1.Introdução
O transporte inter-hospitalar é uma das áreas mais complexa e exigente dos cuidados de enfermagem que registou um crescimento progressivo e exponencial na última década (Martins & Martins, 2010; Lopes & Frias, 2014). Neste sentido, o transporte inter-hospitalar da pessoa em situação crítica assume-se como uma área de real importância para o desenvolvimento profissional dos cuidados de enfermagem prestados neste âmbito. No contexto português, existem poucos estudos que abordam o transporte inter- hospitalar nas ambulâncias de suporte imediato de vida (SIV) e, apesar desta temática de investigação não ser propriamente recente, surge com novos focos de interesse, tornando-a uma problemática completamente atual no âmbito da enfermagem. O transporte inter-hospitalar é um processo difícil e rigoroso que envolve riscos. Vários estudos apontam para fatores que condicionam o transporte. Os fatores dificultadores do processo de transferência inter- hospitalar percecionados pelos enfermeiros centram-se na falta de planeamento e de organização do transporte, bem como na instabilidade do doente (Mata, 2014). Outros demonstram que as intercorrências clínicas mais frequentes se centram na instabilidade hemodinâmica, agitação psicomotora e insuficiência respiratória (Santos et al., 2019). Por outro lado, a falha de comunicação entre equipas é considerada um dos eventos não clínicos mais comumente descritos (Santos et al., 2019; Sousa, Teles & Oliveira, 2020). Surge, assim, como pergunta de investigação: “Qual a perspetiva dos enfermeiros sobre as dificuldades experienciadas no transporte inter-hospitalar em ambulâncias de suporte imediato de vida?” Este estudo, pretende explorar e descrever a perspetiva dos enfermeiros das ambulâncias de SIV sobre as dificuldades experienciadas no transporte inter-hospitalar.
2.Metodologia
A investigação científica é um processo de aquisição de conhecimentos sistemático e rigoroso, que consiste em examinar fenómenos com o objetivo de responder a questões que se pretendem aprofundar.
2.1 Tipo de estudo
A investigação qualitativa constitui uma modalidade frequentemente utilizada, na medida em que aborda os significados, os motivos, as crenças, os valores e as atitudes. Neste contexto, optou-se por uma metodologia com pressupostos qualitativos e, por um estudo de carácter exploratório e descritivo. De facto, Amado (2017) afirma que a investigação qualitativa consiste numa investigação sistemática e sustentada, que objetiva junto dos sujeitos obter a informação e compreensão do sentido de comportamentos, emoções, formas de ser, de estar e de pensar face ao objeto de estudo. Assim, a investigação qualitativa possibilita compreender, descrever, interpretar o meio e o fenómeno tal como se apresentam. Taquette (2015) refere que este tipo de estudo assenta em métodos de recolha de dados sem medição numérica, como as descrições, o relato das experiências e vivências, os significados e a interpretação individual de cada um que só a metodologia qualitativa pode fornecer e os números não traduzem. Relativamente ao estudo exploratório-descritivo, Sampieri et al. (2006) definem que este é usado quando o objetivo é examinar um tema ou problema de pesquisa pouco estudado, no qual se tem dúvidas ou não foi abordado previamente. Neste sentido, permite ao investigador familiarizar-se com fenómenos relativamente desconhecidos, de acordo com a descrição efetuada pelos participantes. De igual modo, Fortin et al. (2009) caracterizam o estudo exploratório-descritivo como aquele em que o investigador pretende explorar e descrever determinado fenómeno, quando possui poucos conhecimentos sobre o mesmo. Os referidos autores salientam que este pretende conhecer melhor um fenómeno sem realizar comparações, criar relações ou encontrar soluções para melhorar determinada situação.
