1.Introdução
As Práticas Integrativas e Complementares (PICs) receberam muita atenção nas últimas décadas no Brasil e no mundo (Cavalcanti et al., 2014). Indubitavelmente, a aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), em 2006, e suas subsequentes atualizações, em 2017 e 2018, pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2006, 2017, 2018) foram grandes marcos para a oferta das PICs no Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, os trabalhadores de saúde da Atenção Primária à Saúde (APS), os quais são profissionais de outras áreas disciplinares que também oferecem PICs, além dos cuidados biomédicos, costumam enfrentar problemas de ordem política dentro das Unidades Básicas de Saúde (UBS) ao oferecer um cuidado “diferente” do convencional no seu trabalho (Barros et al., 2018; Habimorad et al., 2020; Paradis & Whitehead, 2017). Diante deste cenário relatado na literatura e a partir do estudo realizado com garis da Universidade de São Paulo foi desenvolvida a noção de invisibilidade pública (Costa, 2004), que é definida como uma cegueira psicossocial, um adoecimento presente nas classes dominantes que produz nos grupos oprimidos um sofrimento político e diferentes modos de humilhação social (Gonçalves Filho, 2004; 2013), nos parece, assim, que tal fenômeno social pode estar sendo enfrentado pelos profissionais ofertantes das PICs na APS. Weil (2008) afirma que a humilhação social é o maior sofrimento vivido pelo proletariado. A autora abandonou a vida acadêmica para trabalhar como metalúrgica em uma fábrica da Renault, a fim de provar que o trabalho assalariado era uma escravidão disfarçada. A divisão rígida do trabalho em mecânico versus intelectual e dirigido versus dirigente provocava a opressão dos trabalhadores, uma vez que estavam impossibilitados de pensar sua prática profissional. A humilhação social é desenvolvida com a desvalorização e a diminuição da importância das ações produzidas. São palavras expressas e mensagens subliminares que podem até não ser percebidas conscientemente, mas que são sentidas. Com ela são retiradas as oportunidades de crescimento, de desenvolvimento, da produção de conhecimento e de cidadania, bem como a eliminação do sentimento de ter direitos (Costa, 2004; Gonçalves Filho, 2004; 2013; Weil, 2008). A invisibilidade pública e a humilhação social acontecem em grupos minoritários e com menores direitos sociais (Jardim & López, 2013). Matos et al. (2020) identificaram a ocorrência desses fenômenos sociais sofridos pelos agentes de endemias do município de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, no Brasil. Dessa forma, esse achado pode reforçar ainda mais nosso pressuposto de que esses elementos possam estar acontecendo também com os profissionais ofertantes de Práticas Integrativas e Complementares, pois sua implementação na APS pode sinalizar o crescimento da ordem contra hegemônica do cuidado em saúde e pela experiência de constrangimentos praticados pelos outros trabalhadores que compõem a equipe multiprofissional (Ruela et al., 2019; Takeshita et al., 2021). É nesse sentido que este estudo se apresenta com a seguinte pergunta: quais fatores podem revelar a humilhação social dos trabalhadores ofertantes dos serviços integrativos e complementares e a invisibilidade pública das PICs na APS? À vista disso, o objetivo da pesquisa é compreender os fatores que contribuem para a produção de humilhação social e invisibilidade das PICs na APS na perspectiva dos profissionais na Região Metropolitana de Goiânia (RMG), no Estado de Goiás, no Brasil.
