1. Introdução
Em decorrência das transformações do processo de globalização, diferentes grupos em situação de vulnerabilidade têm se constituído, dentre eles destacam-se as Pessoas em Situação de Rua (PSR) (Barata et al., 2015). Um aumento significativo dessa população ocorreu na década de 90 nos centros das grandes metrópoles brasileiras, porém, somente em 2008, o Governo Federal apresentou um documento de diretrizes da Política Nacional para a Inclusão Social da População em Situação de Rua (PNPR), com o intuito de orientar para construção e execução de Políticas Públicas (Serafino & Luz, 2015).
A PSR cresce constantemente, sendo composta por uma grande diversidade de pessoas e estão diariamente expostas às diversas formas de violência, são privadas de direitos fundamentais, não possuem privacidade, têm condições precárias de sono, alimentação e higiene. Por razão disso, há comprometimento de sua autoestima, perdem as esperanças, vínculos sociais são rompidos ou fragilizados, culminando com dificuldades de acesso aos serviços de saúde e de seguimento em propostas terapêutica (Coelho, 2020).
No decurso do tempo, essa população recebeu diferentes denominações, em geral, de caráter depreciativo e humilhante, que não expressam relação com os direitos que possuem perante a Constituição Federal e a sociedade, mesmo que estes sejam cotidianamente violados. Tais transgressões são consequências de desinformação e inacessibilidade aos direitos básicos (Bove & Figueiredo, 2015).
Destaca-se um claro exemplo da segregação que a PSR sofre no Brasil: o fato de não haver dados oficiais, censo demográfico decenal, tampouco o número total da população não domiciliada. Essa ausência de registos prejudica a implantação de políticas públicas voltadas a essas pessoas e reproduz a invisibilidade social, que se revela na ausência de documentos necessários para acessar benefícios e serviços sociais garantidos pelo Estado (Natalino, 2016).
Verifica-se que essa população merece uma abordagem focada em suas necessidades de saúde, uma vez que, cotidianamente, são expostas a riscos em relação à integridade física e mental. Aponta-se que a cobertura limitada das equipes de saúde e a baixa adesão ao tratamento e acompanhamento, são fatores que impedem um cuidado integral a essas pessoas (Brasil, 2009).
Frente a este contexto, foi instituída em 2009 a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), bem como a criação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da referida política nacional, que tem entre outros objetivos, garantir o amplo acesso aos serviços e programas que constituem as políticas públicas de saúde e incentivar a pesquisa de conhecimentos sobre a PSR (Brasil, 2009a).
A atual política define a PSR como grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (Brasil, 2009b).
Em 2011, registra-se a elaboração da estratégia Consultório na Rua (CnaR), instituída pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), com intuito de ampliar o acesso da população não domiciliada aos serviços de saúde, de forma mais oportuna e integral. Assim, um Consultório na Rua (CnaR) é um serviço da Atenção Primária de Saúde (APS), que tem por objetivo atuar de forma multidisciplinar e itinerante, a partir da política de redução de danos, rompendo com o paradigma de que o usuário que deve buscar pelo serviço (Brasil, 2013). Os CnaR integram a componente atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Os profissionais empregam tecnologias leves em suas intervenções, como o acolhimento, a escuta e o diálogo, o que favorece à formação de vínculo com os usuários (Lima et al., 2019).
O CnaR é organizado a partir de planejamento, abordagem individual e coletiva, mapeamento e ação simultânea com a Rede de Saúde e Assistência Social; acompanha internações, pré-alta e pós-alta. Além de incluir a população atendida aos serviços públicos de saúde, como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e Atenção Básica (AB), Hospitais Gerais, serviços de assistência especializada em infecções sexualmente transmissíveis (ISTs); reinserção escolar, social e familiar, promovendo também a promoção dos direitos e da cidadania da população usuária (Cazanova, 2015).
Identifica-se grandes desafios nesse processo, como a dificuldade de articulação com as Redes de Atenção à Saúde (RAS), com enfase na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e frágil integração dos setores e serviços e a dificuldade do usuário em acessar os equipamentos que são disponibilizados nos territórios para operacionalização dessas conexões (Koopmans et al., 2019). Ademais, revela-se que o uso de álcool e outras drogas é atribuído como “razão” para a condição do “viver na rua”, como também um mecanismo para suportar uma existência em sofrimento real, de forma a minimizar as dificuldades do “viver na rua”, como a fome e o frio, que fazem parte dessa constante situação de vulnerabilidade (Jacinto, Santos, & Rocha, 2020).
