1.Introdução
No âmbito da saúde, no Brasil, a partir da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), o termo gestão tem sido utilizado para se referir as atividades de comando das macroesferas de decisão e ação no âmbito dos sistemas de saúde municipal, estadual e nacional (Chaves & Tanaka, 2012). A gestão pode ser compreendida como uma prática que associa ciência, arte e habilidade, desenvolvida no contexto, ou seja, no exercício cotidiano do trabalho, para o alcance dos objetivos nas organizações. Nesse sentido, a prática da gestão ocorre em três planos, do conceitual ao concreto: da informação, das pessoas e da ação, envolvendo uma mistura de controle, ação, negociação, pensamento, análise crítica, decisão e liderança para se obter resultados que respondam às necessidades e demandas dos sistemas organizacionais (Mintzberg, 2010). As funções clássicas de um gestor geralmente dão ênfase à visão de um gestor decisor racional e planejador sistemático. Entretanto, além da dimensão racional, na prática da gestão, é importante considerar também a dimensão subjetiva, representada pela imprevisibilidade, inclusive nas relações humanas (Motta, 2002; Mintzberg, 2010). Sob outra perspectiva, hipotetizamos que o termo gestão continua sendo utilizado para designar um conjunto diverso de atores do SUS, entre eles gerentes de serviços, de unidades e de setores de serviços de saúde. Para Teixeira & Molesini (2002), há especificidades das práticas político-gerenciais que se situam nos diferentes níveis do sistema de saúde. Para as autoras, a gestão pode ser considerada uma prática mais ampla, que toma como objeto o sistema de saúde em sua totalidade complexa, enquanto a gerência é uma prática mais restrita que toma como objeto as unidades de produção de serviços, sejam eles estabelecimentos de saúde, programas ou serviços específicos. Assim, a gestão e gerência em saúde se diferenciam em função dos propósitos e alcance das medidas tomadas, resultando no desenvolvimento de atividades distintas. Outra hipótese é a de que, apesar de muito se estudar sobre gerenciamento e gestão no âmbito do SUS, pouco se aborda sobre os atores que desempenham tais funções, especialmente secretários e ministros de saúde. Supõe-se que há poucas evidências e, portanto, importantes lacunas no conhecimento relacionadas ao perfil, atribuições, atributos, percepções e opiniões dos próprios gestores sobre a sua função e sua própria trajetória pessoal, profissional e acadêmica. Tais hipóteses motivaram a relização de um estudo de revisão, cujo objetivo foi mapear a produção científica e sintetizar as evidências sobre os gestores do SUS. Em função do advento da prática baseada em evidências enquanto instrumento para tomada de decisão, estudos de mapeamento e síntese de publicações têm sido cada vez mais frequentes. As variadas perguntas, objetos e objetivos de perguntas de pesquisa favoreceram o desenvolvimento de diferentes abordagens de sistematização da literatura de diversos tipos, entre elas as scoping reviews (Peters et al., 2020). Ao contrário de outras modalidades de revisão que tendem a abordar questões relativamente bem delimitadas e precisas, as scoping reviews podem e são frequentemente usadas para mapear conceitos e evidências, explorar a extensão da literatura, identificar e analisar lacunas de conhecimento e de métodos, e apoiar o desenvolvimento de futuras pesquisas (Arksey & O'Malley 2005; Tricco et al. 2016; Munn et al. 2018), justificando sua aplicação para o próposito deste estudo.
2.Metodologia
Trata-se de uma scoping review, compreendida como um método de síntese da literatura que utiliza uma abordagem sistemática para rastrear evidências produzidas sobre temas pouco explorados. Este tipo de revisão foi adotado, em detrimento de outros tipos de síntese do conhecimento, por esta ser considerada exploratória e apropriada para identificar lacunas na literatura existente (Tricco et al., 2018). A técnica de scoping review tem sido amplamente utilizada na área das Ciências da Saúde, com notável crescimento a partir de 2012. Difere da chamada revisão sistemática, ainda que se operacionalize sistematicamente, pois não visa precipuamente classificar a robustez das evidências científicas, mas mapeá-las, identificando potencialidades para futuras pesquisas (Arksey & O’Malley, 2005). Nesse sentido, scoping reviews dificilmente resultam em recomendações para a prática clínica. Outro ponto especialmente importante é que a scoping review pode se basear em dados de qualquer fonte de evidência e metodologia (Peters et al., 2020).