2.Métodos
Trata-se de uma análise descritiva, exploratória e com abordagem qualitativa, desenvolvida com os resultados de uma dissertação de mestrado intitulada Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: Percepções dos profissionais sobre a oferta dos serviços na Região Metropolitana de Goiânia oriunda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Goiás sobre os sentidos que os profissionais de saúde atribuem à oferta das PICs na APS. A pesquisa também integra o macroprojeto, cujo título é Práticas Integrativas e Complementares nos serviços de Atenção Primária em Saúde - Região Metropolitana de Goiânia. Nesse projeto, três municípios foram excluídos: dois secretários municipais de saúde não autorizaram a realização do estudo e um não respondeu se consentia com o desenvolvimento da pesquisa ou não. Segundo o Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Ministério da Saúde, 2017), nos 17 municípios participantes da pesquisa, há 234 serviços de APS. Destes, 54 não participaram do estudo, pois não estavam em funcionamento (reforma predial e/ou não foram contactados via telefone). Foi realizado um censo com os gerentes de 180 serviços de APS dos municípios da RMG para identificar quais eram as PIC e os profissionais que as ofertavam. No que se refere ao segundo semestre de 2017, existiam 23 serviços, nos quais 29 profissionais ofereciam alguma PIC, em cinco cidades na RMG. Dos 29 identificados, 22 trabalhadores, respeitavam nosso critério de inclusão: profissionais de Saúde que oferecem alguma PIC na APS na RMG. Sete profissionais não participaram do nosso estudo: uma se recusou a participar; três não foram contatados e três haviam encerrado a oferta das PIC. Nosso critério de exclusão eram aqueles profissionais de saúde que, por motivo de falta, férias ou licença de qualquer natureza, não estavam nos serviços de APS na RMG, no período de coleta de dados que compreendeu os meses de janeiro a agosto de 2018. Assim, duas profissionais foram excluídas, pois ambas estavam de licença-prêmio. Por fim, nosso estudo contou com a participação de 20 profissionais, de 14 serviços de APS, em três municípios na RMG. Decidimos realizar a coleta de dados com todos os profissionais que se enquadrassem e concordassem em participar do estudo, por considerarmos que não poderíamos desprezar informações ímpares, que se destacariam e com experiências singulares, sendo que seu potencial explicativo poderia ser importante para as descobertas das lógicas internas nesse grupo. Consideramos, também, privilegiar os trabalhadores da saúde da APS na RMG que detinham os atributos, características, experiências e expressões, capazes de satisfazer nossa pergunta de pesquisa (Minayo, 2017). A coleta dos dados foi feita por entrevistas semiestruturadas, isto é, guiadas por um roteiro previamente elaborado abordando questionamentos básicos e pertinentes à investigação. Optamos por essa estratégia metodológica por ser a mais comumente utilizada nas pesquisas envolvendo os sentidos, percepções dos profissionais da APS acerca das PICs (Roberts et al., 2020; Schwartz et al., 2021; Silva et al., 2021). Além disso, a entrevista possibilita aprofundamento dos conhecimentos acerca do objeto pesquisado, por propiciar ajuste contínuo do processo com base em perguntas e respostas, diálogos e reflexões, os quais emergem da interação (Aspers & Corte, 2019). O instrumento utilizado para coleta de dados constou de quatro módulos, quais sejam: Perfil sociodemográfico; Processo de Formação; Trabalho com as PIC; e Valorização das PIC na UBS. As entrevistas foram conduzidas por um único pesquisador, do sexo masculino, discente de um programa de mestrado em saúde coletiva e fisioterapeuta de um posto de saúde da família pertencente a um município que integra a RMG. Entretanto, este município não ofertava PICs em suas UBS. Com isso, o pesquisador não conhecia ou tinha contato prévio com os pesquisados. Cabe ressaltar que o entrevistador tinha experiência pregressa com a realização de entrevistas estruturadas em outros projetos de pesquisa. Diante disso, julgamos não haver necessidade de preparação ou treinamento do pesquisador, por ele estar familiarizado com este tipo de coleta de informações