Assim, considera-se relevante aprofundar o conhecimento sobre a complexidade das demandas do consumo abusivo de substâncias psicoativas, com vistas a possibilitar reflexões sobre estratégias de abordagem à PSR, partindo do seguinte questionamento: Como é desenvolvido o cuidado ofertado à população em situação de rua frente ao uso abusivo de álcool e outras drogas?
2. Objetivo
Interpretar como é desenvolvido o cuidado ofertado à população em situação de rua frente ao uso abusivo de álcool e outras drogas.
3. Métodos
Trata-se de um estudo de campo de delineamento qualitativo, com base na análise temática proposta por Braun e Clark, realizado a partir de entrevista semiestruturada com profissionais dos serviços de saúde envolvidos na assistência às pessoas em situação de rua (Unidade Básica de Saúde (UBS);
Estratégia de Saúde da Família (ESF); serviços de urgência e emergência; Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-ad) e Consultório na Rua (CnaR), e dos profissionais da Secretária de Assistência e Desenvolvimento Social (SADS) (Centro Pop e Casa Cidadã) (Braun & Clarke, 2006). Estruturou-se e conduziu-se a presente investigação com base nos Critérios de Consolidação para Relatórios de Pesquisa Qualitativa (Tong, Sainsbury, & Craig, 2017).
O estudo foi realizado em um município do interior do estado de São Paulo que conta com uma população estimada 237.000 habitantes. De acordo com dados da Secretaria de saúde do município em pauta, a rede básica de saúde do município é constituída por 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 40 Unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF). Conta também com outros dispositivos de cuidado à saúde, como é o caso do CnaR.
No Município em pauta, a eCR foi implementada no ano de 2019, na modalidade I, contando com os seguintes profissionais: assistente social, cuidador social, enfermeiro, técnico em enfermagem e motorista. A locomoção se dá por meio de carro de passeio, com a identificação do programa. Conta também com uma sala de reunião alocada em uma unidade da ESF. A eCR trabalha de forma articulada com a RAS e a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SADS) - rede de proteção social do município, que compreende o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS); Conselho Tutelar; Posto de Atendimento ao Migrante (PAM); Casa Cidadã e o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop).
Fizeram parte da pesquisa os profissionais de diferentes categorias tanto da área da saúde como da assistência social. A escolha deu-se considerando o envolvimento destes profissionais no cuidado à PSR. Delimitou-se como critérios de inclusão profissionais com pelo menos um ano de experiência no local de trabalho e, como critérios de exclusão, aqueles que estavam em licença ou férias no período de coleta de dados.
Desta maneira, foram realizadas 20 entrevistas com profissionais de diferentes serviços, sendo dois da UBS; quatro da ESF; um da Unidade de Pronto Atendimento UPA; um do Serviço Móvel de Atendimento de Urgência - SAMU; um do Pronto Socorro do Hospital das Clínicas (PS - HC); três do CnaR; dois do Caps-ad; um do Caps-Conviver; três do Centro Pop e dois da Casa Cidadã. Quanto as categorias profissionais, são seis enfermeiros; dois técnicos de enfermagem; um agente comunitário de saúde; três médicos; cinco assistentes social; dois psicólogos e um cuidador social. Todos os profissionais que foram convidados aceitaram participar.
Os dados foram coletados no período de outubro de 2021 a fevereiro de2022, por meio de entrevistas individuais com duração média de 50 minutos, foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra. As entrevistas foram previamente agendadas e conduzidas pela pesquisadora principal devidamente capacitada para a técnica, com base em questões norteadoras, as quais foram aprofundadas ao longo da investigação: Como você percebe o cuidado às pessoas em situação de rua? Quais as possibilidades e limites que observa nesse cuidado? Além disso, foi elaborado um roteiro contendo dados de identificação. As entrevistas foram encerradas quando se observou que havia saturação dos dados (Minayo, 2017).
A análise dos dados foi realizada por meio da técnica de Análise Temática, caracterizada pela flexibilidade, e por ser essencialmente independente de uma teoria ou epistemologia específica, podendo ser aplicada com uma variedade de abordagens teóricas e epistemológicas. Essa abordagem corresponde a um processo de codificar as informações obtidas, sem atribuir categorias previamente existentes, ou seja, pressupõe que os temas emergem à medida que os sujeitos de pesquisa participam do estudo (Braun & Clarke, 2006).
