1. Introdução
Indubitavelmente, no último triênio, a reabilitação ganhou espaço nos debates das pautas do Sistema Único de Saúde, diante da maior crise sanitária do século XXI (Karsten et al., 2020). A pandemia causada pelo SARS-CoV-2, agente infeccioso que gera a Doença do Coronavírus (COVID-19), trouxe enormes impactos para a saúde pública no Brasil e no mundo (OMS, 2019). A COVID-19 sobrecarregou os sistemas de saúde pública, tanto para a fase crítica da doença e hospitalizações, quanto para o pós-COVID-19, com as sequelas físicas e psicossociais daqueles que sobreviveram (Barker-Davies et al., 2020). As queixas mais comuns que os pacientes apresentam após a fase aguda da doença são fadiga, dispneia, dor articular e dor no peito (Fraser, 2020).
No caso de acometimento respiratório provocado pela COVID-19, o tratamento com a reabilitação pulmonar está indicado, pois melhora a função pulmonar, tolerância aos exercícios físicos e redução da fadiga (Zhao et al., 2020). Evidências apontam que as intervenções com atividades aeróbicas e de força, exercícios respiratórios, drenagem postural, educação do paciente e treinos de relaxamento, melhoram a qualidade de vida, reduzem hospitalizações e custos para os sistemas de saúde (Lan et al., 2013).
Nesta perspectiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS) ressaltou que os serviços de reabilitação localizados onde os pacientes residem são sempre os melhores para os tratamentos a longo prazo. Assim, orientou aos gestores a prepararem os serviços de saúde e atenção psicossocial para o aumento da demanda, considerando as necessidades dos pacientes após casos graves da COVID-19 (OPAS/OMS, 2020).
No Brasil, tendo em vista a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), torna-se evidente a necessidade de fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS). A APS é o primeiro nível de atenção, funciona como coordenadora e ordenadora do fluxo de atenção ao usuário dentro das Redes de Atenção à Saúde (RAS). Suas equipes trabalham no cuidado centrado no indivíduo, dentro do território (Brasil, 2023). A Associação Brasileira de Fisioterapia Cardiorrespiratória e Fisioterapia Intensiva (ASSOBRAFIR) também disponibilizou diretrizes e orientações sobre fisioterapia na APS para os pacientes com sequelas da COVID-19 (ASSOBRAFIR, 2020).
Diante do exposto, a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES-GO) desenvolveu um Programa de Reabilitação para os pacientes da Atenção Primária que apresentaram sequelas após a COVID-19. Assim, tornou-se importante desenvolver estudos que avaliem os resultados do protocolo proposto, tanto para o meio acadêmico, quanto para subsidiar a gestão da saúde para ofertar ações e serviços eficientes para a população.
De modo geral, os estudos das ciências da reabilitação têm se voltado para análise quantitativa e, no nosso entendimento, os dados numéricos poderiam sombrear informações importantes para a compreensão da temática em foco. Sendo que as percepções, os sentidos, os significados e entendimentos dos usuários e profissionais de saúde a respeito dos serviços de reabilitação voltados à COVID-19 precisam ser mais estudados (Karsten et al., 2020).
Logo, investigações qualitativas dentro desse tema devem ser mais exploradas, visto que as investigações sobre como a reabilitação vem se desenvolvendo na APS no SUS devem ser consideradas importantes e presentes na agenda nacional de investigações científicas no contexto da pandemia (Aroeira, 2022). Ademais, a abordagem qualitativa nessa temática pode revelar um potencial para a promoção à saúde, além de possibilitar uma análise crítica da relação entre profissional e paciente para o campo da Saúde Coletiva.
Para além disso, o modelo biomédico ainda é o predominante na fisioterapia, fundamentando-se no dualismo, ou seja, na separação da mente e do corpo, no reducionismo, em que a compreensão das estruturas do corpo são estudadas por partes (Scharan & Moser, 2020). Nas últimas décadas, organismos nacionais, como o Ministério da Saúde e Educação, e internacionais, como a OMS, identificam a necessidade de ampliação desse modelo de cuidado voltado para os sinais e sintomas para um modelo mais, o biopsicossocial (Sánchez, 2022). Nesse novo modelo, os profissionais de saúde, além de evidenciar os sinais e sintomas, devem saber lidar com as incapacidades e consequências nas atividades e participação dos indivíduos na sociedade (Duarte, 2021).
