1.Introdução
A pandemia Covid-19 trouxe diversos desafios a nível económico e laboral (e.g., com o encerramento de negócios e o aumento do desemprego), social (e.g., com o distanciamento social e aumento de problemas de saúde mental) e organizacional (e.g., diminuição da motivação dos trabalhadores, aumento da carga de trabalho (Azizi et al., 2022).
Dado o impacto da Covid-19, as organizações tiveram de adotar estratégias para garantir o seu funcionamento, mas também a saúde e bem-estar dos trabalhadores. Em Portugal, enquanto algumas medidas, impulsionadas pelo Governo, promoviam a segurança pública, como a obrigatoriedade do teletrabalho em estado de emergência (Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril; Mamede et al., 2020), outras, como o lay-off simplificado (Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março), tentavam minimizar os impactos económicos da pandemia. Algumas medidas foram ainda direcionadas para grupos específicos, como, por exemplo, para trabalhadores que necessitavam de acompanhar filhos com menos de 12 anos ou, independentemente da idade, com doença crónica ou deficiência, devido à suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais (Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março).
A comunidade científica rapidamente procurou perceber a forma como a pandemia afetava o mundo do trabalho, nomeadamente em Portugal. Percebeu-se que as organizações elaboraram e implementaram medidas adaptadas às suas características, onde o papel dos Recursos Humanos (RH) se revelou essencial. Além das estratégias orientadas para a segurança e higiene (Cirrincione et al., 2020), na comunicação também surgiram algumas mudanças (Gonçalves et al., 2021), nomeadamente a sua intensificação e diversificação das formas de comunicação, o reforço de reuniões com e entre trabalhadores, e ainda, o recurso a mensagens de apoio e otimismo (Brandão et al., 2021). Outras estratégias passaram pelo desenvolvimento das competências de coping dos trabalhadores, a (re)definição da estratégia da organização e a associação com outras organizações (Brandão et al., 2021).
De sublinhar o papel que os RH assumiram como gestores da crise pandémica (Brandão et al., 2021) e a preocupação das organizações com a saúde, o bem-estar, envolvimento e a moral dos trabalhadores (Brandão et al., 2021; Nutsubidze & Schmidt, 2021). Também os líderes tiveram um papel importante no apoio às equipas, quando mostravam compreensão face aos desafios vividos na gestão do conflito trabalho-vida familiar, e intensificavam momentos de ponto de situação em equipa e individualmente com cada trabalhador (Syrek et al., 2022).
Apesar de alguma literatura caracterizar como é que as organizações portuguesas se ajustaram à pandemia (e.g., Veloso et al., 2023), importa aprofundar esse conhecimento. Esse conhecimento revela-se particularmente relevante quando se consideram as características do mundo em que nos encontramos e que alguns denominam de mundo BANI1.
Este artigo apresenta um recorte do projeto "Trabalho e Género em Tempos de Covid-19: A Perspetiva dos Trabalhadores e das Organizações", que visava explorar o impacto da Covid-19 na vida profissional e pessoal dos trabalhadores portugueses.
Um dos objetivos específicos do projeto era a identificação de práticas para lidar com os constrangimentos do impacto da crise da Covid-19 no equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, incluindo estratégias, recomendações e práticas que apoiassem o desenvolvimento de Guias de Boas Práticas para trabalhadores e organizações2 (especificamente para Gestores de RH e Líderes). Neste artigo focam-se os dados recolhidos de forma a concretizar este objetivo específico.
2.Método
2.1 Desenho do Estudo
Foi realizado um estudo transversal qualitativo descritivo (Creswell, 2013). Associado ao objetivo do estudo, definiram-se as seguintes questões de investigação (QI): (1) Qual o impacto da Covid-19 no mundo de trabalho? e (2) Quais as práticas (medidas/estratégias) adotadas para se fazer face a esse impacto?
O estudo foi aprovado pelo Comité de Ética da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (2020/07-10b).