A análise temática é desenvolvida em seis fases, conforme seguem: Fase 1: Familiarização com os dados, momento de transcrição dos dados, leitura e releitura que levam às ideias iniciais; Fase 2: Elaboração de códigos iniciais quando são identificadas de forma sistemática as características interessantes do conjunto dos dados; Fase 3: Agrupamento dos códigos em temas potenciais, quando há busca por temas; Fase 4: Revisitação dos temas, quando ocorre a verificação de como se relacionam aos extratos codificados e ao conjunto dos dados; Fase 5: Nomeação dos temas por meio de nova análise, visando o refinamento das especificidades de cada um deles e Fase 6: Produção do relatório, levando em consideração os temas elaborados e as relações com as questões da pesquisa e a literatura (Braun & Clarke, 2006).
Para proceder à análise, utilizou-se como ferramenta o software NVivo Plus, versão 11. Neste, inicialmente, foram inseridas as 20 entrevistas e, em seguida, foram criados os códigos iniciais referentes a cada núcleo de sentido encontrado, com subsequentes revisões e agrupamentos para chegar aos temas finais. Para auxiliar na sistematização dos dados, foram elaborados mapas conceituais dentro do software. Embora existam diferentes tipos de software de análise qualitativa no mercado, aponta-se que o sobre o NVivo, assim como os demais softwares, agrega características importantes contidas em outros pacotes (Costa & Amado, 2018). A codificação dos dados foi analisada e consensuada entre as pesquisadoras.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da instituição proponente, com o CAAE 51191321.0.0000.5413. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em conformidade com a resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
4. Resultados
Entre os entrevistados, 18 (90%) é do sexo feminino; 14 (70%) está na faixa de idade entre 31 e 40 anos; 9 (65%) têm tempo de atuação profissional entre um e cinco anos. A análise das entrevistas levou à elaboração de quatro categorias temáticas, sendo elas: a situação de viver na rua favorece o uso de álcool e outras drogas; incipiente efetivação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); incipiente efetivação da Política de Redução de Danos e Influência do terceiro setor no cuidado à PSR.
4.1 A situação de viver na rua favorece o uso de álcool e outras drogas
Depreende-se das falas dos entrevistados que o uso de álcool e outras drogas pela PSR é uma situação complexa que requer o desejo dela para se promover o cuidado.
Considera-se que o uso de substâncias psicoativas (SPA) é considerado uma necessidade para fugir da realidade que a pessoa vive. Ademais, acredita-se que para atingir um cuidado efetivo, seria necessário sair da condição de viver na rua, considerando a alta vulnerabilidade que este cenário oferece para processos de recaídas.
[...] quando se trata de droga é muito complicado [...] uma pessoa que é usuária de droga ela tem que querer, ela tem que buscar ajuda mais do que o quanto você oferece ajuda. E12
[...] eles falam que, às vezes, é isso que faz sobreviver a essa fuga da realidade, são essas substâncias que permitem essa pessoa a não tem que entrar em contato com aquilo que traz tanto sofrimento. E10
[...] uma pessoa que está em situação de rua que está envolvido com alguma dependência química, ela vai ficar só algumas horas no Caps e o resto do dia vai ficar na rua vulnerável […] pode se envolver com drogas novamente […]. E2
4.2 Incipiente efetivação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
Para os entrevistados, existem lacunas e fragilidades importantes na estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), bem como no vínculo entre os profissionais dos diferentes serviços. Soma-se a isso, que a maioria das propostas de cuidado são centradas na abstinência, internação e medicalização, sem que haja um investimento no resgate dos laços afetivos ou a possibilidade de uma adequada continuidade por meio da rede de atenção psicossocial.
[...] e a maioria já passou pelo Caps-AD, grande parte deles a gente encaminha muito eles para o Caps-AD, mas como a maioria já passou e por algum motivo não achou eficiente talvez o que foi proposto pra ele, e aí a gente propõem e eles não vão, eles recusam. E8
[...] a gente percebe muitas fragilidades na articulação da Raps […] são falhas que serve pra gente talvez aprender com as próprias situações [...] a gente precisa fortalecer o nosso trabalho com a Raps, a gente precisa do Caps AD. E5
[...] as fragilidades que a gente tem na nossa rede e, principalmente, para essas questões clínicas psiquiátricas e de cuidado de atenção psicossocial para esses pacientes, há falta de estrutura, nós não temos um CAPS 3 aqui na cidade. E10
[...] uma pessoa que é usuário, ela é internada e foca-se o tratamento em medicação e tempo de abstinência, espera-se que a pessoa saia da internação sem uma reconstrução de rede, de laços e situações, e que assim, ela deixa de usar álcool e outras drogas, e isso não vai acontecer com quem mora em casa ou com quem mora na rua. E5
4.3 Incipiente efetivação da Política de Redução de Danos
Entre os entrevistados, revela-se a falta de preparo dos profissionais para lidar com a Política de Redução de Danos e incipiência nas estratégias propostas nessa perspectiva, centralizando o cuidado na medicalização e abstinência.
