1.Introdução
O contexto dos serviços de saúde tem se mostrado a cada dia com situações de saúde mais complexas, tendo como determinantes os desdobramentos da pandemia pela COVID-19, as condições de vida e trabalho nos últimos anos, com piora no acesso aos bens e serviços, a ampliação das necessidades e demandas frente às mudanças no perfil epidemiológico e a transição demográfica, as mudanças climáticas e os seus desdobramentos na vida e moradia das populações, principalmente, as mais vulneráveis (Daumas et al., 2020; Kitamura et al., 2022; Minayo, 2019; Peixoto, 2020; World Health Organization [WHO], 2020).
Com a aprovação da nova constituição federal brasileira, em 1988, ratificando as lutas do movimento sanitarista, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que dispõe sobre promoção, proteção e recuperação da saúde, sendo a integralidade o princípio norteador do cuidado em saúde. A Estratégia Saúde da Família (ESF) é, então, implantada como forma de operacionalizar o modelo de vigilância em saúde na Atenção Primária à Saúde (APS), tendo como intenção a superação do modelo biomédico. No entanto, muitos desafios têm se mostrado como forma de resistência as mudanças, dentre esses as políticas públicas, dos últimos anos, que não vão ao encontro do ideário SUS e as lacunas e necessidade de construção de novas tecnologias no cotidiano dos serviços para na resolução dos problemas. Dentre esses, a construção de estratégias de abordagem das famílias frente às suas necessidades (Campos, 2022; Souza et al., 2019; Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2018).
Embora a construção dessas estratégias para o cuidado às famílias não seja recente, os serviços de saúde e os profissionais ainda têm dificuldades em operacioná-las (Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2018). Com o intuito de apoiar a prática na família, o Curso de Especialização em Atenção Básica em Saúde da Família publicou um Caderno de Estudo intitulado “A família como foco da Atenção Primária à Saúde”. Esse documento versa sobre instrumentos de abordagem familiar, a saber: o Genograma e Ecomapa, o FIRO, o PRACTICE e o APGAR Familiar (Chapadeiro et al., 2011).
No cenário de prática profissional os integrantes da equipe Saúde da Família (eSF) enfrentam desafios para romper a lógica fragmentada do processo de trabalho e o manejo de novas tecnologias que abordem o cuidado integral e interprofissional. O modelo biomédico necessita ser enfrentado, uma vez que a complexidade dos problemas não se resolve com o enfoque, predominantemente, na dimensão biológica e no cuidado centrado no médico. A estratégia de educação em saúde, na perspectiva dialógica, busca a mudança da relação com o usuário. Além disso, o matriciamento junto à equipe ampliada e o uso de tecnologias que abordem as situações de saúde, a partir da interprofissionalidade e do núcleo familiar, são práticas necessárias. Percebe-se a necessidade de se investir na formação profissional para que ocorram mudanças nas práticas (Nascimento & Cordeiro, 2019; Oliveira & Wendhausen, 2014).
Portanto, reconhece-se a necessidade de se identificar como os profissionais têm se instrumentalizado para realizar a abordagem familiar no cuidado na APS.
3.Método
O presente trabalho consiste em uma revisão integrativa de literatura, que proporciona uma ampla abordagem de estudos experimentais, não-experimentais, relato de experiência e estudos de revisão com a intencionalidade de compreender o fenômeno analisado. É capaz de proporcionar a síntese do conhecimento, avaliar a qualidade da evidência, captar as lacunas de conhecimento, gerar questões de pesquisa e vislumbrar a aplicação de resultados significativos na prática (Dhollande et al., 2021).
Para realizar a revisão, seguiu-se um protocolo que organizou o trabalho dos pesquisadores e o processamento dos documentos, sendo constituída de seis etapas definidas como: 1) elaboração da pergunta de pesquisa; 2) estabelecimento dos descritores, das bases de dados e dos critérios de inclusão e de exclusão; 3) identificação dos estudos pré-selecionados e selecionados a partir de um instrumento; 4) categorização dos estudos selecionados; 5) análise e interpretação e 6) apresentação da revisão e síntese do conhecimento (Whittemore & Knalf, 2005).
A pergunta norteadora do estudo é: “Como tem sido desenvolvido o cuidado às famílias pela equipe da atenção primária e/ou atenção domiciliar?”
A coleta de dados foi realizada em março de 2021, utilizando-se como portal de busca o PubMed.
Entre palavras-chave e Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) utilizou-se: Family Caregiving; Professional-Family Relations; Family Nursing; Family-Centred Care; Primary Health Care. A interação desses descritores e palavras-chave foi realizada pelos operadores booleanos AND e OR.
A seleção do material ocorreu considerando como critérios de inclusão: ser artigo original, relatos de experiência e de revisão publicado em revista científica; abordasse a intervenção com as famílias na APS; ser escritos em português, inglês, espanhol; ter o resumo e o texto completo disponíveis para acesso; publicados nos últimos 10 anos.
