1.Introdução
A Coronavirus disease 2019 (COVID-19) é causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 que é responsável por uma pandemia desde março de 2020 segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) (Cucinotta & Vanelli, 2020). Além disso, apresenta quadro clínico com múltiplas manifestações, desde acometimento pulmonar a lesões de órgãos-alvo, como sistema nervoso, gastrointestinal, cardiovascular, fígado e rins (Machhi et al., 2020). Fisiopatologicamente, a neuroinfecção por SARS-CoV-2 pode ocorrer via circulação sistêmica por infecção do endotélio vascular; via migração leucocitária ultrapassando a barreira hematoencefálica e/ou a barreira hematoliquórica e via transferência transsináptica entre neurônios infectados através da invasão de terminais nervosos periféricos. O neurotropismo do coronavírus é determinado pela presença de receptores de Angiotensina II. As complicações neurológicas e neuropsiquiátricas são explicadas pela neurovirulência, que se destaca pela hiperativação inflamatória, tempestades de citocinas, desencadeando a neuroinflamação. Além dessa resposta sistêmica desregulada, verifica-se hipóxia, danos endoteliais e hipercoagulabilidade (Bauer, 2022; Mishra & Banerjea, 2020; Ritschel et al., 2021). Nesse contexto, destacam-se os relatos de alterações cognitivas após infecção, como alteração na memória de trabalho (Ferrucci et al., 2021), déficits na atenção, linguagem e aprendizagem não verbal, memória de curto prazo e de trabalho, processamento visual e auditivo, resolução de problemas, velocidade de processamento e função motora (Lam et al., 2014). Assim, a fim de avaliar esse comprometimento, pode-se utilizar exames direcionados, como o Montreal Cognitive Assessment (MoCA), que analisa função cognitiva quanto a orientação, memória, capacidade de nomear, função visuoespacial, vigilância, linguagem, pensamento abstrato e capacidade de decisão (Ciesielska et al., 2016). Desse modo, tendo em vista a escassez e as lacunas literárias sobre o impacto da COVID-19, em especial sobre as manifestações cognitivas e de memória após a infecção (Bailey et al., 2021), esta compilação de estudos permitiu melhor compreensão e visão mais ampla a respeito dos impactos dessas alterações. Ademais, forneceu subsídios para atender às demandas dessa especificidade do cuidado em saúde e realizar novos estudos.
2.Objetivo
Analisar evidências literárias sobre as alterações cognitivas e de memória pós-infecção por COVID-19.
3.Método
A presente pesquisa é um estudo exploratório-descritivo de cunho qualitativo, em que houve inclusão de artigos qualitativos e quantitativos, com base nos métodos de Revisão Integrativa de Literatura (RIL) (Ganong, 1987), sobre alterações cognitivas e de memória pós-infecção por COVID-19. A RIL é um método de pesquisa fundamentado na prática baseada em evidências, cuja finalidade é ampliar, compreender e sintetizar a diversidade de resultados obtidos em estudos primários sobre a problemática abordada (Lemes et al., 2021). Essa modalidade de revisão divulga resultados de outras pesquisas ao passo que produz novo conhecimento, uma vez que busca, analisa e discute evidências científicas. As etapas padrão do processo de revisão envolvem:
Elaboração da pergunta de pesquisa - base para definição da população a ser estudada, do contexto em que ocorre essa avaliação, além do tipo de estudo que melhor se adequa para alcançar a resposta a essa pergunta, formulação do objetivo da revisão e desenvolvimento das questões relacionadas a serem respondidas pela revisão ou hipóteses a serem testadas;
Busca ou amostragem na literatura - estabelecer critérios provisórios para inclusão e exclusão de estudos na revisão, os quais podem ser alterados com bases metodológicas durante a coleta de dados e definir amostras de estudos se o número destes for elevado;
Coleta de dados - desenvolvimento de um questionário para coletar dados e utilizá-lo na leitura dos estudos: fazer com que haja consonância entre o conteúdo selecionado para análise e a resposta da pergunta de pesquisa;
Análise crítica dos estudos incluídos - interpretar os dados com base em regras de inferência: avaliar os resultados obtidos;
Discussão dos resultados- revisar os critérios de inclusão no questionário quando necessário, além de interpretar, discutir e apresentar os dados obtidos;
Apresentação da Revisão Integrativa - relatar de forma clara e completa a pesquisa desenvolvida e divulgar o novo conhecimento produzido sob a forma de redação científica (Ganong, 1987; Lockwood et al., 2015).