2.2 Participantes
Considerando o objetivo definido e a importância de aceder à perspetiva de grupos relevantes para o tema, operacionalizou-se um processo de amostragem intencional, acedendo às perceções de três grupos: profissionais de Gestão de Recursos Humanos (GRH), especialistas de áreas relevantes sobre as vivências profissionais com a pandemia Covid-19 (e.g., especialistas em Psicologia das Organizações e do Trabalho) e representantes de entidades públicas e da sociedade civil portuguesa nas áreas do trabalho e do género. Assim, a amostra é composta por 18 participantes, dos quais 10 GRH, cinco especialistas e três representantes de entidades. Todos são portugueses e a maioria do sexo feminino (n = 15), com idade entre os 33 e 65 anos (média de 50.7 anos). Todos possuem formação na área de ciências sociais (Direito, Psicologia, Recursos Humanos, Ciências da Educação, Sociologia e Economia), exceto um participante, da área STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Em apêndice, apresenta-se informação mais detalhada sobre os participantes.
2.3 Instrumentos de Recolha de Dados
Para a recolha de dados foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, sendo elaborados dois guiões de entrevista - um direcionado para GRH e outro para especialistas e entidades. A estrutura dos guiões foi discutida e validada pela equipa de investigação.
O guião para GRH contempla questões sobre: (a) o impacto da pandemia na organização, (b) a função dos Recursos Humanos durante a Covid-19, (c) as mudanças na organização do trabalho (e.g., estratégias usadas e sua adaptação), (d) a comunicação na organização, (e) a conciliação trabalho-família e (f) boas práticas e recomendações. Já o guião para especialistas e entidades engloba: (a) a adaptação às novas formas de trabalho, (b) a conciliação trabalho-família, (c) as desigualdades (e.g., género, idade) e (d) boas práticas e recomendações. A principal diferença entre os guiões é que o guião de GRH se direciona para a organização do participante, enquanto o guião de especialistas e entidades foca-se nos trabalhadores de um modo geral.
2.4 Procedimentos de recolha
A equipa identificou possíveis entrevistados nos grupos relevantes para o estudo recorrendo à sua rede de contactos e a contactos institucionais. Os dados foram recolhidos em novembro de 2020. As entrevistas decorreram de forma síncrona, via online, que se refletiu numa duração total de gravação de 15:57:31 e numa média de 00:53:12 por entrevista. No início de cada entrevista foi apresentado o consentimento informado e no final do guião feito um debriefing sobre o projeto no qual este recorte estava integrado.
2.5 Técnicas de Análise de Dados
As entrevistas foram transcritas e validadas, garantindo a qualidade da informação recolhida. Os dados foram analisados à luz da análise de conteúdo categorial temática segundo Bardin (2011), operacionalizando-se as três fases preconizadas pela autora: (1) Pré-análise, (2) Exploração do material e (3) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Para a gestão dos dados usou-se o NVivo® (QSR).
Na fase de pré-análise, a leitura, flutuante e independente, pelas investigadoras permitiu constituir o corpus de análise, composto pelo conteúdo das 18 entrevistas que permitiam concretizar o objetivo do estudo. Foram elaboradas categorias de forma indutiva, com base no guião de entrevista e nos dados recolhidos. Adotou-se como índice o tema e indicador selecionado foi a frequência do mesmo.
Na fase de exploração codificou-se o material recolhido, aplicando-se as regras de codificação e enumeração definidas na fase anterior. A nível da qualidade das inferências, consideraram-se os procedimentos sugeridos por Bardin (2011), em termos de homogeneidade interna das categorias, pertinência para a investigação e objetividade e confiabilidade. Todas as categorias possuem uma definição operacional, tendo o sistema de categorias sido discutido entre duas investigadoras, considerando-se o material codificado. Relativamente à exclusão mútua, percebeu-se que algumas categorias pertenciam inevitavelmente a duas categorias (e.g., uma estratégia simultaneamente de comunicação e de higiene e segurança), pelo que não foi adotada.
Na última fase, os resultados foram submetidos a um tratamento estatístico que permitiu a representação simplificada dos dados (ou seja, tabelas, figuras, diagramas) e interpretações sobre as questões de investigação foram feitas.
3.Resultados
De seguida, apresentam-se os resultados, organizados por Questões de Investigação, recorrendo a excertos do discurso dos participantes, de forma a concretizar as ideias apresentadas, e identificando-se o grupo em que se inserem os participantes (e.g., ENT representa as Entidades).