Considerou-se como critérios de exclusão: produções sobre atenção secundária e terciária; produções sobre cuidados em saúde que não abordassem a família; produções realizadas antes de 10 anos; produções sobre clínicas de longa permanência; produções no formato de tese, dissertação, manuais, capítulos de livro.
Participaram das etapas da revisão quatro pesquisadores com iniciação científica e dois pesquisadores com título de doutor.
O processo de seleção dos artigos foi realizado em etapas, por quatro pesquisadores iniciantes e em duplas e, posteriormente, validado pelos orientadores de forma independente.
Após exclusão dos artigos duplicados, realizou-se leitura minuciosa de títulos e de seus resumos, selecionando os que deveriam ser lidos na íntegra; após a exclusão do material que não atendia aos critérios de inclusão, chegou-se a 19 artigos (figura 1).
Utilizou-se uma matriz para registrar todo o processo de coleta de dados contendo: autores/ano de publicação; título dos artigos; país; tipo de estudo; critérios de inclusão e exclusão; síntese sobre os conteúdos abordados nos artigos que respondessem à pergunta de pesquisa.
Após elaboração de síntese sobre o conteúdo de abordagem do cuidado junto as famílias, o material foi sistematizado a partir da análise de conteúdo, modalidade temática (Gomes, 2016). A análise passa pelas fases: (a) pré- analise; (b) exploração do material; (c) tratamento dos resultados, análise e interpretação. Na etapa de pré-análise, objetivou-se a exploração do material dos artigos visando à compreensão dos conteúdos por meio da elaboração de síntese sobre as abordagens do cuidado as famílias. Numa segunda fase, a análise ocorreu considerando o agrupamento das sínteses nas categorias, chegando-se ao núcleo de sentido Formação/Educação em Saúde e Promoção do Cuidado (quadro 1). Na próxima fase, esses foram articulados, gerando o tema “Estratégias de abordagem das Famílias na Atenção Primária à Saúde”, sendo apresentado, discutido e interpretado na perspectiva da integralidade no cuidado.
4.Resultados
A busca resultou em 220 produções, destas, 35 permaneceram após a leitura do título e resumo. 16 artigos foram excluídos por não contemplarem os demais critérios de inclusão. Sendo então, após revisão por pares (duplo-cego), a amostra final ficou contemplada por 19 artigos científicos (figura 1).
Os dados dos artigos selecionados foram registrados em uma matriz a partir do processador de texto do word, contendo: autores/referência; título do artigo; tipo de pesquisa; estratégias de abordagem familiar, núcleos de sentido, conforme quadro 1.
Os núcleos de sentido identificados no quadro 1, compuseram os temas Formação/Educação em Saúde às pessoas a serem cuidadas e a seus cuidadores e a Promoção do Cuidado centrado na família, indicando que essas foram as estratégias encontradas na revisão integrativa para abordagem familiar.
Destaque para a primeira ação e para essa dirigida a cuidadores de crianças. Evidencia-se que a transição hospital para o domicilio é uma situação em que há preocupação com a continuidade do cuidado.
Wood et al. (2021), Simione et al. (2020), Shi et al. (2020), Raynor et al. (2019), Fiallo‐Scharer et al. (2019), Chang et al. (2015), Chavis et al. (2013), Arauz Boudreau et al. (2013), Dalton et al. (2013) e Scholer et al. (2012) referem que a Formação/Educação em saúde, promovida pela APS, aos cuidadores é uma estratégia para promoção do cuidado as crianças.
Já Lawler et al. (2019), Aboumatar et al. (2017), Puranen et al. (2015) e Tomita et al. (2014) identificam a formação/educação em saúde à cuidadores para promoção do cuidado à pessoa com comorbilidades. Lawler et al. (2019) e Aboumatar et al. (2017) referem essa ação na transição hospital-residência, para promoção de fisioterapia a idosos e para a pessoa com Doença Obstrutiva Crônica e familiares, respectivamente. Tomita et al. (2014) evidenciam essa atividade para a pessoa com doença mental grave e cuidadores e Puranen et al. (2015) para pessoas portadoras de Alzheimer com intuito de melhorar a sua nutrição.
Destaque para a intervenção que promove o Método Better Respiratory Education and Treatment Help Empower (BREATHE), o qual é projetado para atender de modo personalizado paciente com Doença Obstrutiva Crônica (DPOC) e sua família, a partir de um acompanhamento na transição hospital-residência. O BREATHE possui 3 componentes, que duram por até três meses pós alta hospitalar: 1) suporte personalizado na transição hospital-casa; 2) educação individualizada sobre o autocuidado em relação à DPOC; 3) acesso facilitado a programas comunitários e serviços de saúde. (Aboumatar et al. 2017).