junto aos participantes em outros estudos. Os participantes foram convidados a participar do estudo pelo pesquisador por meio de contato telefônico. Neste momento, foram apresentadas as credenciais do pesquisador como mestrando e membro da equipe do macroprojeto de pesquisa. Nesse primeiro contato, também foi informado ao entrevistado(a) de que se tratava de uma pesquisa para a conclusão do mestrado do pesquisador, assim como a finalidade, riscos e benefícios da pesquisa. Diante do aceite, foram agendados dias e horários para as entrevistas, nos locais de trabalho dos profissionais. Posteriormente, realizamos a visita reforçando os objetivos do estudo, garantindo o anonimato e sigilo das informações. Diante da concordância, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para ser lido e assinado. Os direitos dos participantes foram protegidos mediante a informação de todos os aspectos relevantes da pesquisa, incluindo seus riscos e benefícios. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás sob o parecer nº 2.057.783. Durante a entrevista, realizada em consultórios médicos da UBS, não havia mais ninguém presente além do pesquisador e do participante. As entrevistas tiveram uma duração, em média, de 45 minutos, foram áudiogradavadas e transcritas na íntegra. Utilizamos as duas primeiras entrevistas, também, com o objetivo de verificar possíveis inconsistências, complexidades das questões, ambiguidades ou linguagem inacessível, existência de perguntas que causassem algum embaraço ao entrevistado, incoerência na ordem das perguntas, se as questões eram demasiadamente numerosas e observar se o tempo de duração previsto seria adequado ou não. Não houve a necessidade de adaptação do instrumento, pois observamos que as entrevistas tinham uma duração satisfatória e capaz de apreender as informações necessárias para responder nossas perguntas de investigação. Os dados obtidos foram analisados por meio da Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2016). Utilizamos um programa de apoio à análise qualitativa o software NVivo© Plus versão 12, o qual auxiliou na organização dos dados, possibilitando uma análise mais padronizada e permitindo a análise por mais de um pesquisador. Atribuímos a cada transcrição das entrevistas com a letra “P”, acrescida do número atribuído a cada participante da pesquisa correspodendo a ordem de realização do convite. Iniciamos com a pré-análise para organizar o material a ser analisado, proporcionando o primeiro contato e o momento em que começamos a conhecer os conteúdos dos documentos transcritos da coleta de dados, por meio da leitura flutuante. Em seguida, fizemos a exploração do material, em que, nessa fase, se deve recorrer ao processo interpretativo para a formação das categorias. Nessa etapa, foram identificados os códigos com semelhanças quanto ao critério semântico e selecionados os fragmentos de textos que, de fato, representavam os argumentos mais significativos. Logo, realizamos a codificação pelo método dedutivo, ou seja, à anteriori, em que a categorização foi realizada de maneira prévia. O entrevistador e uma egressa do mesmo programa de pós-graduação foram treinados por dois professores e especialistas na análise de dados qualitativos, conduziram a análise de conteúdo temática. Os dados foram analisados separadamente. As análises foram comparadas e culminaram no desenvolvimento de um conjunto final de temas (códigos coincidentes). Os demais autores desta pesquisa participaram das discussões dos resultados e redação deste manuscrito. Os resultados não foram devolvidos aos participantes. A Figura 1 ilustra as categorias temáticas decorrentes dos códigos. A última etapa de análise dos dados, consistiu no tratamento dos resultados obtidos e nas interpretações seguindo os objetivos propostos à luz dos conceitos de humilhação social e invisibilidade pública baseados nos estudos de Costa (2004), Gonçalves Filho (2004; 2013) e Weil (2008).
3.Resultados e Discussão
3.1 A humilhação social dos profissionais das Práticas Integrativas e Complementares da Atenção Primária à Saúde
Foram entrevistados 20 profissionais de saúde. As características sociodemográficas dos participantes do estudo estão relatadas na Tabela 1.