3.1 Impacto da Covid-19 no mundo do trabalho (QI1)
Ao nível do mundo do trabalho, o impacto da Covid-19 foi situado a vários níveis (ver Figura 1): (a) no trabalho (n = 18), (b) na saúde e bem-estar (n = 18), (c) na conciliação (n = 15), bem como (d) a nível económico e laboral (n = 10).
Ao nível do impacto (a) no trabalho, deu-se, nomeadamente, na carga de trabalho (e.g., “[houve] quase suspensão total da nossa atividade [no setor dos transportes]. […] Por outro lado, toda a nossa área de relação com o cliente teve um boom brutal - P01_RH) e na produtividade/motivação (e.g., "O que eu senti é uma queda de produtividade, e isso confesso que me assustou um pouco porque, o cidadão, o nosso cliente precisa de nós” - P03_RH).
Por sua vez, na saúde e bem-estar, observou-se um agravamento da ansiedade dos trabalhadores (e.g., “a preocupação de não poder trabalhar por estarem doentes, e […] transmitir […] às pessoas mais frágeis da família” - P11_ESP). Já na conciliação, houve sobretudo um agravamento da mesma, apesar das possíveis melhorias a populações específicas (e.g., “deve haver situações completamente opostas. Acho que há pessoas que provavelmente melhoraram muitíssimo o seu grau de capacidade de conciliação […] Se calhar pessoas que não têm filhos ou idosos a cargo […]. Acho que provavelmente na maioria dos casos no feminino […] elas trabalham mais em casa do que eles, infelizmente, e isso é algo que ainda não mudou […]. Aquilo que provavelmente piorou é o desaparecimento praticamente total das balizas entre tempo de trabalho e tempo de lazer […] [dado que a] digitalização é um risco.” - P13_ENT). Por fim, o impacto a nível económico e laboral, que se refletiu num empobrecimento generalizado (e.g., “instituições que […] ao fim do ano têm apresentado milhões de euros de lucros […] dispensaram […] colaboradores e colaboradoras […] e isto […] para uma família é uma tragédia […]. [Houve um] empobrecimento da economia portuguesa muito grande [e as] pequenas empresas […] não podiam comportar a situação” - P05_ENT).
3.2 Práticas adotadas pelas organizações para fazer face ao impacto da Covid-19 (QI2)
Como forma de minimizar ou eliminar o impacto da Covid-19, as organizações adotaram diversas medidas, cuja implementação por vezes encontrou obstáculos (ver Figura 2). As medidas mais referidas foram ao nível de (a) higiene e segurança no trabalho (n = 18), (b) adaptação ao teletrabalho (n = 15), (c) conciliação (n = 14), e (d) comunicação (n = 12).
Ao nível da higiene e segurança no trabalho destaca-se a elaboração ou revisão de planos de contingência (e.g., “nós tínhamos tido um plano de contingência, portanto, que é obrigatório no nosso setor [...], mas mesmo esse plano de contingência foi rapidamente ultrapassado” - P06_RH), o “recurso ao teletrabalho” (P16_ESP), a adoção de medidas de proteção individual, controlo e higienização (e.g., “o distanciamento e a higienização dos espaços” [P15_EN]; sistemas de controlo da quantidade de pessoas como “o atendimento [...] [ser] só uma pessoa de cada vez” [P06_RH]; a “paragem das operações” [P07_RH] ou suspensão de serviços), e ainda o uso de “sinalética interna, como um lembrete” (P18_RH) para a adoção das regras de higiene e segurança na organização.
Neste processo, as organizações seguiram as orientações do Governo, embora a adoção das medidas de higiene e segurança, tenha sido, em alguns casos, assegurada por uma equipa, muitas vezes criada especificamente para a Covid-19 (e.g., “temos uma equipa também de crisis management [que] são acionadas quando existe algum tipo de crise [...] [e] com base nas recomendações do governo, estas equipas de crise têm-se reunido, tomado as decisões mais globais e depois têm sido trabalhados os planos ao nível das funções mais operacionais” - P08_RH). Estas medidas foram avaliadas como eficazes não só pela “prova real [de] que realmente as medidas surtiram efeito, porque nunca ninguém foi infetado” (P03_RH), bem como pela “segurança” (P18_RH) e “tranquilidade” (P03_RH) transmitida aos trabalhadores pela “resposta rápida e eficaz [dos RH] a tudo aquilo que eram [as suas] preocupações pessoais” (P04_RH).
