1.Introdução
A enfermagem foca-se no cuidado à pessoa, família e comunidade sendo necessário competências do estudante de enfermagem para intervir de forma individualizada. O ensino clínico (EC) é um espaço privilegiado para o desenvolvimento das competências necessárias para a prática clínica (Brown, 2011; Lam et al.,2020; Marques et al, 2021; Ulenaers, 2021). Deparar-se com situações de cuidados reais permite aos estudantes continuarem a desenvolver competências, habilidades e o autoconhecimento, sendo fundamental para a prática de enfermagem, e subsidiando a aprendizagem do julgamento clínico (JC) (Baxter & Boblin, 2008; Marques, 2019). Assim, é importante promover o desenvolvimento nos estudantes à medida que fazem a transição para o papel de enfermeiro de cuidados gerais (Sherrill, 2020). Huber et al. (2021) referem que é essencial o desenvolvimento do JC pelos estudantes. A complexidade dos cuidados leva os enfermeiros continuamente a analisar, a priorizar, ou seja, a realizar JC e a tomar decisões para providenciar cuidados de qualidade (Huber et al., 2021). A aprendizagem experiencial de casos particulares em EC é essencial para a evolução do JC e para o conhecimento clínico (Benner, 2019; Tanner, 2006). Na literatura surgem frequentemente como sinónimos os termos 'raciocínio clínico’, ‘julgamento clínico’, ‘raciocínio diagnóstico’, ‘pensamento crítico’ e ‘tomada de decisão’ (Gladstone, 2012; Nunes et al., 2020; Standing, 2020), sendo que todos designam processos de pensamento (Nunes, et al., 2020). Contudo, Jessee (2021) refere que a compreensão entre as relações dos conceitos ‘pensamento crítico’, ‘raciocínio clínico’ e ‘julgamento clínico’ estão bem estabelecidas. Neste estudo assumimos o conceito de ‘julgamento clínico’ como a aplicação do pensamento crítico na prática clínica baseado na evidência (Alfaro-Lefevre, 2019). O JC é um processo complexo, integrativo do conhecimento específico da disciplina, através do processo cognitivo e metacognitivo de raciocínio clínico, em oposição a uma tomada de decisão única efetuada no fim do processo de raciocínio (Dickinson et al, 2019; Manetti, 2019; Tanner, 2006). O JC tem sido alvo de enfoque nas duas últimas décadas na literatura e investigação do ensino de enfermagem. Foram emergindo modelos de julgamento clínico que guiam os estudantes na utilização do conhecimento e da experiência, para estruturar o seu pensamento e tomar decisões necessárias para os cuidados de enfermagem adequados e seguros (Jessee, 2021). Um dos mais conhecidos modelos de julgamento clínico em enfermagem é o de Christine Tanner (2006) que preconiza quatro etapas: Noticing, Interpreting, Responding, Reflecting. As conclusões que conduziram ao modelo referido aumentaram o interesse pelo desenvolvimento do raciocínio clínico e do julgamento clínico no âmbito da educação em enfermagem (Jessee, 2021), tendo dado origem a múltiplos modelos neste âmbito (Kuiper et al, 2009; Levett-Jones et al, 2010; Tesoro, 2012). O EC permite a consolidação da aprendizagem teórica e o desenvolvimento de competências do estudante, sendo que este necessita de desenvolver não só as competências técnico-científicas e relacionais, mas também a capacidade de JC para tomar decisões, de forma a responder às necessidades da pessoa (Araújo et al., 2021). É