2.2 Participantes do estudo
Num estudo de investigação, os participantes carecem de ter a experiência do fenómeno a ser estudado e possuir um saber pertinente, de modo a testemunhar sobre a sua experiência. Neste tipo de estudos, destaca-se a relevância do contributo que cada participante dará ao estudo do que propriamente o elevado número de participantes (Fortin et al., 2009). A população em estudo foi constituída pelos 10 enfermeiros que asseguravam o transporte inter- hospitalar, na ambulância de SIV da região norte do país, atuando na dependência direta do CODU (Portaria nº 260/2014, de 15 de dezembro). A escolha dos participantes teve como critério de inclusão a operacionalidade na área do objeto de estudo, isto é, necessitavam de ser enfermeiros que exerciam atividade em ambulâncias de SIV há pelo menos seis meses e que realizassem transportes inter- hospitalares. Os participantes foram escolhidos de forma intencional. Este tipo de amostragem é mais eficaz em relação ao custo e ao tempo. Sendo muito útil emprega-se frequentemente nos estudos qualitativos (Vilela, 2016). Contudo, a escolha dos participantes deverá assegurar uma relação próxima com a experiência que se pretende descrever e analisar. À medida que foram colhidos os dados, considerou-se atingida a saturação por repetição de informação e confirmação dos mesmos dados ao longo de um total de oito entrevistas (Streubert & Carpenter, 2011). Deste modo, os participantes resumiram-se a oito enfermeiros que, após a apresentação do projeto, se disponibilizaram a participar no estudo. Assim, após obtenção por escrito do consentimento informado, livre e esclarecido dos participantes, cada entrevista foi gravada em registo áudio e transcrita, na íntegra, pelo investigador.
2.3 Instrumento de recolha de dados
Cada vez mais existe uma grande variedade de técnicas metodológicas que abrange distintos objetivos: a observação, a entrevista não estruturada, semiestruturada e o questionário estruturado (Fortin et al., 2009). A entrevista é a técnica mais utilizada por se tratar de um processo de interação social entre o investigador e o participante, com a finalidade de obter informações adequadas ao tema. No presente estudo, optou-se pela entrevista semiestruturada, realizada por um investigador principal, uma vez que se pretende “compreender a significação de um acontecimento ou fenómeno vivido pelos participantes” (Fortin et al., 2009, p.377) e permite ao entrevistado a possibilidade de exprimir os seus sentimentos e opiniões sobre o tema em estudo (Fortin et al., 2009). Esta opção oferece ao investigador a liberdade de introduzir mais questões para esclarecer ideias ou obter informação mais concisa. A organização da entrevista é uma das etapas importantes da pesquisa que exige alguns cuidados (Fortin et al., 2009). Neste sentido, procedeu-se à construção do guião da entrevista que foi estruturado em duas partes. A primeira reporta à caracterização socioprofissional dos participantes e a segunda a questões abertas consideradas como linhas orientadoras, para que os participantes se pudessem exprimir livremente, manifestando a sua perspetiva, experiências e vivências em relação ao fenómeno em estudo. As questões foram desenvolvidas sob a forma de grandes temas definidos, a priori, após uma revisão da literatura da problemática em estudo (Guerra, 2006) e tendo em conta os objetivos definidos. O pré-teste tem como finalidade aferir e validar o instrumento de recolha de dados (Fortin et al., 2009). Neste caso específico, este foi aplicado a um enfermeiro com dez anos de experiência profissional em ambulâncias de SIV, que realiza transporte inter-hospitalar e que não integrou o conjunto final de participantes. No final da entrevista, questionou-se o entrevistado com o objetivo de avaliar se as questões eram compreensíveis. Foi possível verificar que algumas suscitaram dúvidas, havendo necessidade de proceder à sua reformulação. Após uma primeira reformulação, foi novamente aplicado o pré-teste a um enfermeiro especialista, constatando-se que o mesmo era compreensível, pelo que se validou o guião definitivo da entrevista. Foram realizadas no total oito entrevistas entre janeiro e fevereiro de 2018, com a duração média de 20 minutos. O registo fidedigno e, se possível, ipsis litteris, é crucial para uma adequada compreensão do grupo e do fenómeno estudado, sendo, por isso, uma atividade que não deve ser negligenciada. As estratégias utilizadas para conferir credibilidade aos dados foram a revisão por pares, onde um pesquisador externo qualificado examinou o processo de pesquisa e a interpretação dos mesmos.
