às diversidades étnica, racial; quando há uma seleção restritiva dos conteúdos a serem discutidos com os estudantes, priorizando somente apenas uma leitura unilateral da realidade sobre as variadas questões culturais, sociais e políticas do país; quando há a disponibilização para o alunado de referenciais teóricos que possuem visões coloniais de mundo. Por essa razão, observa-se uma necessidade premente e um cuidado maior com a descolonização dos currículos. (Gomes, 2018). Na sequência, da mesma maneira que o agrupamento anterior, também apresentando forte ligação ao halo amarelo, encontra-se o halo rosa. Originado a partir da palavra “processo”, incluiu em seu grupo também os termos “africano, estado e África”. O enfoque neste caso debruça-se sobre a discussão de temas inerentes ao continente africano e seu processo de desenvolvimento, incluindo aspectos históricos, políticos e sociais. A respeito disso, em 9 de janeiro de 2003, foi promulgada a Lei n° 10.639 que estabelece a obrigatoriedade de inclusão na rede de ensino, da temática “História e Cultura Afro- Brasileira" (Brasil, 2003) e oferece ponto de partida para a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. O principal objetivo dessa lei constituiu-se no combate ao racismo na sociedade brasileira por meio da educação, uma vez que, historicamente no plano educacional brasileiro a colonialidade desvelou-se de modo a supervalorizar a cultura europeia em detrimento das culturas africanas e ameríndias. A implementação dessa lei, portanto, ajuda a desmitificar preceitos enraizados na sociedade brasileira, empregando a educação como principal ferramenta para a criação de uma sociedade mais igualitária e justa (Sindipetro, 2018). E a ênfase desse debate, elucidada pela formação do halo rosa, demonstra que nas licenciaturas da UNEB essa perspectiva tem sido contemplada. Já o halo verde, por sua vez, evidenciou como termo central a palavra “cultural” e a partir dela, os demais elementos que apresentaram forte associação à mesma foram “estudo, relação, conhecimento, aspecto, histórico, concepção e construção”. Ademais, também alocadas à periferia do halo, estão as palavras “partir, refletir, científico, língua, português, indígena”. A partir disso, é possível inferir que outra ênfase dos currículos está no estudo de aspectos históricos que influenciam a construção da concepção de língua prevalente hoje e como tais aspectos tiveram impacto também no contexto cultural. Considerando neste ponto, além de elementos de influência africana, outros de origem indígena. Segundo Costa (2008), as culturas dos povos negros e indígenas também podem ser compreendidas a partir de um enfoque histórico. A noção de História Cultural é um ramo da História que destaca que os símbolos, as mentalidades, as imagens e as práticas culturais podem ser estudados com o intuito de responder aos seguintes questionamentos: como atuam os mecanismos de exploração e de dominação entre os grupos humanos e como tais mecanismos se reverberam? Desse modo, o estudo de uma língua, a partir de um recorte acerca de seus aspectos culturais, permite conhece-la intrinsecamente. E ainda possibilita a análise de mecanismos danosos que se projetam na atualidade, como o racismo. Nesse sentido, halo vermelho, se origina a partir da palavra “social”, no entanto esta se encontra fortemente associada ao termo “discutir” e inclui em seu agrupamento também os elementos “político, Brasil, econômico, política, movimento e tema”. Tal conjunto de vocábulos elucida que neste halo, a ênfase está na discussão de temas, sobretudo sociais, mas também políticos e econômicos que são de grande importância para o Brasil. A discussão de problemáticas sociais é fundamental no âmbito da educação para as relações étnico- raciais, tendo em vista que umas estão intrinsecamente ligadas às outras. Siqueira, Dias & Amorim (2020) destacam a educação envolve muito mais do que a pura transmissão de conteúdos, porque esta deve incluir também saberes culturais e sociais, principalmente aqueles relacionados às vivências dos sujeitos implicados no processo de aprendizagem. Dessa maneira, é possível contribuir significativamente para a formação de atores sociais conscientes de seus papeis. Por fim, o halo roxo tem como elemento principal e originário do seu grupo, a palavra “educação”. Conectados a ela encontram-se também os termos “didático, ensino, contexto, identidade, prático, desenvolvimento, básico”. Isso permite a inferência de que outra temática enfatizada nos currículos quanto ao ensino de conteúdos inerentes às relações étnico-raciais são os debates acerca de temas relativos à educação, incluindo o processo de ensino e a didática que ele demanda. Que ações e abordagens práticas podem proporcionar melhor aprendizado dos indivíduos e desenvolvimento de sua identidade, enquanto sujeitos. Neste ponto, Coelho & Coelho (2021) explicam que o enfrentamento de problemas sociais como o racismo, perpassa a necessidade de discutir processos de ensino e abordagens didático-pedagógicas coerentes com a problematização de temas sensíveis em sala de aula, sobretudo destacando a relação entre esses e a interação dos estudantes com o mundo. Isso precisa transcender a reformulação dos currículos e se concretizar em práticas cotidianas que promovam a consciência cidadã e a efetivação de demandas da sociedade civil.