Todavia, no que concerne a fisioterapia e as ciências da reabilitação, se perpetua o conceito restritamente biomédico e existe um descompasso acerca da produção científica com iniciativas de análise e aplicação do modelo biopsicossocial (Moser & Scharan, 2018). Dentre as possibilidades de preenchimento dessa lacuna na literatura está a pesquisa qualitativa, por ser uma investigação aberta na qual o pesquisador registra as percepções dos pesquisados no que se refere sua condição clínica e social. O aprofundamento das experiências dos usuários com a fisioterapia pode apontar a saúde vivida, subsidiando a edificação de objetivos terapêuticos em conjunto para se obter uma melhor funcionalidade (Aroeira, 2022).
Com a maior crise sanitária enfrentada no século XXI, ocasionada pela COVID-19, estudos desta natureza ganham ainda mais relevância. O SARS-CoV-2 pode provocar sintomas prolongados afetando a qualidade de vida, a participação social e as atividades de vida diárias e profissionais de grande parte das pessoas que tiveram a COVID-19 (O’Mahony et al., 2022). Compreender todo esse processo é algo complexo e as evidências científicas qualitativas podem contribuir para a melhoria na obtenção de informações e gerenciamento do cuidado em saúde (Jardim & Jardim, 2022).
Posto isto, nos perguntamos: quais as percepções dos usuários do programa de reabilitação da SES-GO quanto ao aos serviços de acompanhamento oferecidos para sua recuperação pós-COVID-19 na APS? Desse modo, o estudo objetiva compreender as percepções dos usuários do programa de reabilitação da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás quanto aos serviços de acompanhamento oferecidos para recuperação pós-COVID-19 na Atenção Primária à Saúde.
2. Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório com abordagem qualitativa. Recorremos a esse modelo em virtude de a pesquisa descritiva ter por finalidade a descrição das características de determinada população ou fenômeno e proporcionar uma nova visão do problema.
No que concerne os estudos exploratórios, podemos afirmar que eles têm o propósito de permitir uma maior familiaridade com o problema, tornando-o mais claro. O planejamento da pesquisa exploratória é bastante flexível por abarcar os mais variados aspectos em relação ao fato ou fenômeno estudado. Em conjunto, os estudos descritivos e exploratórios resultam no alcance da compreensão dos fatos envolvidos, com a finalidade de aprofundar os aspectos de uma situação, buscando o conhecimento sobre o assunto em estudo (Gil, 2017).
A pesquisa foi conduzida nos serviços de APS de Inhumas e Senador Canedo, ambas estão situadas na Região Metropolitana de Goiânia. A SES-GO elegeu essas localidades para testar a reabilitação de pacientes pós-COVID-19 por terem sido os primeiros municípios a fazer adesão ao programa proposto.
O protocolo de reabilitação cardiorrespiratória e musculoesquelética foi confeccionado por especialistas e baseado na literatura científica sobre o tema. Foi dividido em 2 etapas, a primeira composta pelas 2 primeiras semanas; e a segunda, pelas 6 últimas semanas. Na primeira etapa os exercícios foram de baixa intensidade com valores máximos de 5 e 6 na escala de Borg. Já na segunda etapa, os exercícios foram de moderada a alta intensidade, com valores de 6 a 8 na mesma escala. Em ambas os exercícios realizados foram: alongamento estático; caminhada por 30 minutos; exercícios resistidos de membros superiores e inferiores; e exercícios. O protocolo também oferecia uma cartilha com orientações para realização dos exercícios físicos e respiratórios.
Os critérios de inclusão eram: pessoas com idade igual ou superior a 18 anos; residentes de Inhumas e Senador Canedo; e que tiveram histórico de internação por COVID-19, com sequelas ou limitações advindas da doença. Os indivíduos que não concluíram o protocolo de reabilitação eram excluídos do estudo.