2.4 Tratamento e análise de dados
De acordo com Bardin (2016), a análise de conteúdo é “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais subtis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes) extremamente diversificados” (p.11). Trata-se de uma técnica que permite explorar e confrontar a informação empírica obtida, permitindo ao investigador descrever o que lhe foi narrado e efetuar interrogações face ao objeto de estudo, interpretando-as com recurso ao quadro de referência (Guerra, 2006). Bardin (2016) salienta a importância do rigor na utilização da análise de conteúdo, na medida em que o rigor da objetividade e a riqueza da subjetividade são sólidos alicerces na interpretação. A análise de conteúdo permite evidenciar a presença ou a ausência de determinado fenómeno a partir da mensagem comunicada pelos participantes. Na perspetiva desta autora, a organização da análise de conteúdo apresenta três fases: i) a pré-análise; ii) a exploração do material; e iii) o tratamento dos resultados por inferência e interpretação dos dados colhidos. A fase de pré-análise consiste na organização dos dados que pretende sistematizar as ideias iniciais colocadas pelo referencial teórico e estabelecer indicadores para a interpretação das informações obtidas. Procedeu-se a uma leitura exaustiva das entrevistas, procurando incluir todo os elementos do corpus da análise. As primeiras impressões evidenciaram-se e as informações iniciais gerais foram consolidadas ao longo do processo de análise, de forma a reduzir os dados e a identificar o corpus central da análise. À medida que se analisava o conteúdo das entrevistas foram criadas sinopses, sintetizando o respetivo conteúdo. Desta forma, o investigador conseguiu com maior facilidade identificar a saturação dos dados através da leitura das entrevistas já obtidas (Guerra, 2006; Taquette, 2015). Na segunda fase procedeu-se à exploração do material, que consistiu na aplicação de uma das técnicas mais utilizadas na análise de conteúdo que é a análise categorial. Previamente, foi necessário proceder- se à codificação, onde se transformou todo o material em bruto em dados agregados. Estabeleceram-se regras precisas, com o objetivo de se obter uma correta representação do conteúdo. Esta etapa, “longa e fastidiosa”, envolveu a escolha das unidades de registo e a respetiva classificação em categorias. A unidade de registo é o segmento do conteúdo da mensagem a codificar, sendo que para melhor contextualizar e aumentar a sua significação poder-se-á recorrer ao uso da unidade de contexto, esta com dimensões superiores à unidade de registo. O mais relevante da mensagem converte-se em algo suscetível de descrever e analisar, definindo-se, assim, o universo (Bardin, 2016). Com o objetivo de apresentar de forma simplificada os dados em bruto, procedeu-se à categorização de acordo com Bardin (2016). A mesma compreendeu a operacionalização e desmembramento do corpus de análise em unidades, dando origem à definição de categorias e subcategorias, sendo as primeiras definidas como rubricas ou classes que reúnem um conjunto de elementos em função de características comuns. Neste sentido, para classificar os elementos em categorias, optou-se pelo critério semântico, isto é, os elementos foram agrupados pelo mesmo sentido, dando origem a categorias temáticas. A categorização resultou da classificação analógica e progressiva dos elementos, sendo intituladas no final das operações (Bardin, 2016). Durante o processo de categorização procurou-se ter em consideração as seguintes qualidades das categorias: i) exclusão mútua - princípio que pressupõe que cada elemento é classificado numa única categoria; ii) homogeneidade - diretamente relacionado com o princípio anterior, o recurso ao mesmo critério e nível de análise foi salvaguardado; iii) pertinência - as características dos elementos refletem, por si só, o tema da categoria, considerando-se o conteúdo adequado para posterior interpretação; iv) objetividade e fidelidade - todo o material da análise foi codificado e agregado através do mesmo critério, ou seja, através do sentido que representa; e v) produtividade - categorias produtivas permitem uma investigação rica em dados favoráveis à análise e interpretação de novos dados com contributos significativos à investigação. Na última fase da análise de conteúdo teve lugar uma “interpretação controlada” dos dados obtidos - a inferência. Foram consolidados e validados os dados significativos que resultaram do processo de tratamento, colocando-os em evidência. De acordo com Taquette (2015), esta interpretação controlada corresponde a uma síntese entre a dimensão teórica e os dados empíricos: faz‐se um diálogo entre a fundamentação teórica adotada, outras investigações e os discursos dos participantes, visando um sentido mais abrangente. Procedeu-se, assim, a uma abordagem indutiva e análise crítico-reflexiva, relacionando os dados obtidos com a fundamentação teórica desenvolvida na fase conceptual, decorrente da revisão da literatura (Bardin, 2016; Guerra, 2006). Por fim, privilegiou-se o enriquecimento do estudo através da análise e interpretação das diferentes fontes do quadro conceptual. No que diz respeito à efetivação das entrevistas, foi solicitada autorização formal, por escrito, aos respetivos conselhos diretivos e de administração das instituições envolvidas. Cumprindo integralmente todos os princípios éticos, os participantes foram devidamente informados sobre o tema, os objetivos e a finalidade do estudo. A sua participação foi precedida da respetiva autorização escrita, formal e individual, tendo sido para tal elaborado um termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Declaração de Helsínquia e a Convenção de Oviedo. Para manter a confidencialidade das informações prestadas e o anonimato dos participantes, optou-se por codificar cada entrevista com a letra E, associando os números de 1 a 8 para identificar o entrevistado correspondente.