A adaptação ao teletrabalho foi também destacada (ver Figura 3), com referências sobretudo à adaptação tecnológica, na medida em que houve um maior uso dos “meios de comunicação à distância, formais e informais” (P17_ESP), o que requereu “ensinar a trabalhar com tecnologias” (P01_RH), "conferir os acessos remotos a toda a gente e num curto espaço de tempo” (P06_RH) e disponibilizar “equipamentos para permitir, e potenciar, e capitalizar o teletrabalho” (P18_RH). Além dos constrangimentos de tempo e de equipamento, na adaptação ao teletrabalho também existiram “constrangimentos económico-financeiros que [...] limit[ar]am [...] a margem de intervenção" (P04_RH) dos RH, para além da necessidade de digitalizar os processos de RH, sobretudo a formação (e.g., a “passagem da formação mais tradicional para uma formação mais digital foi muitíssimo interessante, muito positiva” - P01_RH).
A adaptação ao teletrabalho também se deu a nível do controlo exercido sobre os trabalhadores.
Algumas organizações adotaram mecanismos de controlo (e.g., “havia empresas que pediam calls a toda a hora para confirmar [a presença] [...] [dada a] falta de confiança, e do medo que a pessoa não estivesse a trabalhar” [P11_ESP] e pela necessidade de haver um “efetivo controlo da produtividade” [P06_RH]), definindo, por isso, regras do teletrabalho (e.g., “começámos a definir algumas regras para que as pessoas se apercebessem que é uma realidade diferente, com a qual temos de trabalhar, mas também não podemos [...] esquecer que o cidadão precisa de nós” - P03_RH). Outras optaram por mecanismos de monitorização através da recolha de dados (e.g., inquéritos internos, feitos pelos RH ou por especialistas), orientando as suas ações para o bem-estar dos trabalhadores (e.g., “fizemos um inquérito também, a perguntar se as pessoas tinham condições em casa [...] [e mais recentemente] perguntámos às pessoas como é que gostavam que fosse o futuro. Então a maioria das pessoas disse que gostava de vir a empresa apenas um dia ou dois dias por semana” - P08_RH). Enquanto os mecanismos de controlo constituíram “mais um stressor, com efeitos muito negativos para a vida das pessoas” (P14_ESP), os de monitorização tiveram um impacto positivo, sendo “muito bem recebido[s]” (P14_ESP) pelos trabalhadores.
Na adaptação ao teletrabalho também foi referido o papel “importante [...] [da] equipa [...], [d]os colegas" (P14_ESP), bem como o dos líderes que “estavam a tentar preparar tudo para que as suas equipas funcionassem […] e se adaptassem da melhor maneira possível” (P14_ESP).
Dado que “as próprias chefias não tinham formação para este funcionamento à distância e para estas condicionantes que os trabalhadores passaram a ter” (P14_ESP), houve necessidade de “ensinar os líderes a serem [...] líderes digitais” (P01_RH), através de “formação [...] sobre liderança remota” (P02_RH) ou da partilha de um “manual [sobre como] dirigir equipas em teletrabalho” (P06_RH).
Relativamente à conciliação, a medida mais frequentemente adotada foi a de disponibilizar recursos e apoio a trabalhadores sobretudo a nível do trabalho a partir de casa (e.g., espaço e horários de trabalho, conciliação trabalho-família, saúde e bem-estar), mas também da gestão emocional (e.g., ansiedade) e dos conflitos familiares (e.g., conjugal) (“fizemos workshops de como trabalhar a partir de casa, como criar o seu próprio espaço de trabalho [...] também divulgámos algum material interno de como gerir os filhos em casa, como gerir as birras, os conflitos, como gerir os horários, apoiámo-nos em documentação da Ordem dos Psicólogos e divulgamos aqui aos colaboradores” - P02_RH). Para tal, as organizações, por exemplo, convidaram “pessoas para fazer pequenas ações de formação, palestras” (P01_RH), desenvolveram “um protocolo com psicólogos” (P02_RH), partilharam “manual de boas práticas” (P08_RH) baseadas em entidades de saúde, como a “Ordem dos Psicólogos” (P02_RH) e a “Direção-Geral de Saúde” (P03_RH), e disponibilizaram “atividades digitais, de meditação e [desporto]” (P08_RH), entre outras medidas. A “preocupação em passar informação” (P06_RH) foi bem recebida, tendo havido “muito bom feedback” (P08_RH) por parte dos trabalhadores. Além da partilha destes recursos “nos canais mais formais da própria empresa [...] nas redes sociais […] desenvolveram-se grupos nalgumas empresas de apoio às pessoas estar em casa” (P14_ESP).
