1.Introdução
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2019), existem mais de 1 bilhão de fumantes no mundo, sendo o tabagismo considerado uma epidemia global, um problema de saúde pública enfrentado por diversos países e apontado como uma das principais causas de morte evitável no mundo. Nesse cenário, o comportamento tabágico é uma grande preocupação para as autoridades políticas, de saúde e para a sociedade, configurando-se como uma doença complexa. Nesse contexto, o paciente pode se beneficiar com ferramentas tecnológicas que têm como objetivo a cessação ao tabagismo.
Segundo Paiva et al. (2017), estudos epidemiológicos apontam que apesar de quase 70% dos fumantes almejarem parar de fumar, apenas 5% conseguem abandonar o vício por conta própria, denotando as inúmeras dificuldades que circundam a cessação do tabagismo.
O desenvolvimento de tecnologias digitais tem sido cada vez mais voltado para atender às necessidades de saúde da população de forma inovadora e prática (Martini et al., 2021; Brasil et al., 2019). Surge o termo eHealth, que é definido como o conjunto de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) que se voltam para apoio à saúde e seus serviços (WHO, 2020). Dentro desse escopo, tem-se as tecnologias mHealth, que correspondem à utilização de dispositivos móveis sem fio, como tablets e smartphones, munidos de aplicativos e outras plataformas digitais, para a realização da promoção e cuidados à saúde. Estes recursos podem servir de apoio tanto para os pacientes como para os profissionais e/ou gestores de saúde.
As tecnologias móveis voltadas à saúde (mHealth) criam um novo cenário de incentivo ao paciente para adotar comportamentos saudáveis rotineiros, além de auxiliarem na autogestão de suas respectivas condições de saúde, podendo atender aos usuários, tanto na vida cotidiana quanto em processos terapêuticos. Para o profissional de saúde, essas tecnologias possibilitam a avaliação constante de parâmetros de saúde, o rastreamento do estado de saúde de pacientes e consultas. Dessa forma, essas ferramentas tecnológicas ainda podem fornecer ao profissional dados que auxiliem na tomada de decisões clínicas (Kitsiou et al., 2017).
Destaca-se que nem todos os fumantes que procuram tratamento para a cessação do tabagismo têm fácil acesso a esse tipo de serviço e, nesse contexto, os aplicativos e plataformas digitais têm sido recursos utilizados para auxiliar a cessação e complementar terapias convencionais (Barroso-Hurtado et al., 2021). Isso se torna viável sobretudo com o aumento do uso dos smartphones e das intervenções de saúde associadas a tecnologias digitais, tornando o tratamento mais acessível (Haskins et al., 2017).
Verifica-se a escassez de estudos que versam sobre os processos de design e desenvolvimento de tecnologias de saúde móvel voltadas a intervenções (Baskerville et al., 2018), porém estes estudos tendem a aumentar, diante da importância que esses recursos assumem no contexto atual de saúde.
Um estudo australiano, realizado com adultos fumantes internados com acesso a computador ou smartphone, mostrou que a motivação para a cessação do tabagismo foi estatisticamente significante e maior no grupo intervenção em comparação com o grupo controle (P=O,O2), sugerindo que os aplicativos podem melhorar as taxas de abandono do hábito tabágico por tabagistas mais velhos dentre os que estão dispostos a usar os aplicativos (Peek et al., 2020).
O hábito de fumar está amplamente associado à perda da capacidade respiratória e a maior risco de infecções virais e bacterianas, uma vez que as substâncias tóxicas presentes na fumaça do cigarro podem causar diminuição da capacidade de limpeza das vias aéreas. O hábito de fumar também está relacionado, isoladamente, à principal causa de câncer no mundo, incluindo o de pulmão e de cabeça e pescoço - agrupamento de tumores da cavidade oral, faringe e laringe (Menezes, 2004; Wünsch Filho et al., 2010).
Esses acometimentos decorrentes do tabagismo podem levar a um desequilíbrio biopsicossocial, precisando haver a recuperação e a readaptação para a realização das atividades diárias. Geram também desconfortos sociais e psicológicos por não se conseguir realizar atividades simples, como falar ou alimentar-se sozinho, podendo, inclusive, levar à incapacidade e à morte (Caxias et al., 2019).