2.1 Protocolo de Pesquisa
Revisões bem conduzidas e transparentes devem ser guiadas por um protocolo desenvolvido a priori, que pré-defina objetivos, métodos, detalhe critérios e formas de apresentação da síntese do conhecimento. Trata-se de um instrumento que fornece o plano para a revisão e limita a ocorrência de vieses (Peters et al., 2020). Isto considerado, esta pesquisa foi orientada pelo Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR), diretriz que descreve um conjunto mínimo de itens a serem considerados no desenvolvimento de relatórios de revisão de escopo, garantindo a sua transparência metodológica. A lista de verificação contém 20 itens essenciais e 2 itens opcionais que guiam a escrita do relato do título à conclusão. Em se tratando do método, o PRISMA-ScR norteia a consecução das etapas da revisão, que inclui: o delineamento da questão norteadora; definição dos critérios de elegibilidade; seleção das fontes de informações; definição das estratégias de busca e do processo de seleção; análise; e síntese dos resultados (Tricco et al., 2018). A abordagem PCC (população, conceito, contexto) foi seguida para a formulação da questão de pesquisa (JBI, 2015), qual seja: Quais as características das publicações e as principais evidências científicas sobre os gestores do SUS? Compreendeu-se os gestores municipais, estaduais e federais de saúde como população, e o SUS como contexto. Em função do caráter exploratório desta revisão, definiu-se deliberadamente uma questão ampla (JBI, 2015), deixando o conceito em aberto, importando-nos diferentes aspectos relacionados ao gestor. Quanto aos critérios de inclusão, não foram adotadas delimitações metodológicas. O marco temporal estabelecido foi o ano de 1990, quando é publicada a Lei 8.080, que funda e operacionaliza o SUS. Sobre os tipos de publicações, foram considerados qualquer material escrito publicado em português, espanhol ou inglês, exclusive resumos, erratas, resenhas de livros, cartas, manuais, normativas e as publicações redundantes. Também foi considerada duplicidade a ocorrência simultânea de literatura cinzenta e artigos derivados delas, optando-se por incluir as primeiras em função de seu caráter mais abrangente e detalhado. Considerando a mnemônica PCC, foram incluídas as publicações escritas por gestores ou que tivessem por população os secretários municipais, secretários estaduais e/ou ministros da saúde, estando ou não no exercício do cargo, sendo desconsiderados, portanto, os trabalhos sobre gerentes departamentais, de setores e/ou de unidades de saúde. Adicionalmente, para inclusão, os estudos precisavam relatar, implícita ou explicitamente, algum detalhamento sobre a população de interesse, como o perfil, funções desempenhadas, e atributos requeridos para a função. Consideramos de caráter explícito os elementos notadamente descobertos pelo desenvolvimento da pesquisa e, logo, relatados como resultados do estudo. Os implícitos são aqueles que, independentemente do tipo de estudo, foram tratados pelos autores de forma genérica, cabendo-nos alcançar o que havia por trás dos enunciados. Este exercício nos exigiu analisar as evidências, especialmente os excertos de depoimentos de gestores, sob a perspectiva de nosso objetivo. Estudos de percepção só foram considerados quando os resultados indicassem qualquer aspecto relacionado ao gestor, sendo este o nosso foco. Estudos que mesclaram a população- alvo de nosso estudo com outros atores foram excluídos quando os resultados não foram apresentados separadamente. Para a definição das estratégias de busca, inicialmente foi realizado um mapeamento limitado de publicações na base Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), a partir da estratégia “(gestor OR secretário) AND saúde”. Esta pesquisa inicial foi seguida por uma análise das palavras do texto contidas no título, resumo e palavras-chave dos artigos recuperados e publicados a partir de 2018. Dessa etapa, identificou-se a inexistência de revisões ou trabalhos semelhantes aos propostos aqui, bem como foi possível selecionar um conjunto de descritores correspondentes aos tesauros adotados pela Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), assim como termos não indexados. Um total de 53 termos representativos da população (P), conceito (C1) e contexto (C2) foram combinados pelos operadores booleanos AND, OR e NOT (Quadro 1), constituindo-se três estratégias de busca: P+C1+C2; P+C1; P+C2.
As buscas sistematizadas foram realizadas em agosto de 2021, na BVS; no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Buscas adicionais foram realizadas por meio de consulta a referências cruzadas e ao Google Acadêmico. Após as buscas, foram aplicados filtros nas bases de dados para exclusão de estudos por tipo, ano e idioma. Em seguida, as referências foram exportadas para o programa de gerenciamento de referências EndNote, no qual foram descartadas as publicações repetidas. A próxima etapa correspondeu a leitura dos títulos, resumos e métodos, pré-selecionando-se estudos de interesse, os quais foram lidos integralmente. Por fim, deu-se a leitura analítica das publicações, seguida por buscas adicionais, aglutinando-se novas publicações à amostra. A leitura analítica foi orientada por um roteiro composto por um conjunto de variáveis de interesse relativas às indexação e ao conteúdo, buscando identificar os elementos capazes de responder à questão de pesquisa. Os dados foram compilados em planilhas de Excel e arquivos de texto, e submetidos a técnicas usuais de análise estatística descritiva e de análise de conteúdo, que nos permitiu produzir o panorama dos estudos e a síntese do conhecimento a partir de temas. A análise do conteúdo para o desenvolvimento das sínteses envolveu quatro fases de organização e análise dos dados: recortes de trechos, categorização por similaridade, comparação, e síntese dos achados.