Resgatam também como necessária a internação compulsória, visualizam que o usuário de substâncias psicoativas (SPAs), muitas vezes, não consegue decidir pela própria vida.
[...] mas a gente não consegue fazer, por exemplo, política de redução de danos […] nós não temos profissionais capacitados para isso, que estudaram isso, tiveram acesso a essas questões, e principalmente, que não colocam a questão da moral, da criminalidade como tabus intransponíveis. E5
[...] a gente tenta fazer essas orientações de redução de danos dentro do pouco conhecimento que a gente tem, porque nós não recebemos nenhum tipo de treinamento [...]. E11
[...] uma pessoa que é usuário, ela é internada e foca-se o tratamento em medicação e tempo de abstinência, espera-se que a pessoa saia da internação sem uma reconstrução de rede, de laços e situações, e que assim, ela deixa de usar álcool e outras drogas, e isso não vai acontecer com quem mora em casa ou com quem mora na rua. E5
[...] a discussão da internação compulsória, né, e que também dá uma briga já de muitos anos, mas que eu sou a favor, eu sou a favor porque eu acho que quando a pessoa tá no abismo, ela não tem mais discernimento pra escolher o que é bom e o que é ruim para ela, já está dominada totalmente. E1
4.4 Influência do terceiro setor no cuidado à PSR.
Revela-se entre os entrevistados, a influência do terceiro setor no cuidado à PSR destacado pelo envolvimento das comunidades religiosas e comunidades terapêuticas. Apontam que o envolvimento dos serviços informais, se faz presente no cotidiano da PSR e se apresentam como apoio no cuidado. No entanto, ainda que se faça presente, ressaltam cautela com relação as comunidades terapêuticas.
[...] uma das coisas que, às vezes, aparece também, que a gente consegue são as comunidades terapêuticas, às vezes, mantidas pelas igrejas e, às vezes, em outras cidades, eu não sei direito como é que isso se estrutura [...]. E10
[...] na verdade, esses serviços acabam fazendo parte do cotidiano, parte do nosso trabalho também, né, porque eles estão atendendo pessoas em situação de rua, então, eles se tornam alguns parceiros que a gente tem que ter uma boa convivência, um bom diálogo. E9
[...] porque têm Clínicas que não estão nem organizadas, que não possuem alvará de funcionamento, não têm autorização, e aí como a gente vai fazer encaminhamento pra uma Clínica que a gente não sabe como que é ali dentro? [...] a gente fica até com medo de encaminhar para determinada Clínica que a gente não sabe, se tiver ali um trabalho análogo ao trabalho escravo, ou tráfico de mulher, tráfico de drogas ali dentro […]. E19
5. Discussão
O uso abusivo de álcool e outras drogas representa a necessidade de saúde mais presente entre a PSR, sendo que 35,5% referem o uso abusivo de álcool e outras drogas como principal motivação para estarem em situação de rua o que para eles representa uma forma de diminuir os sofrimentos físicos e psicológicos e lidar com as condições sociais desfavoráveis (Sicari & Zanella, 2018). Esse cenário, no entanto, dificulta a adesão e continuidade nas propostas de cuidado.
As barreiras persistentes ao acesso à saúde para PSR com transtorno mental, sobretudo, decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas, vezes decorrem das dificuldades dos profissionais e gestores para transpô-las e revelam fragilidades na formação dos profissionais, quanto ao manejo clínico, ao uso de psicotrópicos e à própria vulnerabilidade da condição de rua (Santos, 2021).
Denota-se que muitas propostas de cuidado são centradas na abstinência, internação e medicalização. Identificam-se paradigmas que parecem ainda persistir acerca de lógicas que não atendem a perspectiva da atenção psicossocial. Nesse sentido, vale destacar, no âmbito das políticas públicas direcionadas ao álcool e outras drogas, alguns modelos vigentes que refletem o cuidado que a PSR recebe a nível estatal. Preponderam-se os paradigmas de proibicionismo e antiproibicionismo nos setores da segurança pública e justiça. Já em áreas da assistência social e da saúde, constata-se os paradigmas psicossociais, os asilares e o de redução de danos (RD) (Souza, Mesquita, & Sousa, 2017).
Evidencia-se a dificuldade de acesso ao tratamento relacionado a problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, desde as condições que um serviço oferece de permanência, como alimentação, infraestrutura, viés religioso, laborterapia e até mesmo a exigência da abstinência. Apontam-se fragilidades com relação aos tratamentos praticados na rede pública de saúde, uma vez que os serviços parecem não direcionar suas ações a partir das diretrizes da política nacional de álcool e outras drogas, como a RD e a baixa exigência por abstinência (Rossi & Tucci, 2020).