Desse modo, além da questão epidemiológica, o tabagismo traz danos imensuráveis nas esferas sociais, psicológicas e econômicas, trazendo prejuízos tanto para a população fumante e seus familiares, como para a economia mundial (OMS, 2019).
Diante da gravidade do problema e de pesquisas realizadas por um grupo de estudo antitabagismo, que inclui profissionais da saúde e tecnologia, questiona-se: será que a concepção de uma tecnologia mHealth pode agregar valor às estratégias para cessação do tabagismo? Assim, a presente pesquisa justifica-se pela necessidade de concepção de uma tecnologia mHealth que possa auxiliar na cessação do tabagismo, ampliando as estratégias disponíveis e acessíveis aos pacientes.
Realizou-se um benchmarking, com levantamento bibliográfico e busca nas lojas de aplicativos dos recursos tecnológicos voltados a cessação do tabagismo existentes no mercado. Esse processo visa introduzir melhores práticas, técnicas e estratégias, com melhor custo e qualidade para cessação ao tabagismo (Vieira et al., 2005). Nessa busca, observou-se que as ferramentas identificadas na literatura têm como principal característica o fornecimento de informações como o número de dias sem fumar, ajuda para momentos de “fissura” (momentos de desejo intenso de fumar ou acender um cigarro) e poucos possuíam mensagens de incentivos, entre outras estratégias apontadas como eficazes pela literatura científica que auxiliam no processo de cessação do tabagismo (Lopes & Silveira, 2020; Santos et al., 2019).
Partindo-se desse levantamento, verificou-se que os aplicativos voltados à cessação do tabagismo e disponíveis nas lojas digitais não possuem os recursos necessários que atendam às necessidades do tabagista que busca a cessação do hábito. Por isso, um grupo interdisciplinar de pesquisadores de uma universidade privada de Fortaleza, Ceará, concebeu e desenvolveu o aplicativo que foi denominado inicialmente Take a Breath (nome em inglês para ampliar o alcance da ferramenta) e, por motivos de identidade e marca, logo recebeu o nome TabCess.
O presente estudo tem como objetivo descrever o processo de concepção, desenvolvimento e aprimoramento do aplicativo TabCess voltado à cessação do tabagismo. A relevância da investigação fica expressa nas contribuições que trará para a ampliação do acesso àqueles que buscam alternativas e suporte para a cessação do tabagismo.
2.Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, aplicada, realizada em uma universidade brasileira, de janeiro de 2021 a março de 2022, tendo sido desenvolvida em duas etapas: 1) análise do protótipo por profissionais da saúde e informática e 2) aprimoramento do protótipo com desenvolvimento da versão teste do aplicativo. Uma terceira etapa (teste de usabilidade e avaliação por pneumologistas, psicólogos, fonoaudiólogos e dentistas) dará continuidade ao processo de desenvolvimento da tecnologia em pauta, mas não é objeto deste artigo.
A pesquisa qualitativa perpassa todo esse estudo, pois diários de campo, formulário de avaliação da tecnologia e relatórios foram submetidos a análise de conteúdo na modalidade temática (Minayo et al., 2016), elucidando as temáticas que versaram sobre as necessidades de ajustes e melhorias. As reuniões da equipe multidisciplinar aconteceram semanalmente durante o desenvolvimento da ferramenta e os instrumentos foram preenchidos pelos participantes.
O desenvolvimento do aplicativo TabCess baseou-se no Método Interdisciplinar para o Desenvolvimento de Tecnologias em Saúde - MIDTS (Vasconcelos Filho et al., 2021), uma metodologia ágil, utilizando atividades de identificação do problema; levantamento de requisitos; idealização do projeto para pensar sobre as possíveis soluções; prototipação dessa solução; teste de usabilidade; avaliação dos resultados; e registro final do projeto.
A equipe técnica iniciou pela elaboração de algumas “personas”, que representam perfis de possíveis usuários. A partir das “personas”, a equipe passou a entender melhor e a contextualizar a problemática sob investigação, podendo seguir para a etapa de levantamento de requisitos.