A flexibilidade de horário e de local de trabalho, onde a “entrega de projetos e objetivos é que importa” (P02_RH), também possibilitou “a conciliação da sua vida pessoal, profissional e familiar” (P03_RH), sendo que “foi bem aceite” (P04_RH) e “ajudou muito as pessoas não sentirem aquele peso de consciência e, portanto, a empresa procurou ter um papel aí importante e relevante nisso” (P02_RH). Se, por um lado, a flexibilização de horário facilitou a conciliação dos trabalhadores “enquanto as [suas] crianças não iam à escola” (P02_RH), a flexibilidade relativamente ao local de trabalho (i.e., os trabalhadores “não tem que estar a trabalhar em casa, [...] [basta] um espaço que tenha condições para esse efeito” - P02_RH), facilitou a conciliação para os trabalhadores-deslocados. Note-se que, por vezes, esta flexibilidade foi considerada como uma estratégia ineficaz, por ser “difícil manter alguma proficiência de desempenho” (P04_RH), o que implicou aos RH ir “gerindo, acompanhando, e quando houvesse necessidade, intervir [...] [face a] comportamentos abusivos” (P07_RH).
O respeito pelos horários de trabalho foi outra estratégia, incluindo “o horário das refeições” (P03_RH) dos trabalhadores. Este respeito foi incentivado pela organização para “trabalhar com as pessoas neste sentido de se autogerirem [...] [porque] os próprios colaboradores acaba[va]m por [...] [se] esquecer [...], [de] criar momentos de pausa ou momentos de descanso […] [como o] almoço.” (P02_RH). Apesar destes esforços, percebe-se que a nível da conciliação terá havido diferenças em função do setor: “a administração pública tem sido do mais rígido que existe” (P12_ESP).
Por fim, ao nível da comunicação, de um modo geral, houve um aumento da frequência de contacto e da criação de canais de comunicação, formais e informais, dos RH para os trabalhadores, mas também dos líderes para os membros da equipa com o objetivo de, maioritariamente, informar os trabalhadores, esclarecer as suas dúvidas e orientá-los em termos de procedimentos, o que também implicou uma sobrecarga de trabalho para os RH (“Nós [RH] temos um aumento do volume do trabalho brutal, com todas as questões de toda a gente a perguntar [...] e portanto, o nosso contributo foi sobretudo esse, de informar e enquadrar, de elaborar orientações que depois eram enviadas para que as pessoas pudessem saber mais ou menos com é que se contava, quais eram os procedimentos durante aquela situação” - P09_RH). Outro objetivo foi o de motivar e sensibilizar os trabalhadores (“a elaborar um conjunto de comunicações regulares, sensibilizadoras, motivacionais também, por vezes a agradecer o facto de obviamente estarmos em casa, mas estarmos juntos” - P18_RH), promovendo o “sentimento de pertença e união” (P06_RH).
Note-se, contudo, ainda a necessidade de criar canais para informar sobre a situação pandémica dentro da organização (“as empresas arranjaram formas, por exemplo, de difundir informação sobre a pandemia, sobre como é que a empresa que estava a lidar, como é que as pessoas se estavam a sentir, portanto, tudo o que foi informação, diria eu, tranquilizadora” - P14_ESP) e de informar e sensibilizar para a adoção de medidas de higiene com trabalhadores e clientes (“as medidas de higienização foi um trabalho progressivo […] passou pela sensibilização” - P08_RH). Este "estreitamento da comunicação [...] foi uma coisa muitíssimo interessante” (P01_RH), tendo os trabalhadores “aprecia[do] o gesto e o cuidado” da organização” (P18_RH). Estas medidas foram de extrema importância considerando a “incerteza e instabilidade [...] trazida pela comunicação social” (P14_ESP) e a “desinformação [vinda] de fora [da organização]” (P08_RH).