necessário existir nos contextos de EC uma cultura favorecedora de uma distribuição de pessoas alvo de cuidados pelos estudantes, que lhes permitam o desenvolvimento do JC e que enfatize a priorização de competências (Monagle et al., 2018). É também importante que os docentes/orientadores facilitem a aprendizagem dos estudantes e os envolvam na equipa de saúde como membros valorosos (Lasater et al., 2019). A aprendizagem baseada em casos que ocorrem em EC, a sua discussão entre os estudantes e orientadores1 e a tutoria individual são estratégias que promovem o desenvolvimento do JC (Lasater et al., 2019). Nos EC do Curso de Licenciatura em Enfermagem (CLE) da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa (ESEL)2 ocorrem momentos planeados entre grupos de estudantes e o seu docente orientador para discussão e reflexão sobre as situações de cuidados em EC, que designamos de orientações tutoriais em grupo. Não obstante, são também realizadas orientações individuais para discussão das situações de cuidados em EC, no sentido da envolvência do estudante no seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicomotor. Neste âmbito, são utilizados o questionamento, a reflexão e o feedback, como aspetos importantes na construção do JC do estudante (Billings, 2019; Lasater, 2015). O questionamento deverá ser orientado em processos individuais recorrendo a perguntas promotoras de análise e síntese, complementadas por feedback específico e imediato sobre o pensamento do estudante. Para promover o desenvolvimento do JC, o docente tem de manter a discussão das situações a um nível de higher order thinking skills necessários aos enfermeiros da atualidade (Phillips et al., 2017), o que inclui a análise, a avaliação e a criatividade (Harris & Bacon, 2019). Esta reflexão, consciencialização e controle dos seus processos mentais e também da sua aprendizagem denomina-se de metacognição (Almeida, 2002; Flavell, 1979; Grillo, 2000), sendo o 'pensar sobre o pensar' (Flavell, 1979). A metacognição é um guia para a resolução de problemas, permitindo reconhecer a existência de um problema, delimitá-lo e equacionar soluções (Almeida, 2002). O orientador tem um papel crucial no desenvolvimento da metacognição dos estudantes, já que o ensino é uma forma importante de a desenvolver (Almeida, 2002; Medina, 2017). Também a elaboração dos jornais de aprendizagem é também considerada por Smith (2021) uma estratégia para desenvolver o julgamento clínico dos estudantes, o que é solicitado nos ensinos clínicos do CLE da ESEL. Em 2020, a COVID-19 foi reconhecida como pandemia pela OMS (WHO, 2022) e alterou a vida de todos nós e a organização de várias áreas da sociedade, nomeadamente a educação e a saúde (Kalanlar, 2022). Estas são duas áreas que se cruzam quando pensamos no EC dos estudantes de enfermagem. A alteração do funcionamento dos contextos e a imprevisibilidade dos mesmos condicionaram os EC dos estudantes de enfermagem. Assim sendo, colocámos a questão: Qual a importância da aprendizagem do JC do estudante de enfermagem em EC durante a pandemia e os fatores que a influenciaram? Os objetivos deste estudo são: descrever a importância da aprendizagem do JC no EC dos estudantes de enfermagem e identificar os fatores que interferem nessa aprendizagem, durante o contexto de pandemia.