Realizou-se um levantamento entre os pacientes dos dois municípios que estavam com encaminhamento médico na fila do SUS para a realização de fisioterapia por causa da sua história pregressa de internação por COVID-19. Foram identificados, então, 85 indivíduos com o perfil para realizar o tratamento, sendo 30 pessoas do município de Inhumas e 55 usuários de Senador Canedo. Todos as pessoas com encaminhamento para o serviço de fisioterapia foram convidadas para participar da pesquisa. Contudo, do total, 46 usuários compareceram para a primeira avaliação e iniciaram a reabilitação. Finalizaram o protocolo, portanto, 18 participantes, 5 indivíduos de Inhumas e 13 pacientes de Senador Canedo.
Quanto à amostragem, decidimos incluir todos os pacientes que concluíram o programa de reabilitação. Por isso, não fazemos a referência à saturação teórica dos dados por termos incluído o número total de participantes potenciais em nossa investigação qualitativa.
A princípio, o estudo contemplava uma análise puramente estatística para dimensionar os impactos antes e após o programa de reabilitação na qualidade de vida, capacidade física, pulmonar e funcional através de testes e questionários padronizados. Dessa forma, nesse estudo, decidiu-se implementar a análise qualitativa com a inclusão de uma única pergunta ao término do protocolo de reabilitação. Os dados foram coletados a partir da pergunta norteadora: “O que você achou do programa de reabilitação pós-COVID-19 recebido dos serviços públicos?”
As respostas dos participantes foram redigidas por uma pesquisadora, do sexo feminino, fisioterapeuta, a qual não tinha vínculo prévio com os participantes. Após a redação da resposta, a pesquisadora fazia a sua leitura para que o participante confirmasse a veracidade do conteúdo das mensagens transcritas. Todos os pacientes confirmaram a autenticidade das respostas redigidas pela pesquisadora. A pergunta foi realizada nas Academias da Saúde de Inhumas e Senador Canedo. Nesse momento, só havia a presença do usuário e da pesquisadora. A avaliação dos participantes da pesquisa aconteceu no primeiro semestre de 2021.
Analisamos os dados obtidos através da Análise de Conteúdo Temática. Bardin (2016, p. 135) destaca que “o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura”. Primeiramente, o conteúdo das respostas foi transcrito na íntegra para uma planilha do Excel. Atribuímos as respostas a letra “U” acrescida do número atribuído a cada participante para preservar sua identidade e a confidencialidade dos dados da pesquisa. Vale destacar que a análise dos dados foi realizada por um único codificador, o qual não participou da coleta dos dados.
Feito isso, iniciamos com a pré-análise para organizar o material a ser analisado, proporcionando um contato mais profundo com os documentos da coleta de dados, por meio da leitura flutuante. O objetivo nessa fase foi tornar operacionais e sistematizar as ideias iniciais, de modo a conduzir a um esquema de operações sucessivas em um plano de análises. Consistiu também no contato direto e intenso do pesquisador com os dados brutos, deixando-se impregnar pelo conteúdo (Bardin, 2016).
Logo em seguida, fez-se a exploração do material, sendo que a categorização possibilita e facilita as inferências e interpretações. Nesse estágio, foram identificados os núcleos de sentidos e selecionados os fragmentos de textos que, de fato, representaram os argumentos mais significativos da análise das mensagens dos respondentes. A codificação dos dados foi realizada durante a leitura das respostas e designou-se o fragmento selecionado do texto para um ou mais nós. Os nossos códigos tinham semelhanças quanto ao critério semântico e criados durante o processo de análise (Bardin, 2016). A última etapa de análise dos dados, consistiu no tratamento dos resultados obtidos e nas interpretações seguindo os objetivos propostos à luz do referencial teórico levantado por meio da pesquisa bibliográfica e o que foi coletado por meio da pergunta.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás sob número de parecer 4.484.927. A SES-GO e as Secretarias Municipais de Saúde de Inhumas e Senador Canedo foram devidamente esclarecidas sobre a natureza da pesquisa e seus objetivos, autorizando a sua implementação. Os procedimentos que foram realizados na pesquisa estão de acordo com as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos segundo as Resoluções nº 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assim como a finalidade, os benefícios e os seus riscos foram explanados antes das execuções da realização da pergunta de pesquisa.