Outro cuidado relevante é a promoção do Critical Time Intervention (CTI), modelo designado a melhorar a continuidade do apoio entre pessoas que vivem com doença mental grave durante os períodos de transição entre a institucionalização à vivência em comunidade, o qual enfatiza o suporte coordenado entre os cuidadores, incluindo os membros da família e os serviços de saúde destinados à saúde mental. Durante a primeira fase, o CTI prove um extensivo suporte para os participantes, no intuito de envolvê-los a identificar, avaliar e aprimorar o indivíduo não só nos serviços formais como também na rede informal. Na segunda fase, o responsável pelo CTI transfere o cuidado e as responsabilidades tanto para o indivíduo quanto para os seus cuidadores informais, também se estabelece como um suporte vital para aqueles que enfrentam relações complicadas e que enfrentam problemas financeiros. Para tanto, a equipe, por meio das visitas domiciliares, elabora reuniões educativas e informativas. Na Terceira fase, a responsabilidade de fornecer suporte à pessoa com a enfermidade é gradualmente transferida, do trabalhador do CTI ao cuidador (seja formal ou informal) da pessoa cuidada. (Tomita et al., 2014)
Youens et al. (2019) e Berwig et al. (2019) apontam que o acompanhamento pós alta hospitalar a cuidadores de idosos é um mecanismo para esclarecê-los sobre a mesma.
A importância da equipe da APS nos cuidados pós alta as pessoas com Doença Obstrutiva Crônica e Insuficiência Cardíaca Congestiva e seus cuidadores é sinalizada por Griffiths et al. (2021).
Auger et al. (2018) explicitam a intervenção de transição pediátrica do hospital para os cuidados domiciliares, que consiste em visita domiciliar por enfermeiro dentro de 96 horas após a alta. O cuidado pessoal (privado) promovido no domicílio por enfermeiro/médico a cuidadores de crianças prematuras é um instrumento para a abordagem familiar (Boone et al., 2019).
5.Discussão
No Brasil, Fittipaldi et al. (2021) evidenciaram a presença dos diversos enfoques da educação em saúde, como estratégias e abordagens interativas e complementares, presentes nas políticas públicas, essas refletem a relevância da inserção de todos os atores envolvidos. Dessa forma, contemplam diretrizes que visam a participação da população, entendendo que, para efetividade dos processos educativos, é necessário construí-los por meio de protagonismo, corresponsabilidade e autonomia.
A educação em saúde foi considerada uma responsabilidade da equipe da APS. Todavia, na realidade explorada, as ações educativas são realizadas de modo pontual pelos trabalhadores. Os profissionais referem que o enfermeiro realiza as ações gerenciais e assistenciais e, em menor proporção, as educativas e que o mesmo é considerado um importante educador. No entanto, ele, por vezes, é somente organizador dessa atividade e a sua execução é atribuída a outros membros da equipe (Barreto et al., 2019).
Para Dourado et al. (2021) as tecnologias têm crescido de forma acelerada e acentuada no cenário mundial; na área educativa elas são reconhecidas por todos como estratégia para subsidiar a produção do cuidado. Destaca-se, o enfermeiro no emprego delas para o desenvolvimento de ações educativas com adolescentes. As intervenções em formato de oficina, sob o uso de materiais impressos e especialmente de ferramentas eletrônicas, têm se reportado como estratégia pedagógica potencializadora para esse processo de ensino e aprendizagem.
As tecnologias permitem a abordagem de questões complexas inerentes ao adolescer, tornando os indivíduos protagonistas para o reconhecimento de suas vulnerabilidades em saúde. Além disso, concebe-se que há necessidade do desenvolvimento desses materiais no ambiente familiar, pois essa estratégia possibilita o diálogo e a (re) produção de saberes entre ambas as partes (Dourado et al, 2021).
Moura et al, (2023) explicitam que o investimento nos primeiros anos de vida é crucial para o desenvolvimento humano. Assim, afirmam que as intervenções coletivas que consideraram a intergeracionalidade, criando espaços físicos e psíquicos de brincar e de produção de vida e os mecanismos utilizados para o favorecimento de famílias e comunidades na construção de hortas sustentáveis são potentes no desenvolvimento do cuidado. Em relação às ações intersectoriais, apresentaram-se as palestras, as campanhas, o Programa Saúde na Escola, os projetos e as ações desenvolvidas pelo Centro Municipal de Educação Infantil.
6.Considerações Finais
A análise temática auxiliou na classificação dos resultados da revisão integrativa, revelando que a abordagem familiar, internacionalmente, ocorre, preponderantemente, por meio de formação / educação em saúde do sujeito e ou cuidadores.
Em nosso país, a educação em saúde é concebida como instrumento para promover o cuidado às necessidades individuais e ou coletivas.
Percebe-se que, ao realizar a revisão da literatura com os descritores e bases de dados utilizados neste trabalho, houve predomínio de literatura internacional. Sinaliza-se que há necessidade de se investir mais fortemente em pesquisas primárias para reconhecer, compreender e avaliar como as eSF têm desenvolvido suas práticas com as famílias, no Brasil. Além disso, reconhecer os determinantes de como tem ocorrido a formação inicial e em serviço dos profissionais sobre a abordagem familiar também pode colaborar para que essa prática possa ser melhor utilizada na APS.