2.Metodologia
Estudo de abordagem qualitativa, descritiva e exploratória em que se consideraram as diferentes perspetivas dos participantes e do seu enquadramento social, tentando compreender as suas perceções individuais (Denzin & Lincoln, 2018). Adaptando a metodologia qualitativa ao nosso estudo, procurou-se considerar as diferentes perspetivas dos estudantes sobre a aprendizagem do JC durante o EC, em tempos de pandemia. A seleção da colheita de dados através de um FG recaiu na natureza de atividade coletiva que apresenta em que a interação dos participantes permite uma riqueza de informação, inacessível de outra forma (Cheon & You, 2022; Daniels et al., 2019). As interações que o FG proporciona podem aumentar a compreensão das perceções dos participantes sobre o tema, num ambiente mais natural do que a entrevista clássica (Barbour, 2018; Richard et al., 2021). A utilização de métodos virtuais para a recolha de dados de investigação qualitativa é um meio eficaz de incluir as populações-alvo cuja participação poderia de outra forma ser limitada pelo tempo, distância, e barreiras sociais (Tran et al., 2021). Razão pela qual, durante o contexto pandémico, optámos pela modalidade online para a concretização do FG, considerando a segurança de todos os intervenientes (Richard et al., 2021). Da variedade de métodos de condução de FG online3, optamos pela forma síncrona, através de uma videoconferência, por possibilitar a interação face-a-face dos participantes em tempo real. Esta interação a nível pessoal permite o diálogo e uma discussão mais livre proporcionando uma aproximação aos FG tradicionais realizados de forma presencial (Tran et al., 2021). Existem várias opções de software para conduzir FG, sendo importante que sejam avaliados de acordo com os requisitos práticos, metodológicos e éticos da investigação (Daniels et al., 2019). No presente estudo, pretendíamos um software que possibilitasse uma boa comunicação áudio e visual, bem como segura em tempo real, ou seja, facilidade em gravar as componentes áudio e visual, com baixas competências do utilizador e sem encargos financeiros na aquisição do software (Daniels et al., 2019), assim optámos pelo Microsoft Teams©. O FG decorreu em agosto de 2021, com uma amostra de conveniência constituída por 6 estudantes (Cheon & You, 2022; Tran et al., 2021) do CLE da ESEL. Atendeu-se à homogeneidade das experiências clínicas, perante a diversidade dos locais de EC, como fator facilitador da interação em grupo e da partilha de informação com os seus pares e explicação das suas experiências (Barbour, 2018; Cheon & You, 2022). Os docentes orientadores referenciaram potenciais participantes, estes foram contactados pelos investigadores, que informaram sobre o estudo e aferiram o interesse na sua participação. Ocorreram algumas recusas sendo a principal razão a indisponibilidade de tempo. Os critérios de seleção dos estudantes foram: (1) estarem a frequentar o último EC do CLE ou (2) terem terminado o EC há menos de um mês. Um estudante encontrava-se a frequentar o último EC e 5 tinham-no concluído no final de julho. O género predominante era o feminino com 66,7 %, e a idade variou entre 21 e 26 anos, sendo a média de 22,5 anos. Dois investigadores participaram na recolha de dados, um a moderar e o outro a coadjuvar, tendo ambos redigido notas de campo. As funções moderadoras primárias e secundárias ajudam a centrar a discussão no que está incluído no guião do FG, bem como possibilitam a avaliação constante do todo o processo de questionamento, de respostas e a resolução de problemas logísticos ou técnicos (Tran et al., 2021). Recomenda-se que a discussão online sobre um conjunto limitado de temas tenha uma duração entre 60 e 90 minutos (Daniels et al., 2019). A sessão teve a duração de 77 minutos e foi integralmente gravada em áudio e vídeo, através da plataforma Microsoft Teams©. Concomitantemente, utilizou-se uma gravação áudio como garantia da recolha de todas as interações que ocorressem (Barbour, 2018). As questões que suscitaram a discussão foram (1) Qual a importância da aprendizagem do JC do estudante em EC? e (2) Que fatores interferiram na aprendizagem do JC? Após a realização do