3.Resultados
Foram encontradas 4.276 publicações nas bases de dados a partir das estratégias de busca utilizadas. Após refinamento da produção científica e identificação de registros adicionais, 51 publicações foram incluídas na amostra (Figura 1).
3.1 Mapeamento e Caracterização das Publicações
A distribuição das publicações por ano é bastante variável, sem indicação de uma tendência específica. Contudo, há maior concentração de estudos no período 2011-2020 (64%). Predominaram as publicações em português (96%) e sob o formato de artigo (63%). Os objetivos dos estudos são múltiplos, mas os que buscaram analisar a perspectiva/percepção do gestor municipal sobre algum tema em específico foram maioria. Quanto aos métodos, prevaleceram os estudos qualitativos (53%), exploratórios (45%), com amostras de abrangência nacional (22%) ou de âmbito estadual, regional ou municipal realizados nas regiões Sul (22%), Sudeste (22%) e Nordeste (20%). A maior proporção dos estudos trabalhou com amostras de gestores municipais (88%). Os estaduais e federais apareceram em duas e cinco publicações, respectivamente. Desconsiderando possíveis amostras iguais, o conjunto dos estudos incluiu um total de 12.506 gestores (Figura 2).
Foram várias as técnicas de coleta e análise de dados utilizadas, sendo o questionário autoaplicável com análise estatística descritiva o mais empregado pelos estudos quantitativos e mistos; e a entrevista com análise de conteúdo a mais utilizada pelos qualitativos.
3.2 Síntese do Conhecimento
A partir da leitura analítica dos estudos, as evidências científicas sobre os gestores do SUS foram agrupadas em quatro categorias (Quadro 2).
4.Discussão
A scoping review realizada, de caráter exploratório, mapeou as pesquisas publicadas sobre os gestores do SUS, mostrando-se potente para expor sistematicamente suas características metodológicas, evidências produzidas e, consequentemente, as lacunas do conhecimento, a partir da aplicação rigorosa e transparente das etapas metodológicas previstas por guidelines. Como suposto, o termo ‘gestor’ é utilizado para designar um conjunto diverso de atores do SUS, depreendendo-se que não há uma uniformidade conceitual (gestão/gestor versus gerência/gerente) teoricamente já esclarecida pela Norma Operacional Básica de 1996, o que explica o alto volume de publicações retornadas a partir das buscas nas bases de dados. Isto considerado, a fase de triagem tornou- se um desafio, haja vista que os títulos e resumos da maior parte das publicações não especificam o ator que os autores denominam gestor. Foi preciso, portanto, incluir a seção de métodos nesta etapa de leitura inicial. Esta constatação justifica o alto índice de exclusão por motivo de “população” na fase de triagem. Para os casos em que nenhuma dessas três partes - título, resumo e método - evidenciou o gestor referenciado, o estudo foi pré-selecionado para posterior leitura integral. Outro ponto a destacar é que o conjunto de publicações que incluiu mais de um tipo de gestor, ou outros atores, não forneceu os resultados desses grupos separadamente, impossibilitando a captação das ideias específicas do grupo de interesse desta revisão. Isto implicou na exclusão de um número significativo de publicações e de, potencialmente, limitação da síntese do conhecimento sobre o tema em perspectiva. Mais: durante a fase de leitura analítica, buscando-se identificar elementos conceituais e contextuais da população, muitos estudos de percepção de gestores foram descartados por se debruçarem exclusivamente sobre um determinado tema (a exemplo da violência contra a mulher), mas sem apresentar nenhuma evidência relacionada ao eu gestor, isto é, sobre si mesmo - quer seja uma verdade autorelata, quer seja uma construção imaginária de si - ou sobre o sentido/percepção que ele tem do seu trabalho (Moraes & Horta, 2018). Significa dizer que embora os gestores do SUS constituam a amostra de diversos estudos, eles não são frequentemente tomados como objeto de investigação. Quanto aos métodos adotados pelos estudiosos em suas publicações, predominam os de cunho qualitativo. Ainda que algumas pesquisa tenham mesclado técnicas de coleta e análise de dados quali e quantitativas (multimétodo), não se constatou uso de técnicas de triangulação de dados, tampouco o desenvolvimento de estudos de métodos mistos, compreendidos como aqueles que integram dois ou mais tipos de dados, combinando-os sequencialmente (Creswell & Plano Clark, 2007). Também verificou- se incipiência de estudos sobre/com