Toda esta “comunicação to all, [foi] muito feita através de e-mail ou com recurso a vídeos, [...] [e] em comunicação física, presencial nos locais” (P18_RH), mas também por “SMS, WhatsApps, [...] por telefone [...] e em live chat [...] [e através] de FAQs” (P01_RH) e de plataformas colaborativas internas (e.g., Teams, SharePoint). Apesar da tentativa de “informar individualmente [os trabalhadores], [...] teve que haver orientações de serviço que eram enviadas para os dirigentes, e que davam conhecimento aos seus colaboradores, porque senão era impossível gerir isto de outra forma” (P09_RH). Assim, os canais de comunicação possibilitaram também uma comunicação bilateral, com os líderes a mediar alguma da comunicação unilateral. Alguns participantes de RH salientaram ainda a transparência e objetividade desta comunicação (“temos um canal que é muito ativo [sobre] a evolução da pandemia, [de forma] clara e objetiva para todas as pessoas, na língua de cada um, e isso também é transparência.” - P07_RH).
Considerando o impacto da Covid-19 na saúde e bem-estar, as organizações também promoveram momentos de acompanhamento com os trabalhadores para garantir a sua “segurança física e [...] psicológica” (P02_RH), quer através dos RH, quer através dos líderes (e.g., “Nós, recursos humanos, passámos a fazer um acompanhamento mais próximo ainda, com reuniões individuais com todos os colaboradores [...] Foi muito bom porque ao princípio [...] as pessoas estavam mais nervosas, ansiosas, e isso foi muito importante para serenar.” - P02_RH).
Por outro lado, as organizações também promoveram momentos de partilha e convívio (e.g., momento diário de partilha, no início ou final do dia, entre todos os elementos de equipa; eventos online da organização) com o intuito de promover “a união, a coesão e o espírito da equipa, [...] [e] a cultura da empresa” (P02_RH) (e.g., “mantivemos também algumas iniciativas internas também de manter um contato, e uma proximidade que são valores muito presentes dentro da organização" - P18_RH). Assim, com a Covid-19, “houve um aumento brutal da humanização nas organizações” (P01_RH).
4.Discussão
Este estudo teve como objetivo identificar o impacto da Covid-19 nas organizações e as estratégias adotadas para minimizar esse impacto. Primeiramente, os resultados apontam que o impacto da pandemia se estendeu a nível do trabalho, económico e laboral, da conciliação, e da saúde e bem-estar. Alguns destes impactos foram, entretanto, identificados na literatura (e.g., Andrade & Lousã, 2021; Azizi et al., 2022).
Ademais, de um modo geral, muitas das práticas propostas por Vnoučková (2020) foram mencionadas pelos participantes deste estudo. Considerando o risco da Covid-19 para a saúde, a implementação de medidas de higiene e segurança nas organizações foi necessária e fulcral para combater a propagação do vírus, medidas estas também encontradas no estudo de Gonçalves et al. (2021). Nestas estratégias inclui-se a adoção do teletrabalho, que, durante o estado de emergência, foi obrigatório (Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril; Mamede et al., 2020), para funções compatíveis com o teletrabalho e para trabalhadores cujas situações pessoais (e.g., ter filhos menores que 12 anos) o permitia (Andrade & Lousã, 2021). Consequentemente, as organizações tiveram de elaborar medidas de adaptação ao teletrabalho, particularmente no que concerne o uso tecnológico e a sua adaptação (e.g., através de formação, inclusive de liderança remota), mas também relativamente aos mecanismos de maior ou menor controlo de horários (Vnoučková, 2020) e de produtividade dos trabalhadores.