FG houve a transcrição literal das gravações, de modo a traduzir o que aconteceu no grupo e permitir a análise dos dados. A audição e visualização pelos moderadores foi um processo sistemático certificando a qualidade das transcrições e a objetividade no tratamento dos dados, de modo a maximizar a utilidade das informações disponibilizadas pelos participantes (Barbour, 2018; Cheon & You, 2022). A análise de conteúdo foi a estratégia metodológica selecionada sendo frequente o seu uso como método de análise de dados em FG (Tran et al., 2021). Assim, recorremos à análise de conteúdo numa abordagem temática, que na perspetiva de Bardin (2016), constitui-se em três etapas: organização da análise, codificação e categorização. Na primeira, realizou-se a leitura flutuante, a escolha de documentos a analisar pela representatividade, exaustividade, homogeneidade, pertinência, bem como a sua interpretação. A codificação consistiu na separação em unidade temáticas, sem categorias prévias, do que foi dito pelos estudantes e que expressavam a ideia subjacente em cada uma. Realizou-se a codificação com base nas Unidades de Registos (UR). Na categorização, efetuou-se a contagem das frequências, incidindo no tipo de UR sendo operacionalizada através do software webQDA®. Atendendo ao seu carácter colaborativo, e embora seja uma ferramenta facilitadora, mas que não exclui a codificação humana, dois investigadores asseguraram a atribuição dos códigos aos discursos, sendo validada pelos outros três investigadores. Como objetivo de validar o processo investigativo, avaliamos a sua credibilidade (Corbin & Strauss, 2008; Morse et al., 2002). Para mantê-la, os dados foram recolhidos através de perguntas abertas com foco na livre expressão da experiência dos estudantes e a intervenção dos moderadores foi minimizada. A descrição dos participantes na investigação e os procedimentos de recolha de dados refletem as suas características. Os investigadores utilizaram transcrições e notas de campo de modo a tornar compreensíveis os aspetos menos claros da gravação audiovisual e complementá-los. Os procedimentos metodológicos foram monitorizados ao longo do mesmo e utilizadas estratégias de autocorreção, tais como a análise comparativa entre as inferências dos investigadores e os dados (Morse et al., 2002). Apesar dos dados apresentados permitirem compreender a aprendizagem do JC e os fatores que influenciaram os estudantes que participaram no FG, ocorrendo consonância e repetição dos dados fornecidos entre eles, consideramos ser necessário uma triangulação de fontes de dados para afirmarmos a saturação dos mesmos (Denzin & Lincoln, 2018). Este estudo faz parte de uma investigação sobre a aprendizagem da tomada de decisão no processo de cuidados, e está aprovada pela Comissão de Ética da ESEL (n.º 824/2016). Foi solicitado o consentimento informado aos estudantes sobre a participação no FG e na investigação. Considerou-se a privacidade, segurança, confidencialidade e riscos que acompanham a utilização de plataformas virtuais para recolha de dados (Tran et al., 2021), sendo assegurado o uso exclusivo da gravação para esta investigação. De forma a garantir a confidencialidade, foram codificados os nomes dos estudantes com E (estudante do quarto ano do CLE) e adicionado um número de ordem. Adicionou-se ainda a caracterização do género através das letras F (Feminino) e M (Masculino).
3.Resultados
Da análise de conteúdo efetuada (Bardin, 2016), e atendendo ao processo intrínseco dos estudos qualitativos, emergiram duas dimensões, cinco categorias e sete subcategorias (Tabela 1). O resultado da codificação do que foi dito pelos estudantes permitiu-nos verificar que, das 62 unidades de registo obtidas: 19 correspondem aos contributos da aprendizagem do JC para EC e 43 aos fatores que interferem na aprendizagem do JC (Tabela 1). A categoria ‘Essência para a Ação’, com 15 unidades de registo, foi a mais considerada na dimensão ‘Contributos da Aprendizagem do Julgamento Clínico no Ensino Clínico’ e a categoria ‘Ambiente de Aprendizagem’, com 23 unidades de registo, emergiu como a mais valorizada na dimensão ‘Fatores que Interferem na Aprendizagem do Julgamento Clínico’.