3.Resultados e Discussão
3.1 Caracterização socioprofissional dos participantes
Neste estudo participaram 8 enfermeiros, sendo a maioria do sexo feminino (n=5). A idade dos participantes varia entre os 31 e os 43 anos, sendo a média de aproximadamente 35 anos. Todos os participantes do estudo são licenciados em enfermagem. A experiência profissional como enfermeiro varia entre cinco a treze anos, pelo que se considera um grupo relativamente experiente. Porém, a experiência profissional em ambulância de SIV é variável. O menor tempo de exercício profissional corresponde a um ano e o maior a dez anos, perfazendo uma média superior a quatro anos. Relativamente à formação específica, sete dos oito enfermeiros realizaram formação complementar à formação adquirida na licenciatura e à ministrada pelo INEM para tripular as ambulâncias de SIV. Destes sete enfermeiros, cinco são especialistas em enfermagem médico-cirúrgica, na vertente do doente crítico, e um especialista em saúde comunitária. Contudo, não obstante a especialização, quatro dos oito enfermeiros realizaram, adicionalmente, uma pós-graduação na área da emergência e da traumatologia.
3.2 Dificuldades com a efetivação do transporte inter-hospitalar na perspetiva dos enfermeiros entrevistados
Relativamente às dificuldades relacionadas com a efetivação do transporte destacam-se seis aspetos: i) decréscimo do nível de cuidados; ii) conhecimentos e competências médicas insuficientes; iii) preocupação relacionada com agravamento da condição clínica do doente; iv) responsabilidade acrescida; v) carga da ambulância de SIV insuficiente; e vi) ocorrência de acidentes. Quase todos os enfermeiros entrevistados (n=7) manifestam preocupação com o “decréscimo do nível de cuidados na efetivação”. Salienta-se o esforço de todos os envolvidos para que a qualidade dos cuidados seja mantida e não negligenciada. A seguinte afirmação é um exemplo desta apreensão dos participantes “… quando é um doente crítico … tenta-se que a norma seja cumprida e que os cuidados não sejam diminuídos de forma alguma, mas nem sempre é possível…” (E1). Os motivos apontados centram-se na falta de recursos humanos, nomeadamente de médicos especialistas, uma vez que “… quem faz emergência são os médicos de medicina interna e quem transfere os doentes de uma forma geral, maioritariamente em cerca de 80% dos casos, são os clínicos gerais…” (E7). Assim, “… às vezes, nem todas as medidas são tomadas …, mas o nível de cuidados nunca deveria baixar…” (E5). Os entrevistados têm a noção de que “…o nível de cuidados baixa drasticamente desde que o doente sai da sala de emergência…” (E8). Neste sentido, é consensual que a qualidade de cuidados diminui durante o transporte na ambulância de SIV, contrariando as recomendações emanadas pela SPCI (2008). De igual modo, Graça et al. (2017) verificaram, no estudo sobre acompanhamento no transporte inter-hospitalar, que os doentes transferidos com score de risco maior ou igual a sete, critério que exige o acompanhamento por um médico e um enfermeiro, foram em 42,3% dos casos transferidos apenas sob cuidados do enfermeiro. Para sete dos oito participantes, os “conhecimentos e competências médicas insuficientes” é uma das dificuldades evidenciadas na efetivação, e relaciona-se com a subcategoria anterior. Segundo a SPCI (2008), o médico que acompanha o doente é o responsável pelas decisões efetuadas e cuidados prestados. Por conseguinte, são necessários conhecimentos e competências médicas avançadas que, na opinião dos enfermeiros participantes, são na maioria das situações insuficientes. Como anteriormente relatado, frequentemente, são os médicos de clínica geral que efetuam o transporte. Várias lacunas são enumeradas, nomeadamente a falta de formação em suporte avançado de vida ou a ausência de atualização “… nem o SAV têm atualizado…” (E2), ou, ainda, a inexperiência em desempenhar funções nestes cenários “… não têm experiência