gestores estaduais e federais. Ainda que os estudos com secretários municipais sejam consideravelmente mais comuns, estes acabam por se concentrar em atores que operam nas regiões Sul e Sudeste. Há, então, escassez de publicações e evidências científicas sobre os secretários de saúde nordestinos, e, sobretudo, nortistas e centro-oestinos. Em termos de evidências produzidas, importa esclarecer que as quatro categorias produzidas não refletem necessariamente o foco das publicações, uma vez que a maior parte das informações recolhidas foram obtidas a partir de uma análise que buscou o “escondido sob a aparente realidade, o que significa verdadeiramente o discurso enunciado, o que querem dizer, em profundidade, certas afirmações, aparentemente superficiais” (Câmara, 2013, p. 189). Dito isso, os estudos selecionados concentram-se notavelmente nas atribuições de dimensão técnica do gestor municipal. Dimensão esta que relaciona-se ao objetivo de conduzir o sistema de saúde de acordo com os preceitos técnicos da Saúde Pública e de forma coerente com os princípios do SUS e da gestão pública. Trata-se, portanto, da dimensão que confere especificidade à gestão da saúde (Souza, 2009). Contrariamente, do conjunto de publicações selecionadas, nenhuma objetivou descortinar a percepção do gestor do SUS sobre a sua própria função e as implicações desta para a sua vida. Contudo, foi possível identificar algumas pistas sobre como os gestores se percebem e se sentem durante o exercício da gestão. Depreendeu-se que a construção de uma imagem de si é sustentada pela dicotomia de viver a exploração do trabalho e perceber-se um missionário, com um compromisso a assumir. A scoping review mostrou-se um método eficaz para o mapeamento de publicações e evidências quantitativas e sobretudo qualitativas. Estas últimas traduzidas em termos, conceitos, hipóteses e informações interdisciplinares, que tornaram visível o estado da arte sobre o tema em análise (Denzin & Lincoln, 2000). Neste estudo, as evidências qualitativas compreenderam dados expressos em significados e experiências pouco explícitos, mas que deram lampejos sobre os problemas concretos que se apresentam aos gestores do SUS, suscitando o desenvolvimento de novos estudos que os contemplem. Como nos ensina Gamboa (2003, p. 404), “se a pesquisa toma como ponto de partida os problemas concretos, e consegue elaborar diagnósticos concretos, a sua eficácia está em fornecer critérios de ação e de intervenção”.
5.Considerações Finais
A scoping review é um tipo de método que atende às demandas de sintetizar evidências de questões de pesquisas amplas, de modo sistemático, com transparência e confiabilidade. Tem entre seus objetivos fornecer um panorama amplo de evidências científicas, sendo capaz de incorporar um grande volume de publicações disponíveis tanto na literatura branca como na cinzenta. Valendo-se dessas premissas, realizou-se uma scoping review que requereu um processo sistemático de coleta e de análise qualitativa e quantitativa de dados, que teve início na definição de um protocolo de pesquisa e envolveu a formulação de uma questão norteadora e de um instrumento de extração de dados. Esta revisão nos permitiu mapear e conhecer as publicações e evidências disponíveis na literatura, identificar os tipos de abordagens, as principais escolhas e estratégias metodológicas para a coleta e a análise de dados e o foco das pesquisas sobre o gestor da saúde, como também tornou possível identificar lacunas na base de evidências sobre a gestão/gestor estadual em saúde. Ainda que muito seja discutido sobre gestão no SUS, pouco se aborda sobre o gestor do SUS, suas características, funções, desejos e apreensões, trajetória de vida, aspirações e dificuldades. Considera-se que este estudo atingiu o seu objetivo; contudo, é preciso ponderar algumas limitações. A primeira delas refere-se ao fato de que a maior parte dos estudos analisados incluíram apenas gestores municipais, de modo que os resultados dizem mais respeito a estes atores. A despeito do atual volume de publicações com gestores do SUS, ressalta-se que eles focam especialmente na percepção do gestor sobre o SUS, e pouco se assume como objeto o gestor e as suas singularidades enquanto indivíduo e trabalhador da saúde. Há nesse sentido, uma lacuna expressiva na literatura científica sobre este ator, em especial sobre os gestores do SUS estadual e federal, o que impõe a necessidade de um maior aprofundamento e ampliação do escopo do estudo sobre o tema na ampliação de investigações.