3. Resultados e Discussão
Os participantes foram em sua maioria do sexo masculino (61,1%), autodeclarados da cor parda (72,2%), se enquadraram na faixa etária entre 30 e 79 anos, com predomínio entre 40 e 49 anos (38,89%), e escolaridade até o ensino fundamental (55,6%). A média do tempo de internação hospitalar por COVID-19 foi de 12 dias. A internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) apresentou uma média de 11,5 dias. Apenas 1 participante precisou de intubação orotraqueal, por um período de 14 dias. As respostas dos 18 participantes culminaram em 7 códigos e reorganizados em duas categorias temáticas, conforme demonstrado no Quadro 1.
3.1 Percepções dos efeitos na funcionalidade atribuídas pelos usuários após o programa de reabilitação idealizado pela Secretaria de Saúde do Estado de Goiás
No que se refere a esta categoria temática, percebemos que o programa de reabilitação proposto pela SES-GO e aplicado pelos dois municípios está ajudando a melhorar a funcionalidade dos participantes. Segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), a funcionalidade é um conceito o qual abarca todas as funções do corpo, atividades e participação, além do ambiente que pode ser tanto um facilitador ou dificultador para os usuários (OMS, 2013).
Ao realizarmos a análise dos dados, identificamos nas respostas dos participantes elementos fundamentais para a funcionalidade. Isso nos aponta para que o protocolo proposto e rompe com um modelo essencialmente biomédico para o biopsicossocial.
Foi possível apreender que a dor, a respiração e a força muscular melhoraram com implementação do protocolado planejado. Em suas palavras,
“Percebi uma diferença para melhor importante da minha capacidade pulmonar e disposição física." (U1)
"A disposição e respiração melhoraram demais.” (U2)
"Foi muito bom pelo fato da melhora da respiração. Eu estava com dificuldade para respirar até parado. Depois que comecei estou muito mais resistente ao cansaço.” (U7)
“Excelente. Porque eu melhorei bastante a dor no corpo. [...] Me sinto bem mais forte.” (U10)
Alguns participantes também mencionam a influência do programa de reabilitação para a melhoria da sua saúde mental, conforme podemos evidenciar nas narrativas a seguir:
“Melhorou muito o aspecto físico e mental.” (U12)
"Foi ótimo, aumentou até minha autoestima.” (U5)
As questões emocionais podem estar muito relacionadas com as perdas funcionais adquiridas com os sinais e sintomas prolongados da COVID-19. Com as incapacidades, definida pela CIF como o termo que inclui deficiências, limitação da atividade ou restrição da participação (OMS, 2013), os usuários padecem de sofrimento. O isolamento social também pode ser um fator para as alterações de cunho psíquico (Bezerra et al., 2020; Brito et al., 2021). Mas, o programa de reabilitação se mostra como um fio condutor para o restabelecimento das pessoas consigo mesmas, assim como nos estudos de Sampaio (2022), Cardoso (2022) e Peixoto (2022). Estes autores nos ajudam a entender que os pacientes após acometimento por COVID-19 estão em hipoatividade e encontram-se num estado de incapacidade funcional, com restrição da autonomia e independência das suas atividades. Esse quadro é transformado com a prática de exercícios, pois a melhora das funções promove emoções positivas e bem-estar melhorando a saúde mental dos participantes.
Esses relatos envolvendo as questões físicas e mentais também dizem respeito a um dos componentes da funcionalidade: estruturas e funções do corpo. Elas incluem tanto as funções fisiológicas quanto as psicológicas quanto as partes anatômicas, como órgãos e os sistemas corporais (OMS, 2013). As alterações de ordem musculoesquelética (Silva & Sousa, 2020), respiratória (Fraser, 2020) e mental (Zwielewski et al., 2020) por sequelas da COVID-19 foram exploradas pela literatura. A prática de exercícios terapêuticos, então, foi um importante aliado para que essas pessoas apresentassem uma melhora dos sinais e sintomas após a participação no programa de reabilitação, estando o achado alinhado com a literatura (Hayden et al., 2021; Botek et al., 2022).