4.Considerações Finais
Os dados produzidos a partir das ementas analisadas permitiram inferir que a abordagem da temática étnico-racial nos currículos das licenciaturas da UNEB foi construída a partir das vertentes sócio- historiográficas, culturais e políticas que conformam o Brasil. Este fato corrobora com o previsto nas DCN para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Lei 11.645/2008, uma vez que as mesmas, respectivamente, acentuam a importância da valorização identitária sociocultural dos grupos étnicos integrantes do território brasileiro (em especial pretos e indígenas), bem como o estudo de suas raízes históricas como matérias a serem ministradas tanto no ensino superior (de maneira facultativa), quanto no ensino básico (de modo obrigatório). Observou-se também, a busca de alternativas para a superação da colonialidade presente nos espaços acadêmicos, a partir de conteúdos que propiciassem o debate em torno da temática étnico-racial, sentida a partir do prisma de entendimento e superação do domínio colonial. Tendo em vista o estudo do processo de formação da sociedade brasileira, constatou-se que o mesmo se estruturou dentro das ementas analisadas, através de documentos e textos de cunho literário que perpassam temas como diversidade e cultura e reiteram a necessidade de valorização de ambas, ainda que a porcentagem de ementas com conteúdo étnico-racial (15,05%) não tenha sido tão expressiva. Foi evidenciado que a valorização da historiografia, identidade e cultura dos povos de matriz indígena e africana, ocorre a partir da perspectiva da dialetologia e das suas nuances acerca das influências culturais que esses dois grupos étnicos exercem no português brasileiro. A observância da discussão das problemáticas socioeconômicas da realidade brasileira, fundamental no que tange à educação para as relações étnico-raciais, destacou a necessidade de formação de atores sociais conscientes do impacto de seus respectivos papéis na sociedade. A educação foi abordada sob a ótica da didática e do desenvolvimento, enfatizando-se a necessidade da existência de debates que abarquem a temática étnico-racial, a partir da perspectiva constituída pelo processo de aprendizagem e didática nele empenhada. Nesse contexto, nota-se que a educação é apresentada como uma importante ferramenta de emancipação, tanto do sentido da formação de professores e estudantes críticos, capazes de contestar a dinâmica racista ainda presente na sociedade e nas instituições, quanto no sentido de disseminar um referencial teórico condizente com a valorização das culturas africana e indígena. Percebe-se que, de modo geral, a análise viabilizada pelo estudo possibilitou a identificação de demandas preconizadas pela Lei 10.639/2003 nos cursos da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), ainda que nem todas as licenciaturas tenham sido contempladas (ou suficientemente contempladas) pelas ementas com conteúdo étnico-racial. No que se refere às limitações do estudo, é importante frisar que, embora tenham sido identificadas ementas que tratem sobre a referida temática, a abordagem dada aos temas é algo que demanda o desenvolvimento de novos estudos.