1.Introdução
A violência doméstica configura-se como qualquer ato ou omissão relacionado ao gênero, por ser uma expressão de desigualdade, que resulta em lesões, sofrimento físico, psicológico ou sexual, morte e dano moral ou patrimonial no ambiente doméstico, na esfera familiar ou em qualquer relação íntima de afeto na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a mulher, independentemente da moradia em comum (Brasil, 2011).
As desigualdades de gênero devem ser levadas em consideração como um determinante de saúde para a formulação de políticas públicas. Historicamente a diferenciação de poder entre homens e mulheres influencia fortemente nas condições de saúde da mulher (Brasil, 2011a). Sendo discutido internacionalmente em que no de 2015 na Assembleia Geral das Nações Unidas foi adotada até 2030 na Agenda de Desenvolvimento Sustentável, a qual inclui os 17 objetivos a promoção da igualdade de gênero como meio de empoderar todas as mulheres e meninas (United Nations, 2022).
A Rede de enfrentamento à violência contra a mulher faz parte da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, criada em 2004, que articula instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, para o desenvolvimento de estratégias de prevenção e de políticas para o empoderamento e autonomia das mulheres. É um conjunto de ações e serviços diversos, com ênfase nos setores da assistência social, da justiça, da segurança pública e da saúde, com o objetivo de ampliar e realizar atendimentos, identificar e encaminhar as mulheres em situação de violência (Brasil, 2011).
Conhecer as dificuldades dos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) de um município brasileiro sobre o funcionamento de um fluxo de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica instituído na de saúde. O objetivo foi compreender a percepção de profissionais da saúde sobre o atendimento às mulheres em situação de violência doméstica.
2.Método
Pesquisa exploratória de natureza qualitativa, seguindo os critérios do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) (Tong et al., 2007). Desenvolvida em uma Unidade de Saúde da Família (USF) no município de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil.
Utilizou-se uma entrevista, roteiro semiestruturado composto por duas perguntas norteadoras: Como ocorre o fluxograma de atendimento das mulheres em situação de violência doméstica aqui na sua USF? E quais as dificuldades em relação ao uso do fluxograma? Os dados foram coletados em agosto/2023. Como critério de exclusão profissionais com menos de três meses de trabalho na USF. Todo o processo foi gravado e transcrito literalmente. Para se respeitar o anonimato foram atribuídos um código pela letra P, seguido do número arábico (P1 = participante 1).
A análise de dados foi realizada seguindo (Bardin, 1977 a análise de conteúdo através da categorização em eixos temáticos cujas fases consistiram em: pré-análise, definição de Corpus, leitura flutuante, referenciação dos documentos, codificação, categorização, enumeração, inferências e interpretação).
3.Resultados e Discussão
Participaram 20 profissionais de saúde: sendo 16 mulheres, com idade média de 31,1 anos, sendo 7 enfermeiros, 6 médicos, 3 psicólogos, 3 dentistas e 1 assistente social. Em média, 4 pessoas tinham pelo menos 1 especialização ou mais, com tempo de serviço entre 5 meses e 1 ano. A coleta de dados foi realizada em dois encontros com participantes distintos (10 em cada), com duração de 1 hora cada. A partir dos excertos obtidos nas oficinas, emergiram três categorias:
3.1 Desconhecimento sobre como lidar e de fluxo existente no município
Estudo que analisou a situação da violência doméstica contra à mulher na cidade de Campo Grande/Mato Grosso do Sul, mostrou que 11.084 casos de lesões corporais foram notificados de 2010 a 2014, e que o tipo de violência mais frequente foi a lesão corporal, e atinge mulheres com mais de 25 anos e pardas, acontecendo aos finais de semana, período noturno. Embora os bairros mais violentos sejam os mais distantes, chama atenção o fato de que detém unidades de rede de apoio social e de tratamento de saúde (Schultz et al., 2021).
Entretanto, os participantes da presente pesquisa expressaram não terem trabalhado diretamente com casos de violência doméstica, revelando falta de experiência prática e/ou limitação em apreender esta problemática, emergindo a sensação de impotência pela falta de conhecimento e os desafios enfrentados.