Os profissionais têm o direito de realizar as PICs no dia estabelecido para tal, porém, nem sempre é respeitado, pois não podem se ausentar da UBS devido às tarefas tidas como prioritárias pela gerência da UBS e os gestores da SMS. Portanto, existe uma subordinação hierárquica e controversa nos processos de trabalho destes profissionais. Eles têm uma certa autonomia para oferta das PIC, contudo, não possuem independência para escolher quais atividades devem priorizar na UBS. Desse mesmo modo, as enfermeiras que ofertam Auriculoterapia nas UBS sentem-se sobrecarregadas, pois não podem abandonar a realização de outras atividades, consideradas básicas no processo de trabalho na APS. Uma delas afirmou que “estava ficando um pouco difícil, porque até a gestora veio conversar: ‘olha, tem os outros grupos’. Aí como estavam querendo que aumentasse a quantidade de eu pôr os pontinhos [a auriculoterapia], eu falei assim: ‘não, não dá’. (P14) Essas profissionais vivenciam um processo de sobrecarga que se soma aos diferentes formatos de desvalorização do seu trabalho. Embora percebam as consequências do acúmulo de tarefas e rebaixamento social, elas não enfatizam o seu direito de “reclamar”, de reivindicar melhores condições de trabalho, possivelmente por uma submissão inconsciente e “o sentimento de não possuir (ou possuir menos) direitos” (Bosi, 2002; Jardim & López, 2013). Os relatos de uma psicóloga que oferta Terapia Comunitária acrescentam mais detalhes sobre os obstáculos vivenciados para desenvolver as PICs na APS. As narrativas mostram que a dificuldade de liberação para se ocupar das PICs é também relacionada com uma descrença sobre a prática. Como afirmou,
“Eu não sinto uma valorização do trabalho. Quando eu falei para eles [equipe] que eu estava querendo treinar e sensibilizar as pessoas para ocupar esse lugar de liderança que hoje eu ocupo [na Terapia Comunitária] (...) eu fui ‘malhada’ até dizer chega. Quando eu fui falar sobre essa possibilidade, as duas colegas que tem formação, pós-graduação em Terapia Comunitária, [disseram:] ‘não, você tá jogando o meu diploma no lixo’. Então, se eu quero fazer Terapia Comunitária é porque eu quero. Porque o meu trabalho tinha que ser aqui nas quatro paredes”. (P5).
Claro que essa “barreira”, com o tempo, ganha a dimensão de um golpe sutil, uma mensagem que vai minando suas forças, seu desejo, sua vontade. Um sentimento de angústia, de desvalorização, de desinvestimento, de solidão. Em suas palavras:
“Não sou especialista em Terapia Comunitária, mas eu faço isso com muito carinho, com muito gosto e gosto do que faço e vejo que tem um resultado, ninguém quer pôr a mão, ninguém quer trocar. Você está gostando de fazer? Então, continue fazendo”. (P5)
Observa-se em seus relatos um misto de satisfação e reconhecimento de sua importância no trabalho, mas também um sentimento de angústia pelo desrespeito e desconsideração ao oferecer essas práticas aos usuários. Ademais, o desconhecimento e o desapoio do trabalho com as PICs levam à humilhação do profissional, que tem seu trabalho considerado como um passatempo:
“Dá impressão que é uma coisa de passar tempo, não funciona. Os profissionais têm dificuldade de ver a gente saindo, não atendendo os pacientes aqui e atendendo lá fora”. (P5)