Com a resolução do quadro clínico, repercute diretamente na atividade e participação dos usuários em seus contextos sociais. De acordo com a CIF (OMS, 2013), atividade é a execução de uma tarefa por um indivíduo.
Diante dessa definição, os usuários deixam claro as influências do programa de exercícios terapêuticos para a retomada de suas atividades diárias. Eles narram,
“Me sinto bem melhor para fazer as tarefas de casa, antes dos exercícios não conseguia fazer nada." (U16)
"Para mim foi ótimo. Depois que comecei já melhorou muito, voltei a andar e fazer as coisas de casa que eu não conseguia fazer antes.” (U17)
No que concerne a participação, cuja definição, preconizada pela CIF (OMS, 2013), é o envolvimento de um indivíduo numa situação da vida real. Os participantes do programa de reabilitação deixam isso mais que evidente:
“Vou ao supermercado. Eu consigo fazer muitas coisas que eu não estava fazendo depois da COVID. Eu consigo até ir para igreja.” (U6)
“Melhorou muito a força muscular e consegui voltar a trabalhar.” (U7)
"Com certeza foi ótimo. Eu não conseguia fazer minhas coisas de casa antes de começar o tratamento.” (U14)
“[...] relevante cada exercício, cada manobra para eu estar fazendo o que fazia com perfeição, que são louvar a Deus e tocar violão sem nenhuma dificuldade.” (U15)
Nesse seguimento, outros estudos envolvendo a reabilitação fisioterapêutica de pacientes com COVID-19 também evidenciam a melhora das atividades e participações nas funções dos participantes (Imamura et al., 2021; Crema et al., 2022). De fato, a COVID-19 provocou impactos biopsicossociais significativos (Veneroso et al., 2022), sendo necessária transformações do modelo de reabilitação reducionista para o biopsicossocial (Sánchez, 2022). Dessa maneira, em decorrência da complexidade imposta pela COVID-19, o processo-saúde-doença deve levar em consideração a dimensão social das pessoas que tiveram sua condição de saúde afetada pelo novo coronavírus. Em conjunto, esta categoria temática enfatiza a modificação da vida dos usuários que vão de alterações físicas com repercussões no seu dia a dia. Mas também, evidencia o papel essencial da fisioterapia na vida dessas pessoas. O programa conseguiu recuperar funções perdidas e recolocar os participantes em seu contexto social.
3.2 Percepções dos efeitos terapêuticos atribuídas pelos usuários após o programa de reabilitação idealizado pela Secretaria de Saúde do Estado de Goiás
Participar do programa de reabilitação proporciona sensação de melhora nos aspectos físicos e psíquicos, bem como nas atividades e participações no cotidiano laboral e diário dos participantes. Além disso, os participantes enfatizam nas respostas as percepções do tratamento oferecido pelas SMS. Antes do protocolo, esses pacientes não tinham um direcionamento para o manejo das consequências funcionais da COVID-19.
Quando comparam o programa de reabilitação realizado com o momento em que não estavam fazendo nenhum tipo de procedimento terapêutico reverberam a importância da fisioterapia para a sua recuperação. Um dos participantes destaca que o protocolo,
"Foi muito eficaz para minha melhora, antes deste tratamento não senti melhora alguma. Depois de 10 dias que iniciou o tratamento já comecei a notar a melhora. Após o tratamento posso dizer que fez toda a diferença na minha vida." (U8)
Do mesmo modo, outro participante narra que havia sinais e sintomas da COVID-19 há um tempo significativo. O programa de reabilitação representa também uma oportunidade ímpar para transformar sua condição clínica. Ele diz,
“Eu tive COVID no ano passado e a sequela estava até hoje. Sentia muito cansaço e fraqueza. Eu falava com cansaço. E depois da reabilitação tudo melhorou.” (U11)
À vista disso, o programa de reabilitação pode representar uma ordenação dos recursos terapêuticos das SMS do SUS local e regional para o atendimento da demanda da clientela pertencente as unidades de saúde, sobretudo, a APS. A SMS de Campo Grande também realizou uma reestruturação dos serviços de reabilitação para atender a demanda de pessoas que sofreram as consequências da COVID-19 (Souza et al., 2021). Essas readequações são fundamentais para a reinserção e recuperação do desempenho profissional e interação social dos usuários (Santana et al., 2021).