Eu nunca atendi não, mas eu acho que o fluxo é encaminhar para o serviço social para orientar, denunciar, fazer a notificação. (P5)
Como eu nunca peguei um caso assim, eu imagino que quando eu for atender uma mulher em situação de violência ou abuso sexual, na hora eu falaria: Meu Deus e agora! [...] Não, eu não conheço o fluxograma. (P16)
Estudo que avaliou prontuários de 19 serviços de saúde mostrou que em apenas 3,8% houve algum registro de violência, evidenciando a significativa dificuldade dos profissionais em lidar com o tema como parte integrante do atendimento em saúde (Schraiber et al., 2007). Em outro estudo, 80% dos profissionais nunca realizaram atendimento de violência contra a mulher (Fusquine, Souza e Chagas, 2021).
Os profissionais dependem do serviço social nos casos de violência doméstica e a busca por orientação nesse setor sugere a falta de conhecimento consolidado enfatizando a importância de uma abordagem multidisciplinar.
Vou notificar e depois quem eu devo chamar, mas eu chamo a assistente social primeiro ou eu chamo a psicóloga? (P6)
Eu particularmente tenho muita dúvida nessa área, no final das contas eu me apoiaria no serviço social. (P13)
Eu já atendi alguns casos com a assistente social, daí fica mais completo o atendimento. E geralmente eles sabem direcionar onde essa mulher vai buscar apoio além daquilo que a gente sabe. (P12)
A violência requer intervenção integral, com a perspectiva do tratamento de suas consequências, tanto quanto da abordagem específica do setor saúde em relação ao problema em si. Tendo um escopo interdisciplinar, caracterizando atendimento multiprofissional e intersetorial, incluindo a mulher na decisão do seu próprio cuidado (D’Oliveira et al., 2009).
O reconhecimento explícito da inexistência de um fluxograma ou protocolo definido para lidar com casos de violência doméstica foi uma observação recorrente, ocasionando confusão quanto a sequência do atendimento pelos profissionais e até mesmo preocupação e insegurança com a sensação de impotência nas condutas.
Mas eu não sei te dizer, a gente não costuma lidar na unidade. Puericultura, atendimento a gestante esses a gente sabe que tem e segue o fluxograma. (P8)
Na verdade, não tem fluxograma. (P6)
Não sei, como funcionaria, se eu poderia ligar para a polícia, se eu já a encaminho para a Casa da Mulher. Como é que eu faço? Eu não gostaria de dispensar ela para voltar para a casa dela sem uma resposta. (P7)
D’Oliveira et al. (2009) referem que a violência deve ser traduzida como um objeto de trabalho para intervenções e ações para os profissionais de saúde, com o propósito de definir instrumentos materiais e conhecimentos para a produção de fluxos, atividades e protocolos, assim como a articulação entre os profissionais da equipe. Estudo de Carneiro et al. (2022) com profissionais da APS, mencionou critérios de encaminhamento baseados em fluxogramas, condutas ou protocolos preestabelecidos, resultando em atendimentos de mulheres que dependiam da experiência e empenho de profissionais sem a devida padronização.
Se não me engano a ficha de notificação compulsória é em até 24h e tem que estar no Distrito Sanitário. Mas qual é a realidade? A gente consegue enviar em 24h? Eles vêm buscar quantas vezes por semana aqui? Se vem buscar uma vez, como em 24h vai estar lá? Quais os fluxos para chegar no Distrito? Para poder ser atendido o mais rápido? (P8)
Na verdade, quem fez o atendimento tem que preencher e tem um caderninho na gerência que a gente coloca a data que foi preenchida a notificação e o Distrito pega na semana. (P4)
Mas eu acho que essa subnotificação parte um pouco pela gente, porque a notificação não é só feita quando é confirmada, porque já é suspeita, deve ser feita a notificação, o que a gente deixa de fazer muitas vezes. (P9)
A ficha de notificação compulsória trouxe questionamentos aos profissionais quanto ao tempo de notificar, mencionado por alguns em 24 horas e outros semanalmente. Mencionaram a responsabilidade da notificação, sendo que alguns encaminham para o assistente social preencher, enquanto uns tomam como responsabilidade de quem realizou o atendimento. Trouxeram à tona a discussão sobre a confirmação ou suspeita de violência para notificar, indicando a subnotificação de casos não notificados.