Nesse sentido, a etapa inicial consistiu na elaboração da pergunta norteadora fundamentada na estratégia PICo, na qual P representa população, I refere-se a intervenção e Co a contexto estudado (Lockwood et al., 2015). Nessa pesquisa, foi adotado: P = pessoas infectadas por COVID-19; I = alterações cognitivas e de memória; Co = após infecção por COVID-19. Assim, pergunta norteadora foi definida: Quais as alterações cognitivas e de memória pós-COVID-19 relatadas na literatura? O levantamento dos artigos foi realizado nas seguintes bases de dados: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEdLINE), por meio do portal PubMED, e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), por meio do Portal Regional da Biblioteca Regional em Saúde (BVS), com a finalidade de encontrar maior material bibliográfico mundial sobre a temática em questão. Por meio da consulta com os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e Medical Subject Headings (MeSH), os descritores utilizados foram: “COVID-19”, “Memória”, “Transtornos da memória”, “Cognição” e “Disfunção cognitiva”. O cruzamento desses descritores foi realizado da seguinte forma com base na MEDLINE: (COVID-19 OR SARS-CoV-2 OR (Coronavirus Infections) OR Betacoronavirus OR coronavirus[MeSH Terms]) AND ((Cognition Disorders) OR Cognition OR (Cognitive Dysfunction) OR (Mental Status and Dementia Tests) OR (Memory Disorders) OR Memory OR (Memory and Learning Tests) OR Attention[MeSH Terms]); enquanto, na base de dados, LILACS foram adotados os mesmos descritores no idioma português: ((mh:("COVID-19" OR "SARS-CoV-2" OR "Infecções por Coronavirus" OR "Betacoronavirus" OR "Coronavirus"))) AND ((mh:("Transtornos Cognitivos" OR "Cognição" OR "Disfunção Cognitiva" OR "Testes de Estado Mental e Demência" OR "Transtornos da Memória" OR "Memória" OR "Testes de Memória e Aprendizagem" OR "Atenção"))). Os critérios de inclusão estabelecidos foram: estudos primários e artigos originais publicados nos idiomas português, inglês e espanhol que respondiam à pergunta de pesquisa, entre 2019 e 2021; quanto aos critérios de exclusão, definiu-se: dissertações, teses, resenhas, editoriais, livros, documentos, artigos de opinião, revisões, reflexões teóricas e anais de congressos. A coleta de dados dos artigos selecionados foi feita após exclusão de artigos duplicados. Com a divisão do número total de 2481 artigos entre três duplas de investigadores (total de seis investigadores, sendo um autor, um orientador e quatro coautores), cada dupla realizou a leitura conjunta e simultânea dos títulos distribuídos, caminhando para a leitura dos resumos dos artigos cujos títulos haviam sido previamente selecionados; levando à leitura integral dos resumos selecionados e escolhendo aqueles que realmente foram incluídos na revisão. O processo de seleção dos artigos incluídos na revisão está ilustrado na Figura 1, referente a uma adaptação do Fluxograma PRISMA (Page et al., 2021). Os artigos selecionados foram codificados em Artigo 1 = A1, Artigo 2 = A2, até A27.