O programa de exercícios da SES-GO incluía a distribuição de cartilhas com orientações para a execução dos exercícios respiratórios e físicos em domicílio. Essa conduta terapêutica proporciona o que Bandura (2017) chama de autoeficácia. Na concepção do autor, esse termo se reporta a confiança na capacidade pessoal para organizar e executar certas ações. Assim, com a indicação dos profissionais do programa em explicar e fornecer essa ferramenta, incentiva a corresponsabilização dos usuários no processo de recuperação das suas capacidades funcionais perdidas com a COVID-19. A autoeficácia também já foi evidenciada em outros estudos envolvendo a fisioterapia e alterações musculoesqueléticas (Moraes et al., 2021) e neuroreabilitação (Cammarota & Xavier, 2022). A restrição à atividade física na pandemia está associada com menor autoeficácia para dor musculoesquelética (Rodrigues et al., 2022). Logo, o programa de reabilitação representa também uma retomada da prática de exercícios terapêuticos após os períodos mais críticos da pandemia. Os pacientes ponderam:
“Vou continuar fazendo os exercícios, tenho o papel com as orientações, o que eu consigo fazer vou continuar fazendo." (U3)
“Eu aprendi os exercícios e estou fazendo em todas as oportunidades, e ensino meus familiares”. (U5)
A autoeficácia também diz respeito ao sentimento de adequação, eficácia e competência para enfrentar os problemas. Uma das fontes para se desenvolver a autoeficácia é ver pessoas similares a si, nas mesmas condições em que a pessoa se encontra (Bandura, 2017). Concordando com os resultados de outro estudo (Mayer et al., 2021), verificamos essa ocorrência na implementação do programa de reabilitação na seguinte narrativa:
“Também aprendi a dar mais valor na minha vida vendo as dificuldades dos outros colegas da terapia.” (U12)
Logo, vivenciar a experiência junto a outras pessoas que também tiveram consequências da COVID-19 proporciona o enfrentamento e ressignificado do quadro clínico em que o participante se encontra. Isso faz com que os pacientes consigam um grau de confiança na sua capacidade de obter êxito e controlar a própria vida.
Por fim, avistamos o quão o programa de reabilitação promoveu satisfação dos usuários com o serviço e o cuidado prestado com os profissionais.
“Eu fui todos os dias na hora certa porque eu via que estava melhorando." (U14)
“Agradeço a Deus todos os dias pela oportunidade de fazer parte deste. Foi muito satisfatório” (U15)
Nesse contexto, é importante destacar as percepções sobre a relação terapeuta-paciente, pois este elemento é o que mais influencia na satisfação dos usuários conforme é apontado por outros estudos (Lopes & Xavier, 2022; Santos & Amorim, 2022). A forma como os fisioterapeutas se portou durante os atendimentos no programa de reabilitação foram destacadas no conteúdo das respostas dos participantes:
“Gostaria de agradecer essa oportunidade e a direção desse projeto. Estou muito satisfeito. A equipe fez com que toda melhora fosse me mostrada.” (U4)
“Os profissionais são muito acessíveis e ensinaram tudo direitinho.” (U5)
“Percebi que os profissionais têm autoridade no que estão fazendo." (U12)
“Muito bom, além de melhorar a respiração e força, eu consegui tirar as dúvidas que tinha sobre a doença e a recuperação." (U18)
Concordando com outros achados da literatura (Moreno et al., 2019; Vale et al., 2021), a satisfação é estabelecida pela reação da pessoa com o atendimento recebido, culminando em um indicador sensível da qualidade do atendimento. Por conseguinte, esses resultados possibilitam um melhor direcionamento na implementação de políticas de saúde e programas como este, com a finalidade de melhorar a qualidade do atendimento dos serviços de saúde.