de SAV…” (E5). Estas lacunas dificultam a intervenção em contexto de emergência/urgência, como é destacado na seguinte frase “… tenho a nítida sensação de que não estão preparados para uma situação de emergência…” (E4). A falta de preparação e de conhecimentos dos médicos traduzem insegurança para os enfermeiros. “… a maior parte das vezes sentimos que [os médicos] não têm capacidade de resposta, não nos sentimos seguros com o seu acompanhamento…” (E7), o que se traduz numa certa vulnerabilidade e fragilidade perante as situações porque os “… profissionais nem sempre estão preparados para irem connosco e transmite-nos alguma insegurança…” (E8). Pelas declarações, constata-se que a falta de formação e de preparação médica constituem manifestamente dificuldades percecionadas pelos enfermeiros na fase de efetivação do transporte. Estas circunstâncias contrariam o emanado nas recomendações da SPCI (2008), em que refere que o médico e o enfermeiro que tripulam ambulâncias do tipo C, na indisponibilidade da ambulância de SIV, devem ter experiência em manuseamento de equipamentos e reanimação. “No mínimo, a preparação da equipa deve incluir o suporte avançado de vida e, desejavelmente, o suporte avançado de trauma” (SPCI, 2008, p.11). Esta realidade foi identificada em 2008, pela SPCI, ao expor que “a prática corrente é o acompanhamento dos doentes pelos profissionais menos diferenciados, sem experiência no transporte, sem conhecimento do equipamento e não treinados para funcionarem em equipa” (p.25). Porém, passado dez anos após a publicação destas recomendações, verifica-se que, ainda, subsistem entraves na sua adequação em todos os contextos. A existência de uma equipa institucional para o transporte do doente crítico, com formação e treino específico e regular, é novamente destacada. Noutros estudos tais como os de Romanzini e Bock (2010), os enfermeiros, nos seus depoimentos, também manifestaram dificuldades e inquietações face à preparação insuficiente do médico. A condição clínica do doente, relacionada diretamente com a instabilidade hemodinâmica, é uma preocupação constante durante o transporte, como refere este entrevistado “Transportamos muitas vezes doentes instáveis, com risco de vida…” (E2). Na verdade, “… a descompensação hemodinâmica do doente…” (E7) pode surgir de forma inesperada. Daí que o medo de “… não conseguir fazer face às exigências do doente…” (E4) é uma inquietação continua. Verifica-se que esta preocupação ocorre em dois momentos distintos do transporte. Numa primeira fase, a instabilidade configura-se como dificuldade na fase do planeamento, quando os enfermeiros percebem que o doente, ainda, não está estabilizado. Neste contexto, a estabilização não foi, até aquele momento iniciada pela equipa médica da unidade de origem. Numa segunda fase, durante a efetivação, configura-se preocupante para o enfermeiro acompanhar um doente que, por si só, não é possível estabilizar por causa da sua patologia e/ou por se prever o seu agravamento durante o transporte. Destaca-se, uma vez mais, que estes receios revelam o conhecimento da baixa reserva fisiológica do doente crítico que pode culminar numa rápida deterioração clínica, bem como o conhecimento do risco associado ao transporte, verificando-se assim, a capacidade de antecipação e prevenção de potenciais problemas, característica do enfermeiro perito (Benner et al., 2011). Almeida et al. (2012) salientam que existem alterações fisiológicas do doente crítico transportado que podem ter consequências a médio e longo prazo. Neste sentido, um planeamento adequado, uma equipa treinada e a utilização de equipamentos adequados garantem o sucesso de todo o processo, assim como permitirá evitar as complicações durante o transporte intra-hospitalar. Acresce a estas configurações, a subcategoria da “responsabilidade acrescida” (n=6). Das declarações dos enfermeiros surge a ideia de que: “…nos é incutida uma