Como essência para a ação, emergiu a subcategoria ‘fundamento da intervenção’ em que as suas expressões foram: “penso que o julgamento clínico é o fundamento de toda a nossa intervenção” (E1M) e “sinto mesmo que o julgamento é o essencial para a enfermagem” (E4F). Pelo discurso dos estudantes sugere-se que o JC é fundamental para uma intervenção adequada de enfermagem. O ‘cuidado individualizado’ parece assentar no “construir um plano de cuidados daquela pessoa, mais personalizadas e individualizadas, através dessa recolha de dados e do julgamento clínico” (E6F). Este contributo da aprendizagem do JC, é reforçado por permitir: “fazer intervenções mais individualizadas” (E5F). Comparativamente à ‘interpretação de dados’, sobressai a articulação dos conhecimentos teóricos e a sua aplicação em situação de prática clínica, como elemento importante para a aprendizagem do JC: “é conseguir relacionar essa teoria com a prática e … transpor essa teoria para a prática é necessário ter esse julgamento para interpretar e fazer intervenções mais individualizadas” (E5F). Como ‘promoção da tomada de decisão’, a aprendizagem do JC parece permitir ao estudante selecionar qual a intervenção a realizar e “vai acabar por construir e ajudar-nos a tomar decisões” (E6F). A aprendizagem do JC no EC foi considerada como ‘Promotor da autonomia do estudante’, com a fundamentação de que “se nós não fizermos, se não tivermos este julgamento clínico, não conseguimos ser autónomos” (E4F). Foi ainda possível identificar a categoria ‘Promotor de resultados positivos para o cliente’, como “a promoção da autonomia e … possa ser alcançado através dessas pequenas peças que são todas conjugadas no nosso juízo” (E2M). Relativamente ao ‘Ambiente de aprendizagem’, a ‘conjetura pandémica’ foi uma subcategoria com impacto no discurso dos participantes. Nomeadamente, a duração dos períodos de EC, que obrigou a uma condensação do mesmo, como referido: “além das alterações que nós considerámos, que nós tivemos em relação aos estágios e o encurtamento no tempo, apesar da mesma carga horária” (E5F). Esta condensação do EC parece ter tido efeito na aprendizagem do JC, como referido por uma estudante: “mesmo compactar, aquilo que eu encontro nestes 2 contextos, se calhar necessito muito mais de trabalho autónomo … preciso de condensar tudo, condensar horas de estágio, condensar trabalho autónomo, condensar orientações tutoriais” (E3F). As constantes adequações de recursos, normas e protocolos dos contextos de cuidados, enquanto locais de EC, parecem ter interferido com a aprendizagem do JC do estudante, pois “os próprios recursos em cada instituição foram alterando e lembro-me de às vezes acontecerem situações em que … eu questionava os profissionais de saúde: ‘então o que nesta situação podemos fazer?’ ‘Que recursos é que existem?’ ‘Ah, existiam estes recursos, mas agora, em situação pandémica” (E5F). A ‘situação de cuidados’ foi outra subcategoria valorizada na análise efetuada. O JC parece ser influenciado pelo contexto onde decorrem os cuidados: “o contexto, sim também pode virar o nosso olhar para certas coisas” (E4F). Além da organização e da complexidade do contexto, também o nível de cuidados ao cliente sugere ser importante: “acho que tem muito a ver com os contextos em que estamos inseridos e o tipo de utente também que estamos a tratar” (E1M). No que diz respeito à ‘orientação clínica’, esta emerge como relevante para a aprendizagem do JC do estudante, através de vários tipos de estímulos, quer afetivo, psicomotor e cognitivo: “às vezes até os nossos enfermeiros … se começarem a falar e a puxar por nós, e pelo nosso desenvolvimento, pelo nosso raciocínio, acabamos por encontrar alguma situação que nos possa refletir e desenvolver” (E6F). Sobre a ’Experiência Clínica do estudante’, esta parece surgir como diminuta e como alguma dificuldade no JC: “eu tenho muito mais dificuldade, ainda tenho, sinto que ainda tenho alguma dificuldade e preciso de um pouco mais de experiência” (E4F). O tipo de raciocínio utilizado pelo estudante de enfermagem parece estar na causa dessa dificuldade, como explica um participante: “nós observamos e algo que é muito objetivo, enquanto por outro lado, pede-nos um pensamento mais abstrato e de maior previsão, e que eu acho que dado a nossa inexperiência, ainda não temos” (E2M). Experiência clínica essa que é construída de forma gradativa como “construir uma torre, pecinha a pecinha e subindo a exigência, subindo os degraus ... que as aprendizagens vão aparecendo à frente” (E3F).