Sumariamente, esta categoria temática evidencia os efeitos terapêuticos atribuídos após a participação no programa de reabilitação imprescindíveis para a recuperação funcional dos usuários. A sensação de melhora antes e após os exercícios terapêuticos pensados pela SES-GO e implementados pelas SMS, bem como a autoeficácia através da implementação de cartilhas educativas podem ser balizadores para o seguimento e ampliação do programa por outros municípios. Além do mais, o protocolo proposto se mostra bastante satisfatório do ponto de vista dos participantes por causa da boa relação terapeuta-paciente.
4. Considerações Finais
A escolha da abordagem qualitativa foi motivada por ela permitir ao pesquisador entender de forma aprofundada os significados das vivências das pessoas.
As subjetividades dos gestos, atitudes e maneiras de ser e viver dificilmente poderiam ser explicados somente pelos códigos numéricos. A pesquisa qualitativa visa assimilar o sentido de um fenômeno no local em que ocorre e interpretar as percepções que as pessoas dão a ele. Desse modo, as ações de reabilitação podem ter uma perspectiva altamente subjetiva, como o emocional, o social, o energético e o cultural, elementos que vão além dos fatores biológicos explorados pela racionalidade médica científica ocidental. Destarte, os estudos que envolvam a reabilitação demandam outros modos de saber, como a pesquisa qualitativa que inclui a experiência subjetiva dos atores envolvidos.
Vale destacar que a aplicação da pergunta norteadora ocorreu após a execução dos testes paramétricos e aplicação dos questionários padronizados. Procedimentos extensos, deixando os participantes cansados, o que para pesquisadora, pode ter comprometido o aprofundamento das respostas a pergunta norteadora que geraria os dados qualitativos. Apontamos essa como uma limitação metodológica, bem como um roteiro de entrevista mais elaborado e complexo poderia ser criado e utilizado para trazer mais riqueza de detalhes do fenômeno em foco. Contudo, diante da aplicação de muitos testes e instrumentos antes da implementação da pergunta de pesquisa impossibilitou a execução de tais medidas metodológicas. As percepções exploradas também estão restritas aos usuários deste programa de reabilitação. Sugerimos, então, pesquisas futuras com aplicação de entrevistas guiadas por roteiro previamente elaborado abarcando usuários e profissionais de saúde envolvidos nos processos de reabilitação da COVID-19.
Nessa conjuntura, em resposta à nossa pergunta de investigação, no que concerne as percepções dos usuários do programa de reabilitação compreendemos que o serviço, além de recuperar a capacidade física e mental dos participantes, favorece o seu retorno as suas atividades de vida diária e profissionais. Além do mais, aumenta o envolvimento do usuário nas atividades funcionais, isto é, a sua participação nas atividades é potencializada com o programa oferecido pelas SMS em parceria com a SES-GO.
Outros efeitos terapêuticos também são dimensionados pelos participantes. A autoeficácia, uma importante habilidade pessoal e social, foi proporcionada com a adoção do programa idealizado para as pessoas que padecem de sofrimento oriundas da COVID-19. Logo, isso pode implicar também para que outros protocolos incluam ferramentas de orientação para o tratamento fisioterapêutico, como o uso de cartilhas educativas. A percepção do efeito sentido antes e após a realização dos exercícios respiratórios e físicos também foi evidenciado, o que pode ser um parâmetro para a adoção do programa por outras SMS. De mais a mais, os pacientes ainda se sentem satisfeitos com o cuidado oferecido pelos profissionais, com trocas de informações e esclarecimentos sobre como enfrentar as consequências da COVID-19.
Em suma, acreditamos que os conhecimentos e reflexões deste estudo podem implicar na expertise para replicar do programa em outras cidades goianas contribuindo para a institucionalização da reabilitação após a COVID-19 nos serviços do SUS. Portanto, colaborar para a democratização da acessibilidade, a qualificação profissional, melhoria da assistência aos usuários e o fortalecimento das ações na APS.