Dada a elevada perceção de conflito entre trabalho e família durante o teletrabalho obrigatório no primeiro confinamento em Portugal (Andrade & Lousã, 2021), compreende-se a necessidade de as organizações adotarem medidas de conciliação. Estas medidas, que também visaram o bem-estar dos trabalhadores, concretizaram-se na disponibilização de recursos e apoio aos trabalhadores, na flexibilidade de horário e local de trabalho e, ainda, no respeito pelos horários de trabalho e de descanso. Com o intuito de também minimizar a ansiedade e a insegurança (Azizi et al., 2022) sentidas pelos trabalhadores, foram mencionadas medidas de comunicação que visavam, por um lado, informar e esclarecer os trabalhadores, mas também motivá-los. Estas estratégias de comunicação foram semelhantes às encontradas por Brandão et al. (2021), refletindo um aumento da comunicação interna nas organizações (Brandão et al., 2021; Gonçalves et al., 2021), mas também a preocupação em estabelecer uma comunicação transparente (Nutsubidze & Schmidt, 2021).
Já outras medidas adotadas pela organização, como as medidas de proteção laboral e a rotatividade das equipas de trabalho, foram impulsionadas pelo Governo (Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março; XXII Governo - República Portuguesa, 2020), embora as organizações as tivessem adaptado às suas características.
Considerando que certas funções, como as técnicas e as operacionais (e.g., nos setores da saúde e da produção), não são compatíveis com o teletrabalho, as organizações implementaram igualmente medidas de adaptação ao trabalho presencial. Já as medidas de compensação e benefícios tiveram como objetivo minimizar o impacto económico da Covid-19 (Azizi et al., 2022), mas também motivar os trabalhadores (Nutsubidze & Schmidt, 2021). Por fim, as medidas de responsabilidade social foram adotadas como resposta ao impacto social da Covid-19 (Azizi et al., 2022).
De um modo geral, os resultados apontam que os RH assumiram a responsabilidade pela maioria das estratégias adotadas, sobretudo ao nível da adaptação ao teletrabalho e da conciliação. O papel transversal dos líderes na implementação destas estratégias também é de ressalvar, nomeadamente: na sensibilização para as medidas de higiene e segurança, na adaptação ao teletrabalho e ao trabalho presencial (i.e., estarem presentes mesmo que não fosse necessário), no acompanhamento dos trabalhadores e no controlo do seu trabalho, percebendo-se a importância de comportamentos de liderança transformacional (e.g., liderar pelo exemplo, motivar; Bass, 1996). Note-se, ainda, o papel dos líderes como mediadores da intervenção dos RH (e.g., nas medidas de comunicação e de proteção laboral), percebendo-se uma atuação em parceria.
Este estudo permitiu caracterizar as medidas adotadas pelas organizações em Portugal, do ponto de vista de diferentes stakeholders, para atenuar o impacto da Covid-19 a nível laboral, económico e organizacional, bem como na saúde e bem-estar dos trabalhadores. Esta síntese de estratégias, por um lado, traduz um recurso comparativo para os profissionais de RH face àquilo que foi a sua intervenção em tempo de Covid-19 e, por outro, contribui para o conhecimento científico do impacto da pandemia no mundo organizacional. Este estudo também contempla limitações, sendo elas: o processo intencional da amostragem, baseado na rede de contacto das investigadoras, e o número reduzido de participantes dos grupos de especialistas e de representantes de entidades públicas e da sociedade civil portuguesa.
As organizações adaptaram-se de forma rápida à pandemia, procurando assegurar o negócio e o trabalho aos seus trabalhadores (e.g., Brandão et al., 2021), ao mesmo tempo que o mundo do trabalho se torna cada vez mais remoto e flexível, transformado pelo uso das novas tecnologias (De Lucas Ancillo et al., 2021; Gonçalves et al., 2021; Nutsubidze & Schmidt, 2021; Vnoučková, 2020). Não obstante tais mudanças, é necessário haver compatibilidade entre as novas formas de trabalho e os valores, visão e cultura da organização, bem como dos seus processos de RH (e.g., mecanismos de recompensa, avaliação de desempenho; De Lucas Ancillo et al., 2021). Também na (re)definição do trabalho remoto e redesenho dos postos de trabalho é importante considerar as características e necessidades de cada trabalhador, como ressalvado neste e noutros estudos (e.g., Azizi et al., 2021).