4.Discussão
A aprendizagem do JC é fundamental para o EC já que permite promover a autonomia do estudante, a promoção de resultados positivos para o cliente é a essência para a ação. Del´Angelo et al. (2010) referem que o JC é essencial para a intervenção de enfermagem, pois norteia a tomada de decisão e promove o cuidado de enfermagem individualizado. Num processo de interpretação dos dados do cliente, o estudante articula com os conhecimentos científicos e a sua experiência clínica, maturando o seu processo de tomada de decisão o que lhe permite prestar cuidados de enfermagem individualizados (Tanner, 2006). É com base no saber ´ler o cliente’ (Tanner, 2006) que se selecionam as intervenções para concretizar os resultados esperados do cliente (Herdman, Kamitsuru & Lopes, 2021; Horowitz & McCulloch, 2019). Tal deve-se ao fato de que a partir da identificação das necessidades do cliente é possível elaborar um plano de cuidados, implementar de forma individualizada e avaliar os cuidados prestados, traduzindo-se em resultados positivos para o cliente. Constatamos que o EC permite desenvolver a aprendizagem do JC, sendo fatores que interferem nesse processo a experiência do estudante e o ambiente de aprendizagem. O que é corroborado por Costa et al. (2016) quando referem que o desenvolvimento de competências e de habilidades de JC se inicia na formação académica. No Ambiente de aprendizagem emerge como facilitador deste processo, a orientação clínica. As boas práticas para aprendizagem do JC sustentam que a orientação clínica é uma dimensão relevante, nomeadamente através do questionamento, que é considerado a estratégia chave para o desenvolvimento do JC (Jessee, 2021). Este questionamento deverá ser orientado em processos individuais recorrendo a perguntas promotoras de análise e síntese, complementadas por feedback específico e imediato sobre o pensamento do estudante no sentido de promover o aprofundamento do mesmo orientando a sua reflexão sobre o conhecimento e processo de raciocínio, com recurso de análise de situação da prática clínica (Tanner, 2006). Parece-nos que este questionamento subjacente no presente estudo, possa evidenciar a promoção da metacognição como um guia para a resolução de problemas, permitindo reconhecer a existência de um problema, delimitá-lo e equacionar soluções (Almeida, 2002). No entanto, existem fatores que dificultaram o processo de desenvolvimento do JC em EC, como a conjuntura pandémica, que potenciaram as dificuldades que os estudantes sentiram. A pandemia provocou restrições a nível das experiências que poderiam ter tido (diminuição das experiências clínicas por contingências dos serviços) e dos recursos, e as alterações nas políticas dos cuidados, o que está de acordo com a perspetiva de Michel et al (2021). Embora o EC tenha mantido o número de horas, houve necessidade de condensá-las num menor número de semanas, o que condiciona a evolução do raciocínio, nomeadamente do JC (Jessee, 2021). Esta dificuldade de raciocínio parece estar esta subjacente à dificuldade de utilização do pensamento abstrato, especialmente nesta geração4 que necessita de outro tipo estímulos para aprofundar o raciocino, para conseguirem atingir ao higher order thinking skills, já que estão mais despertos para o imediato (Chicca & Shellenbarger, 2018; Seibert, 2021). Não podemos, no entanto, descurar, o papel que os docentes podem ter no estímulo deste raciocínio, pois como mencionado Philips et al (2017), nem sempre os docentes fazem um questionamento promotor do desenvolvimento do JC. Os participantes do presente estudo referem ainda a imprevisibilidade do contexto e das situações de saúde como tendo dificultado o desenvolvimento do JC. Aspetos que vão ao encontro do que Michel et al. (2021) afirmam sobre os serviços de saúde não estarem preparados em como proceder em