Há uma “confusão”, com mensagens contraditórias e incongruentes transmitidas pela equipe e pela coordenação do serviço. Por um lado, as PICs são consideradas importantes e até fundamentais, mas, por outro, não fazem parte do quadro de prioridades. Gonçalves Filho (2004; 2013) nos ajuda a compreender a questão ao afirmar que a humilhação social é um fenômeno histórico, político, externo, construído socialmente através do tempo e, também, interno ao indivíduo e psicológico. Em outros termos, refere- se a um efeito de desigualdade política, afastando uma classe inteira de sujeitos do contexto intersubjetivo da iniciativa e da palavra. Muitas entrevistadas relataram eventos semelhantes de humilhação social. Narraram um sentimento de exclusão, de estarem separadas, de não pertencimento, impossibilitadas de se expressarem, de mostrarem o valor e a eficácia da prática. Por meio de todas estas percepções identificam uma não validação das PICs como parte dos arsenais terapêuticos da APS e a sua subvalorização como ofertantes dessas práticas. Tais fatos ficam evidentes nos extratos que seguem, em que as entrevistadas afirmam que: “Uma coisa que é bem assim afastadora é achar que o que acontece no serviço não tem nada a ver com a terapia [comunitária]. É como se ela não pertencesse ao serviço”. (P5) As profissionais entrevistadas declaram dificuldades no espaço técnico e político, porém o espaço físico, propriamente, é um problema concreto. Não existem locais apropriados dentro das unidades para a realização das PICs. Muitas vezes, é realizada nas praças, salões de igreja, auditórios, recepção da UBS, associações de bairro, salas de reuniões, salas de atendimento, bancos das áreas externas, entrada da unidade ou nos fundos dela. A narrativa abaixo expõe essa falta quando a entrevistada afirma que:
“A gente tem um local aqui que é da igreja católica que eles emprestam o salão comunitário para a gente trabalhar, para a gente reunir”. (P6)
A falta de espaço adequado para a realização de uma prática não biomédica dentro do serviço de saúde, conforme relatado por várias profissionais, é um fenômeno também observado em Israel e denominado por eles de “marginalização espacial” (Shuval et al., 2012). Observou-se naquele país que as PICs são desenvolvidas em ambientes afastados dos serviços de saúde ou até mesmo fora do seu território de cobertura. Assim, os profissionais são admitidos nos serviços, porém na periferia do seu espaço social e geográfico, protagonizando um status imaginário de um ser de outro mundo. Essa tensão, dividindo o mesmo ambiente de trabalho, pode ser explicada pelo conceito de boundary at work (fronteira no trabalho). Nele ocorre a exclusão e a marginalização de alguns profissionais, sendo eles apontados como forasteiros, mediante os processos multidimensionais de definição das fronteiras simbólicas no campo (Fox, 2011). A resistência da inclusão das PICs também foi evidenciada nos sistemas de saúde do Canadá (Hollenberg & Muzzin, 2010), Estados Unidos (Schwartz et al., 2021) e Reino Unido (Sharp et al., 2018). De modo geral, a oposição entre a biomedicina e as PICs foi relacionada a: desvalorização de conhecimentos de saúde não biomédicos; aceitação de evidências restritas; e a criação de uma visão de mundo monolítica biomédica (Gale, 2014; Kidd, 2013). Constata-se, desta maneira, que os profissionais “não-biomédicos” estudados nesses países passam por processos semelhantes de desvalorização e falta de reconhecimento. São muitas as consequências da humilhação social continuada e, do ponto de vista coletivo, pode trazer a perda do desejo de criar e realizar formas de cuidado humanizadas. As perdas individuais e coletivas que estão sendo produzidas pelas equipes de profissionais e gestores dos serviços de saúde que desapoiam os profissionais que ofertam as PICs são significativas. O trabalho pouco valorizado com uma prática de cuidado desvalorizada, reduz o desejo de muitos profissionais de saúde serem “atores” e agentes de mudança. Com isso, importam-se menos com a qualidade de vida da comunidade e substituem as práticas de produção de vida do seu cuidado em práticas estéreis.