Considerando o cenário da problemática e as “personas”, foi possível seguir com o levantamento de requisitos. Para isso, fez-se um benchmarking, identificando-se 11 aplicações relacionadas a 15 requisitos necessários para a ferramenta tecnológica a ser desenvolvida.
A partir dos requisitos levantados, chegou-se à fase de idealização do protótipo do aplicativo. Nessa fase, a equipe da saúde apresentou as necessidades dos usuários a serem contempladas na tecnologia em desenvolvimento, dentre as quais, as principais eram: relatório com a contagem de vezes que o usuário fumou e teve “fissuras”; painel com o número de cigarros evitados; quantia de dinheiro que o usuário pode economizar quando evita um cigarro; entre outras. Com esses e outros requisitos, a equipe técnica desenvolveu um protótipo interativo, com telas de baixa e alta fidelidade (Figura 1).
Fonte: Autores, 2022.
O protótipo desenvolvido foi validado pelos membros das equipes de saúde e tecnologia, tendo sido aprovado para desenvolvimento, com a utilização da plataforma Ionic possibilitando a criação de aplicativos para as tecnologias Android e IOS.
Na primeira etapa, a análise das telas e ferramentas do protótipo resultou na elaboração do plano de trabalho para a inclusão de novas telas e ambientes, cuja necessidade foi evidenciada pelas temáticas de análise (cadastro de metas, relatório de uso do aplicativo, relato diário do paciente, benefícios da cessação e malefícios do cigarro, tabagismo passivo, vídeos educativos, enfrentamento da fissura, cigarro eletrônico).
Na segunda etapa, a equipe de informática implementou 14 novas telas e ambientes no aplicativo TabCess, criando a versão teste, que será descrita nos resultados e discussão.
Destaca-se que, em etapa subsequente, serão realizados o teste de usabilidade com especialistas (pneumologistas, psicólogos, fonoaudiólogos e dentistas) e a validação com pacientes e juízes. Somente havendo uma nota aceitável no teste de juízes, a aplicação estará pronta para lançamento ao público e ao registro, que é a etapa final do método MIDTS. Esta última etapa será apresentada em outro artigo.
3.Resultado e discussão
A versão teste do TabCess apresenta as seguintes telas e funções: CADASTRO; TELA INICIAL (comandos para o paciente marcar se fumou, não fumou ou teve “fissura”, além da possibilidade de escrever o que sentia); BENEFÍCIOS DA CESSAÇÃO DO TABAGISMO (informações sobre os benefícios a curto, médio e longo prazo); PREJUÍZOS DO TABAGISMO (informações sobre problemas cardíacos, gravidez e tabagismo, impotência sexual, apnéia obstrutiva do sono além dos malefícios do cigarro eletrônico); EVOLUÇÃO (mostra dias sem fumar, dinheiro economizado e atividade física); CADASTRO DE METAS (cadastro das metas relacionadas a parar de fumar, alimentação, atividade física, lazer e trabalho); LINKS ÚTEIS (links com informações sobre combate ao tabagismo); CONQUISTAS (acompanhamento do alcance das metas cadastradas); CONFIGURAÇÕES (tela para configurar o aplicativo de acordo com as notificações que deseja receber); SOBRE O APP (texto informativo sobre o aplicativo); USANDO O APP (vídeo informativo sobre como usar as funcionalidades do aplicativo, registro e acompanhamento dos dados de consumo e fissura); RELATÓRIO (dados gerais e resultados do paciente); YOU TUBE (nessa tela, o usuário é direcionado para o canal do Youtube do aplicativo para acessar outras informações e vídeos do aplicativo); e INSTAGRAM (direciona ao Instagram do aplicativo).
O aplicativo TabCess foi programado com funcionalidades de conscientização e informações ao usuário sobre o tabagismo, textos, vídeos e imagens referentes aos benefícios da cessação, prejuízos do tabagismo, entre outros aspectos. No decorrer do uso, o aplicativo coleta e armazena dados do usuário para facilitar o acompanhamento do tabagista pelos profissionais de saúde, por meio de um relatório em PDF enviado ao e-mail do paciente. Nesse relatório, pode-se visualizar quantas vezes o paciente fumou em determinado dia, quantas vezes o paciente teve “fissuras”, dentre outras informações.