colaboração, durante uma emergência sanitária, e o próprio desconhecimento face a uma situação de saúde desconhecida. O impacto emocional da pandemia como o stress, a ansiedade e os medos (Brooks et al., 2020), e as mudanças dos contextos de saúde (Michel et al. (2021) podem também ter influenciaram o desenvolvimento do JC. Araújo et al. (2021) concluíram que a suspensão do estágio dos estudantes de enfermagem durante a pandemia teve um impacto negativo na saúde mental dos mesmos. Todos estes aspetos causaram incerteza com impacto no desenvolvimento do JC, constituindo- se como um desafio à formação dos estudantes de enfermagem. O contexto onde ocorrem estes cuidados, quer pela sua organização, quer pela complexidade dos cuidados de saúde, interfere na aprendizagem do JC, contudo não é possível apurar se foram um fator facilitado ou dificultador da sua aprendizagem. O que está em consonância com Jessee (2021), que alerta que os fatores podem assumir um papel promotor da aprendizagem do estudante em EC são as parcerias entre as instituições de ensino superior e o contexto da prática (Michael et al, 2021). Neste estudo, este aspeto ficou condicionado pela impossibilidade de orientação presencial com os atores envolvidos (estudante, orientador clínico e docente) devido à situação pandémica (Michael et al, 2021). Também na orientação clínica, considerada elemento promotor da aprendizagem (Jesse, 2021), houve necessidade de ajuste nas estratégias de orientação, entre o docente e o estudante, passando a realizar-se maioritariamente à distância, não se conseguindo apurar o seu impacto na aprendizagem do estudante. Este estudo apresenta várias limitações. Em primeiro lugar, os dados foram colhidos apenas de um FG a estudantes do CLE da ESEL que vivenciaram a aprendizagem do JC no EC em tempos de pandemia. A investigação poderia ser sustentada numa triangulação de técnicas de colheita de dados como entrevistas ou mais FG. Em segundo lugar, tratou-se de uma amostra de conveniência, que conjuntamente, com a metodologia utilizada não permite extrapolação dos resultados.
5.Considerações Finais
O JC é considerado, pelo estudante de enfermagem, como fundamental para a intervenção individualizada de enfermagem. Constata-se que o contexto onde decorreu a experiência clínica do estudante teve um grande impacto na aprendizagem do JC, sendo a pandemia considerada um fator desafiante do contexto da aprendizagem. Parece evidenciar-se uma retroalimentação positiva, num ciclo contínuo de mútuo subsídio entre o desenvolvimento do JC e o EC. A metodologia qualitativa pela interpretação, comparação e síntese do que foi referido pelos estudantes, forneceu dados sobre a importância da aprendizagem do JC em EC e os fatores que a condicionam, permitindo perspetivar estratégias pedagógicas para o seu desenvolvimento. Esta investigação fornece informação sobre a aprendizagem do JC em EC possibilitando à equipa docente refletir sobre a eficácia das estratégias pedagógicas utilizadas. Reflexão que se espera partilhar a nível institucional, de forma a promover mudanças na formação em enfermagem, o que constitui um desafio no âmbito do ensino e da aprendizagem do JC. Um dos desafios poderá ser a utilização de estratégias que estimulem o raciocínio crítico de ordem superior. Promovendo uma formação inicial de enfermagem adaptada aos tempos atuais e aos contextos clínicos, será possível capacitar o futuro enfermeiro para uma prática de enfermagem de qualidade. Pela escassez de investigação sobre o efeito da pandemia em estudantes de enfermagem que se mantiveram em EC nos contextos de prática de cuidados, em Portugal, este estudo poderá servir como a base para estudos futuros sobre o tema. Simultaneamente, os resultados e limitações desta investigação podem gerar novos estudos sobre a aprendizagem do JC dos estudantes de enfermagem em EC.