3.2 A produção de invisibilidade pública das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde
Existe uma invisibilidade pública das PICs o que se evidencia pela desuniformização do registro nos prontuários dos usuários e a desautorização durante a realização das reuniões de equipe. Segundo Costa (2004), a invisibilidade pública produz o desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens. Weil (2008) passou pela experiência de “escravidão” ao trabalhar como operária, como escreveu em seu diário: “a escravidão me fez perder totalmente o sentimento de ter direitos” (p. 206). Assim, vivenciou a crise, o desemprego, a dominação. Ela considerava que as forças motrizes da violência seriam a grande indústria, a polícia, o exército e a burocracia. A subordinação como meio de opressão fica evidente no relato dos profissionais que não se autorizam a falar sobre seu trabalho nas reuniões de equipe:
“Muito difícil tocar no assunto, porque as pessoas não acreditam. Não existe esse interesse por parte da equipe... Talvez, eu não saiba informar adequadamente a característica do trabalho, o que é para ser feito, o que pode ser feito e qual a vantagem desse trabalho”. (P16)
Estes trabalhadores enfatizam o sentimento de não permissão para relatar seu trabalho com as PICs e ainda se questionam se estão errados por não tocar no assunto. Assim, um círculo vicioso se forma: os profissionais não se sentem seguros para compartilhar com a equipe sua experiência, a equipe, por sua vez, acaba por não se interessar pela prática, não estimulando sua explanação, com isso, os casos não são discutidos e os pacientes não são acompanhados. A reunião de equipe é uma ocasião em que as pessoas se mostram, em que suas personalidades e individualidades emergem mais claramente e são importantes para a organização e estruturação do trabalho, para o estabelecimento de diretrizes, sendo um momento crucial para a tomada de decisões. Nas reuniões, os casos dos pacientes podem ser discutidos numa visão interdisciplinar, com a construção de projetos e planos de atendimento coletivos (Grando & Dall’Agnol, 2010). Porém, os participantes descrevem a sensação de não estarem em “pé de igualdade” com os profissionais biomédicos, ocupando, portanto, um lugar de inferioridade. A ocupação deste lugar subordinado demonstra a existência de um jogo de poder e de dominação entre os diferentes profissionais de saúde “incluídos”, restritos às práticas alopáticas, e os “excluídos”, que detêm outras práticas de cuidado na APS (Barros et al., 2018). A presença das PICs cria um tensionamento com o paradigma dominante, com a visão centrada na doença, no hospital, na biomedicina. Todo esse contexto gera conflitos, disputas de poder, não apenas por quem “manda”, por quem detêm o conhecimento, mas também por quem está autorizado a “cuidar”, a “ser reconhecido” como um profissional de saúde (Paradis & Whitehead, 2017). Tanto que não se nota a presença da categoria médica ofertando PICs na RMG, cuja presença poderia trazer “mais credibilidade” às PICs, facilitando a adesão da gerência e da equipe. Todavia, essa ausência da participação médica parece acentuar a invisibilidade das PICs. A ausência da discussão das PICs nas reuniões de equipe estende-se para a ausência de informações nos prontuários dos praticantes, que é um importante meio de comunicação entre os profissionais, funcionando como um instrumento de integração da equipe de saúde para desenvolver a coordenação dos cuidados de APS. O prontuário é imprescindível para que se realize o acompanhamento longitudinal dos pacientes e para que as informações possam ser transferidas aos diversos especialistas, garantindo, assim, a continuidade dos cuidados (Pinto, 2005). As informações sobre os praticantes das PICs são anotadas de diversas maneiras: as vezes em prontuários físicos ou eletrônicos, outra em cadernos e livros-atas. No entanto, a maior parte dos profissionais não faz o relato das PICs nos prontuários dos participantes. Assim, os profissionais não se apropriam do que fazem, não têm como avaliar o progresso dos seus pacientes perante a equipe, talvez perdendo a identidade de cuidadoras de fato. Tornam-se, deste modo, “invisíveis como profissionais da saúde”. Ser invisível, sofrer por não ser visto, é um sofrimento político e um fenômeno psicossocial que assume