responsabilidade profissional muito grande” (E2). Embora a SPCI (2008) descreva que o médico que acompanha o transporte é o responsável, os enfermeiros automaticamente assumem que são igualmente responsáveis pelo transporte a partir do momento em que abandonam a unidade hospitalar de origem. “… aquilo que nós estamos a fazer é assumir um doente cuja responsabilidade é de um hospital…” (E3). Tal como o descrito nas recomendações para o transporte do doente crítico da SPCI (2008), a equipa de transporte que acompanha o doente assume todas as responsabilidades técnicas e legais que só terminam após a passagem do doente no hospital de destino. O entrevistado E6 aborda uma questão importante que se relaciona com a dificuldade de assumir a responsabilidade pela equipa durante a efetivação do transporte “…muitas vezes vamos assumir responsabilidade durante uma hora … pede-se a ambulância medicalizada para passar a ‘batata quente’…” (E6). Neste contexto, parece estar também subjacente o princípio do respeito ao cuidado na saúde ou na doença. Citando o artigo 83º do código deontológico do enfermeiro: “o Enfermeiro assume o dever de corresponsabilizar-se pelo atendimento do indivíduo em tempo útil, de forma a não haver atrasos no diagnóstico da doença e respetivo tratamento (Lei n.º 111/2009, de 16 de setembro, p.6548). A OE (2009) emanou um parecer, realçando que é da responsabilidade do enfermeiro assumir todo ato que pratica, assim como a decisão de proceder ao acompanhamento da pessoa no transporte inter- hospitalar, salvaguardando os eventuais riscos e a segurança da pessoa no decurso do mesmo. A responsabilidade é evidenciada como principal fator de stresse nos enfermeiros que exercem cuidados ao doente crítico porque a pessoa alvo de cuidados está sob a dependência do profissional de saúde (Ferreira, 2014; Rodrigues & Martins, 2012). De igual modo, a “carga da ambulância de SIV insuficiente” foi considerada por cinco entrevistados como uma das dificuldades durante o transporte. Na sua opinião, a carga da ambulância não está preparada para o transporte inter-hospitalar, embora e, tal como indicam as recomendações, antes de efetivar o transporte, os enfermeiros verificam se possuem todo o material e equipamento necessário. “Temos que obrigatoriamente levar material do hospital para nos precavermos” (E8). Assim, importa averiguar “… se a carga da ambulância irá adequar-se a tudo o que o doente possa precisar …porque muitas das vezes não está adequadamente preparada e completa…” (E1). Neste estudo, os participantes afirmam a não existência de “… equipamentos (…), nomeadamente fármacos e mesmo material…” (E8), o que constitui um entrave no transporte. O facto da ambulância de SIV não possuir os fármacos necessários à estabilização hemodinâmica do doente crítico “… fármacos que são utilizados no doente crítico e não faz parte da nossa carga…” (E4) é outra das preocupações referidas. Do mesmo modo, o recurso a material desconhecido que não faz parte da ambulância, tais como “… maquinaria, nomeadamente bombas perfusoras do SU … ventiladores, equipamentos que não fazem parte da SIV … materiais novos com os quais não lidamos todos os dias…” (E2) são considerados obstáculos para um transporte eficaz. O participante (E8) destaca, ainda, que “nós só temos uma seringa perfusora o que se torna insuficiente. Não temos uma bomba perfusora…”, o que condiciona o acompanhamento de qualidade do doente crítico. O estudo realizado por H. Lopes e Frias (2014) demonstra, de igual modo, estas perceções. Importa sublinhar que o participante (E3) alude que “… a disposição do médico na célula sanitária é uma posição em que é impossível manter a vigilância sobre o doente”. De facto, a disposição da equipa nos bancos não beneficia a avaliação e a vigilância do doente de forma contínua. A este propósito, Slattery e Silver (2009) destacam que as características das ambulâncias, a sua configuração e