A RD é definida pela Associação Internacional como um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é diminuir danos biopsicossociais associados ao uso de substâncias psicoativas (SPAs) em pessoas que não querem, não podem ou não conseguem parar o uso. Uma grande parte das intervenções de RD percorrem os caminhos propostos nas tecnologias leves em que o acolhimento e vínculo são fundamentais para a construção compartilhada de projetos existenciais (Alves et al., 2021).
As intervenções de âmbito da RD acontecem de modo a considerar a subjetividade e a individualidade da pessoa, bem como promover o autocuidado e a autonomia.
Entre as ações importantes para o cuidado junto às pessoas que fazem uso de substâncias, destacam-se a distribuição de água e insumos, como preservativos, e material gráfico com informações sobre IST e uso de SPAs, entre outros (Souza, Mesquita, & Sousa, 2017). No entanto, a escassez de insumos é apontada como dificuldade para o desenvolvimento dessas ações (Timóteo et al., 2020).
Ademais, visualiza-se que as políticas públicas nessa direção, têm se apresentado incipientes e com pouca efetividade, potencializando as desigualdades das pessoas que já estão em uma condição de elevada vulnerabilidade social e que fazem uso abusivo de substâncias, assim como as PSR (Souza, Mesquita, & Sousa, 2017).
Nesse sentido, emergiu-se a influência do terceiro setor no cuidado à PSR destacado pelo envolvimento das comunidades religiosas e comunidades terapêuticas. Revela-se que o envolvimento dos serviços informais, se faz presente no cotidiano da PSR e se apresentam como apoio no cuidado. No entanto, o tratamento oferecido pelas comunidades terapêuticas, embora seja apontado como o mais acessado pelos usuários de crack em situação de rua, mostra-se ser pouco efetivo para essa população. Ademais, estas instituições operam o cuidado orientado em uma lógica religiosa e proibicionista, considerando a abstinência como critério e resultado único a ser aceito, em total detrimento a RD como uma possibilidade de estratégia de cuidado (Pereira et al., 2017).
Supõe-se que isso venha ocorrendo, principalmente, devido à disponibilidade insuficiente de dispositivos vinculados ao SUS, sobretudo, aos componentes da RAPS, como, por exemplo, leitos hospitalares em enfermarias de cuidado à saúde mental e CAPS-ad (Pereira et al., 2017). Fato esse que corrobora com a realidade municipal, apontada pela necessidade de fortalecimento da RAPS, ressaltando a necessidade de um CAPS-ad III.
6. Considerações Finais
No presente estudo que buscou interpretar, sob a ótica dos profissionais de saúde e da assistência e desenvolvimento social, como é desenvolvido o cuidado ofertado à população em situação de rua frente ao uso abusivo de álcool e outras drogas, constatou-se que, para os entrevistados, esse uso foi apontado como necessidade de saúde mais presente entre eles. Evidenciam-se questões sensíveis ao cuidado na perspectiva da atenção psicossocial, uma vez que a possibilidade de tratamento e o êxito do mesmo são atribuídos à pessoa. Nessa perspectiva, o cuidado à saúde mental das PSR emerge como ponto essencial. No entanto, para os entrevistados, existem lacunas e fragilidades importantes na estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Nesse contexto, evidenciam-se limites para a promoção do cuidado na perspectiva da atenção psicossocial, quais sejam: fragilidades na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); dificuldades para adesão e para a continuidade nas propostas de cuidado, o que perpassa pela crença de que seria necessário sair da condição de viver na rua para atingir um cuidado mais efetivo, considerando a alta vulnerabilidade que o cenário de rua oferece para processos de recaídas. Soma-se a isso que a maioria das propostas de cuidado é centrada na abstinência, internação e medicalização e na falta de preparo dos profissionais para lidar com a Política de Redução de Danos (RD).
Revela-se, também, a influência do Terceiro Setor no cuidado à PSR destacado pelo envolvimento das comunidades religiosas e comunidades terapêuticas.
Observa-se, assim, que há de se considerar as especificidades da PSR, compreender suas concepções do processo de saúde-doença e suas trajetórias, com vistas ao aprimoramento dos serviços. Compreende-se que dar voz às pessoas em situação de rua, para entender suas necessidades, pode ser o ponto de partida para o reconhecimento das prioridades no planejamento das ações municipais.
Frente ao exposto, considera-se que a pesquisa qualitativa explicitou informações que contribuem para reflexões acerca do complexo fenômeno que envolve o cuidado à PSR, mesmo que sem a intenção de generalização dos dados.