caráter crônico nas sociedades capitalistas com a reificação (Gonçalves Filho, 2004; 2013). A reificação se caracteriza como um processo pelo qual o valor (de pessoas, objetos, instituições, relações) se apresenta à consciência dos homens como valor sobretudo econômico, como valor de troca, mercadoria. Portanto, o trabalho reificado não aparece por suas qualidades, um trabalho concreto, mas como um trabalho abstrato, para ser vendido. São criadas, assim, relações entre coisas. Com isso, o homem se apaga, se mantém à sombra. Tudo passa a contar, primariamente, como mercadoria, isto é, o homem é transformado em coisa (Costa, 2004; Gonçalves Filho, 2004; 2013). A reificação fica evidente nos relatos a seguir: “A gente registra nesse caderno. Porque é exigida a produtividade, para lançar no computador” (P7)”; “a gente precisa fazer lançamento desses usuários no sistema da prefeitura (P9)”. Sumariamente, a humilhação social e a invisibilidade pública dos profissionais que trabalham com as PICs na APS é uma questão mais ampla do que parece. Não é apenas uma simples falta de espaço na agenda das reuniões de equipe para que as PICs sejam discutidas, ou de falta de solicitação por parte da coordenação para que os profissionais mantenham os prontuários atualizados quanto à vida do paciente. Portanto, é um fato regular, conforme se notam nas narrativas dos profissionais, e, sem dúvida, isso levanta um questionamento: quais prejuízos e impactos, não apenas às PICs, mas também à toda a equipe, ao sistema de saúde e, principalmente, aos usuários, são causados em consequência da invisibilidade pública e a humilhação social? A PNPIC passou por duas atualizações no último quadriênio e o escopo de PICs ofertadas pelo SUS foi ampliado para 29 diferentes práticas (Brasil, 2017, 2018). Logo, o escopo de PICs ofertadas pelo SUS foi ampliado durante o período da pesquisa, em que se considera uma limitação temporal do trabalho. Imersos nessa “integração precária” (Barros et al., 2020), Brasil reprodução de conhecimento e constrangimento pelas relações hierárquicas pré-existentes, os profissionais parecem não conseguir estabelecer uma comunicação legítima do lugar que lhes pertence entre as práticas de cuidado com PICs na APS. Eles estão autorizados a exercer seus conhecimentos, por direito conquistado com a PNPIC, porém, sua capacidade de falar e agir de maneira autorizada e com autoridade não parece acontecer nos serviços de saúde (Jardim & López, 2013).
4.Considerações Finais
Nosso estudo analisou as PIC nos serviços de APS da RMG na perspectiva dos profissionais de saúde e nos levou a concluir que o seu trabalho esbarra em dificuldades simbólicas que circunscreve múltiplos modos de invisibilidade pública e humilhação social. Sofrem com a omissão da gestão e os demais profissionais que integram as equipes de saúde em apoiar a sua execução. Esses achados só poderiam ser encontrados através da abordagem qualitativa, pois eles emergiram a partir das narrativas analisadas em profundidade. O apontamento da ocorrência destes fenômenos sociais pelos participantes sentidos, vivenciados, experenciados, dificilmente, seriam expressos em um questionário estruturado e expostos em uma entrevista fechada. Sem dúvidas, os instrumentos e análise qualitativos foram essenciais para apreender a temática em foco. As evidências deste estudo sugerem que os profissionais alternativos sofrem um apartheid epistemológico, pois as PICs também inexistem nas discussões entre as equipes dos serviços de APS. Enfrentam o apagamento cultural, isto é, o poder biomédico define, de modo inconsciente, que elas são inferiores. O establishment, ou seja, as normas e o controle da classe dominante (a biomedicina), expulsa a realização das PICs de dentro dos serviços de saúde, colocando-as em espaços improvisados, inadequados e/ou nos “fundos ou fora” das unidades. Outra importante informação encontrada que reforça essas ideias foi a inexistência do registro das PICs nos prontuários dos usuários. A PNPIC poderia representar uma conquista social e histórica. Em conjunto, os resultados desde estudo indicam que as PICs estão incluídas, mas ainda “fora” do sistema de Saúde. Ainda que entreposta no serviço, são vistas como algo a mais, um extra, que não estão atreladas as demais atividades, atendimentos e práticas de cuidado.