Fonte: adaptado de Page et al. (2021)
Para a análise dos dados obtidos nos artigos selecionados foi construído um roteiro contendo os seguintes itens: nome do periódico, título do artigo, autores, ano de publicação, método, país de origem, nível de evidência, idade média dos pacientes e principais disfunções cognitivas e de memória, a fim de propiciar a análise, tendo em vista o objetivo da pesquisa. Foi classificado o corpus de análise da pesquisa em níveis de evidência: Nível 1 - estudos randomizados controlados de coorte e prospectivos; Nível 2 - revisões sistemáticas, estudos de coorte retrospectivos e ecológicos; Nível 3 - revisões sistemáticas, estudo de caso controle; Nível 4 - estudo de série de casos qualitativos; Nível 5 - opiniões de especialistas (Oxford Centre for Evidence-Based Medicine, 2011). A apresentação descritiva dos resultados e da discussão foi estruturada a partir da organização de categorias analíticas depreendidas dos dados obtidos nos estudos selecionados por meio da identificação de variáveis e conceitos-chave em comum, como o preconizado para RIL (Soares et al., 2014; Souza et al., 2010).
4.Resultados
Dos 27 artigos analisados, descritos na Tabela 1, quanto ao país de origem, foram provenientes da Espanha (2), Índia (1), China (1), Áustria (1), Holanda (1), Itália (6), Reino Unido (3), Noruega (1), França (3), EUA (5), Suécia (1) e Dinamarca (2). Foram encontrados sete do ano de 2020 e 20 do ano de 2021. Houve predominância dos estudos quantitativos (17) em relação aos qualitativos (10). Quanto aos níveis de evidência, identificaram-se 24 artigos nível 2, um artigo nível 3 e dois artigos nível 4.
5.Discussão
Com o pressuposto da identificação de conceitos-chave e de interesses em comum, foi realizada a etapa de categorização. Fundamentado nos principais achados de cada literatura, emergiram três categorias analíticas: Alterações cognitivas, constituída por: A3, A5, A6, A7, A9, A11, A12, A13, A14, A15, A16, A18, A20, A21, A22, A23, A25 e A27; Alterações de memória, presente em: A4, A7, A10, a 14, A19, A20, A21, A22, A24, A25, A26 e A27; e Delirium, contida em: A1, A2, A3 e A8. Devido à presença de conceitos- chave diferentes em um mesmo artigo, houve sua identificação em mais de uma categoria analítica. Embasado nos principais resultados alcançados nessas três categorias, a discussão foi realizada a partir dos dados obtidos, da reflexão crítica e do diálogo com a literatura recente.
5.1 Alterações cognitivas
Alterações cognitivas, por definição, podem se apresentar clinicamente de diversas formas (Lam et al., 2014), refletido nos resultados desta revisão. Nesse contexto, observaram-se diferentes taxas de comprometimento cognitivo. Houve cerca de 20% de pacientes com pontuações compatíveis com essa alteração, além de 20,7% apresentarem pelo menos um sintoma cognitivo. Ademais, houve déficit cognitivos com taxa próxima a 25% detectados com o uso do MoCA. Esse é um teste de rastreamento para avaliar a função cognitiva global a fim de excluir aqueles com declínio cognitivo geral ou demência (Ferrucci et al., 2021). Contudo, também há análises que não utilizam esses instrumentos e que expõe dificuldades cognitivas autorrelatadas. Houve taxas mais elevadas de disfunção cognitiva, entre 38% e 65%. Em relação aos idosos, em específico, o declínio na função cognitiva se acentuou naqueles acima de 75 anos. Detectou-se déficit cognitivo em 25,8% em pacientes acima de 70 anos, o que se aproxima das taxas evidenciadas em outros estudos. Por fim, há relatos sobre o impacto das queixas cognitivas na qualidade de vida do paciente, sobretudo em seu bem-estar. Além dessas alterações, podem ser observadas disfunções em áreas pertencentes à cognição, como atenção, concentração e orientação. Houve declínio na atenção em 31,5% dos pacientes. A concentração foi outro aspecto cognitivo afetado e sua presença variou de 10% a mais de 50% dos avaliados. A falta de atenção e de concentração foi relatada em 31,5%. Houve relatos de alterações na orientação, além de confusão mental nos pacientes em 23,7%. Em pacientes com idade superior a 85 anos, evidenciou-se quadro de confusão mental associado ao deliriumem 71,1%. Houve lentidão mental em 10,1%, além de declínio na linguagem e práxis, na aprendizagem verbal e dificuldade em encontrar palavras, abstração, brain-fog, incapacidade de realizar multitarefas eficientemente e dificuldades de cálculo.