respetivos equipamentos não favorecem a prática de cuidados prestados ao doente crítico no que concerne ao espaço físico, bem como a garantia da segurança da equipa que acompanha o doente. Configuram-se, ainda, como dificuldades vivenciadas nas transferências, a possibilidade de avarias ou falha dos equipamentos, bem como ambulâncias desadequadas aos cuidados prestados (H. Lopes & Frias, 2014; Martins & Martins, 2010). No presente estudo, os enfermeiros revelam a necessidade de saber manusear equipamentos e gerir protocolos terapêuticos complexos. Esta preocupação vai ao encontro de uma das unidades de competências específicas do enfermeiro especialista em enfermagem em pessoa em situação crítica, designadamente na gestão e administração desses protocolos (Regulamento nº 429/2018, de 18 de Julho). Logo, verifica-se que os enfermeiros das ambulâncias de SIV, sendo ou não detentores do título de especialista em enfermagem em pessoa em situação crítica, mobilizam atitudes e procedimentos considerados de competência clínica especializada neste contexto dos cuidados. Apenas dois enfermeiros abordam a preocupação com a “ocorrência de acidentes” durante o transporte, associada à segurança do doente e da equipa. “Há sempre riscos inerentes … uma preocupação quer para nós quer para o doente … há sempre aquele medo de ter um acidente…” (E2). Assim, constata-se que os enfermeiros estão conscientes dos riscos que correm. Estes acidentes carecem de serem equacionados antes de se efetivar o transporte, tal como é recomendado pela SPCI (2008). Martins e Martins (2010) também apresentam os mesmos resultados.
4.Considerações Finais
Os relatos dos participantes revelam inúmeras dificuldades percecionadas durante o transporte do doente crítico. Embora, estas se verifiquem em todas as fases do transporte, as mais relatadas são as relacionadas com a efetivação, por ser um momento mais crítico. A melhoria contínua da qualidade de cuidados só poderá ser possível através de um processo eficiente e minucioso de identificação dos fatores determinantes no transporte. Aprimorar a comunicação, adequar os equipamentos utilizados, identificar e solucionar as intercorrências, minimizando os erros e aumentando a segurança, são formas de melhorar a qualidade do transporte. Cuidar, neste contexto, implica uma vigilância contínua prevenindo problemas potenciais, mas, essencialmente, com responsabilidade profissional e compromisso ético e deontológico. As preocupações e dificuldades expostas pelos entrevistados revelam, ainda, a necessidade de cada profissional atuar, de forma autónoma e em equipa, com segurança tendo por base as evidências científicas. Ao estudar a perspetiva individual de cada participante, considera-se assim que, pelo recurso à metodologia qualitativa foi possível uma compreensão mais profunda do fenómeno em estudo contribuindo para a produção científica relacionada com as perceções do trabalho em enfermagem. Constatam-se, ainda, resultados semelhantes de investigadores nacionais e internacionais o que permitirá validar o presente estudo junto da comunidade científica. Um dos propósitos deste estudo passa por aumentar a visibilidade dos cuidados de enfermagem prestados nesta área, bem como amplificar o reconhecimento da enfermagem como elemento indispensável no processo de tomada de decisão multiprofissional. Acredita-se que, através deste, obter- se-ão ganhos para o sistema de saúde e para a pessoa em situação crítica. Pelo exposto, este trabalho poderá contribuir para uma melhor organização e sistematização da prática baseada na evidência, com vista à excelência do exercício profissional no cuidar da pessoa em situação crítica. Possíveis implicações práticas com os resultados deste estudo passariam pela promoção e atualização de protocolos e recomendações para o transporte inter-hospitalar contribuindo para a criação de equipas e ambulâncias específicas para este tipo de transportes.