Outra funcionalidade é a possibilidade de o usuário escrever relatos sobre suas sensações, experiências ou quaisquer outras informações que queira registrar sobre o uso do aplicativo. Esses relatos também são armazenados e serão adicionados ao relatório para que o profissional de saúde possa compreender a vivência do paciente.
O cadastro de metas também é uma das funcionalidades para que o usuário registre seus objetivos relacionados a várias áreas de sua vida, como as relacionadas à alimentação, atividade física, bem estar, entre outras.
Ao longo do desenvolvimento do aplicativo, foi incluída uma pergunta referente ao gasto financeiro do paciente por maço de cigarro convencional, eletrônico ou outro usado. Desse modo, é possível calcular o gasto mensal ou a economia, a partir do uso ou não de cigarros, sendo possível o paciente monitorar o seu progresso.
Após implementadas as novas telas, um teste de usabilidade foi feito pelas equipes de saúde e tecnologia desenvolvedoras do TabCess para verificação da qualidade do acesso, manuseio e funcionamento. Diante dos resultados positivos, a nova ferramenta foi aprovada para o teste de validação com especialistas, etapa não contemplada no presente artigo, mas de extrema relevância diante das dificuldades de avaliar o impacto dos aplicativos de cessação de tabagismo na população, pela falta de dados sobre a sua eficácia (Bricker et al., 2014).
Uma revisão sistemática, que estudou aplicativos de cessação de tabagismo respaldados pela ciência baseada em evidências, relatou que, dentre 158 artigos analisados, apenas seis (6) preenchiam esses critérios e, destes, 57% eram apoiados em evidências de baixa qualidade. Outro ponto importante destacado na referida revisão foi que apenas três (3) aplicativos ainda se encontram disponíveis para os consumidores nas lojas de aplicativos de celular (Haskins et al., 2017).
Outra pesquisa analisou a intervenção móvel em saúde em países em desenvolvimento, com a busca de estudos realizada de 2013 a 2018. Foram identificados 31 estudos que evidenciam a falta de familiaridade dos pesquisadores com a lista de verificação de Relatório e Avaliação de Evidências de Saúde Móvel, além das intervenções não estarem aptas para serem integradas aos sistemas de informação de saúde existentes (Hoque et al., 2020).
A literatura mostra que as intervenções para cessação do tabagismo mediadas por tecnologias mHealth proporcionam vários benefícios aos pacientes, tais como: facilidade de uso em qualquer lugar e a qualquer hora; fornecimento de conteúdo que auxilia nos momentos de fissura; capacidade de enviar mensagens de incentivo a cessação do tabagismo e adaptação das mesmas de acordo com o público (faixa etária, sexo); dentre outras (Whittaker, 2019). No entanto, são necessários estudos para avaliação dos processos de concepção e desenvolvimento, além da verificação da eficácia desses aplicativos, antes e após a disponibilização ao público-alvo.
4.Considerações finais
Verifica-se que o aplicativo TabCess é composto de ferramentas capazes de dar suporte aos tabagistas que buscam a cessação do hábito e aos profissionais que os acompanham, uma vez que a multiplicidade de recursos iconográficos, escritos, multimídia e digitais propiciam um maior estímulo e ampliam as possibilidades de (auto)gerenciamento desse processo. Observa-se que esta pesquisa também contribui para o fortalecimento das políticas e estratégias antitabagismo, pois o aplicativo amplia o acesso a informações sobre o problema e esse tipo de intervenção.
A partir do pleno desenvolvimento do aplicativo e do teste de usabilidade realizado pela equipe multidisciplinar, neste estudo, o aplicativo encontra-se apto para ser submetido aos testes de validação por especialistas e pacientes. Isto constitui uma etapa posterior e será descrito em outro artigo.
Destaca-se que, somente havendo uma nota aceitável nesses testes, o aplicativo estará pronto para disponibilização ao público-alvo, etapa final do MIDTS.