5.2 Alterações de memória
As alterações de memória estão correlacionadas com o contexto pós-infecção por COVID-19, evidenciadas pela perda de memória, parte dos sintomas contínuos presentes em 70% dos pacientes analisados. Houve relatos de falta de memória em mais de um terço dos sobreviventes à COVID-19 após uma média de 110,9 dias, além de problemas relacionados após oito meses. Observaram-se dificuldades de memória em 17,5% dos pacientes analisados; percepção da perda da memória no período pós- COVID-19, cuja média de idades é de 45 anos, a menor dentre os estudos que abordaram as afecções da memória. A memória pode ser dividida em três tipos: de longo prazo, de curto prazo, e de trabalho. A primeira refere-se ao conhecimento retido sobre eventos anteriores; a segunda relaciona-se com a capacidade de reter uma quantidade limitada de informações e que podem ser acessadas temporariamente; por fim, a terceira assemelha-se à de curto prazo, contudo, ela é responsável por planejar e executar o comportamento (Cowan, 2008). Nesse contexto, declínio da memória, em especial a de curto prazo, e déficits na memória de curto e longo prazo foram relatados, além do comprometimento de memória, em especial a de trabalho, em taxas de até 30%. Alguns estudos citam comprometimento na memória verbal em 11,8% dos casos e na memória de trabalho, de 6,1% a 30% nessa última. Há atraso de memória e comprometimento da memória verbal, impactada em dois pacientes. O esquecimento foi relatado relacionado a coisas e a eventos passados em 22,3% e 18,4% dos avaliados. Por fim, a codificação e a recuperação da memória apresentaram déficits em 26% e 23% dos pacientes acompanhados, respectivamente.
5.3 Delirium
O delirium é definido por distúrbios de flutuação da atenção e da cognição que se desenvolvem em um curto período de tempo e que não podem ser explicados por doença neurológica pré-existente (Helms et al., 2020). Considerado comum, principalmente em idosos e indivíduos com deficiência cognitiva. A taxa de ocorrência de delirium está entre 29-64% em medicina geral e enfermarias geriátricas, podendo ocorrer em pessoas de qualquer idade (Richardson et al., 2017).
Nesse contexto, até 73% dos grupos estudados apresentaram delirium associados a COVID-19 após o término de sua infecção. Esse foi relatado como único fator associado novo ou de agravamento cognitivo observado na população estudada, cuja idade média foi de 80 anos. Consonante a essa idade, observa-se uma maior elevação desse sintoma quando comparado a outros estudos analisados nesta revisão; tal fato pode ser decorrente da maior incidência de delirium em idosos após a COVID-19 ou do fato de que a população desses estudos partiu de pacientes com idades mais avançadas, influenciando o resultado apresentado. Não houve estudos com análise de populações mais jovens que apontassem a presença de delirium entre as alterações cognitivas apresentadas pelos pacientes estudados. Como já abordado, o delirium pode se associar ou não a outras afecções cognitivas.
6.Considerações Finais
A pesquisa qualitativa permitiu a compilação das evidências literárias que identificaram alterações de cognição e de memória pós-COVID-19, em maior ou menor proporção. Dentre essas alterações, pode-se destacar falta de atenção, de orientação, confusão mental, falhas na memória de curto e longo prazo, de trabalho, delirium, dentre outras disfunções associadas. Dentre as alterações apresentadas por idosos, a mais presente foi o delirium. Alguns artigos tiveram uma abordagem mais quantitativa que qualitativa no sentido de descrever quais seriam essas alterações de cognição ou de memória, refletindo em uma das limitações desta revisão em analisar qualitativamente essas disfunções e, para tanto, sugerimos novas investigações sobre o assunto. O presente resultado pode subsidiar o cuidado em saúde nessa fase da doença e a realização de novas pesquisas.