A violência doméstica e/ou outras violências têm a periodicidade semanal e a violência sexual e tentativa de suicídio têm periodicidade de 24 horas para notificação à Secretaria Municipal de Saúde, sendo obrigatório o preenchimento aos profissionais de saúde ou responsáveis pelos serviços públicos ou privados que prestam assistência ao paciente (Brasil, 2003).
3.2Dificuldades no atendimento das mulheres vítimas de violência doméstica
Os profissionais destacam a complexidade de identificar casos de violência, apontando para a presença de situações ocultas que não são investigadas devido à falta de tempo ou abordagem durante consultas rápidas. A abordagem indireta, em que as vítimas inicialmente mencionam sintomas mascarados, dificulta o processo de identificação imediata. E a classificação da violência doméstica quanto a sua tipologia foi uma dificuldade apresentada.
Eu acho que têm muitos casos ocultos que não tem como investigar. Às vezes, na consulta corrida, a gente não questiona. (P9)
Para conseguir identificar, eu acho que não dá para saber, porque às vezes ela vem com uma queixa mascarada e para a gente chegar no ponto x leva um pouco de tempo. Difícil! Ela não chega falando: eu sofro agressão, ela não chega desse jeito, eu tenho certeza, ela chega falando que estão com dor em algum lugar, que não consegue dormir, que é ansiosa, depressiva, alguma coisa assim e você vai perguntando, investigando.” (P5)
Eu acho que a gente não vivencia pouco, eu acho que talvez a gente não saiba ou às vezes ela chega com outra demanda e não se sente à vontade o suficiente para poder entrar no assunto ou quando sente, geralmente, tem muito medo, tem medo de acontecer alguma coisa... (P8)
Essa violência é violência doméstica, violência física? (P10)
A identificação da violência é a primeira dificuldade dos profissionais, podendo ser desconsiderada como ocorrências de violência ou que o problema da violência é exterior à saúde. Há a preocupação dos profissionais de que a mulher não gosta ou se sente constrangida em relatar e esconder do profissional. O treinamento constante do profissional é favorável na detecção, pois as mulheres precisam e querem falar sobre a violência de forma que se sintam à vontade quanto a julgamentos, sigilo e privacidade. Diante da revelação, sentem temor, pois devem ser respeitadas pelo profissional, tornando o contato com o serviço seguro e sigiloso (D’Oliveira et al., 2009).
Os sintomas ditos como repetidos é um indicador de violência e alguns sintomas de natureza física e mental são critérios que estabelecem suspeitas: transtornos crônicos, vagos, repetidos; entrada tardia no pré-natal; infecção urinária de repetição sem causa secundária; dor pélvica crônica; depressão; ansiedade; lesões físicas que não se explicam como acidentes; ideação suicida, e outros sintomas (D’Oliveira et al., 2009).
As dificuldades na estrutura física da unidade de saúde são problematizadas, pois o acolhimento da mulher pode se tornar um atendimento e sem local apropriado como uma sala ou consultório para que o tema seja abordado; ou ainda o consultório de odontologia que diversas cadeiras e profissionais atuando no mesmo ambiente, sendo uma preocupação dos profissionais de odontologia e apontado como obstáculos na abordagem de casos sensíveis, como relatos de abuso. A configuração dos espaços de atendimento pode comprometer a privacidade e a confidencialidade, tornando difícil discutir tais assuntos de maneira aberta e segura.
No meu caso específico, o consultório é aberto, as cadeiras são uma do lado da outra, então casos de relato de abuso é difícil de acontecer, porque está todo mundo escutando o que está falando com o paciente... (P6)
[...] às vezes a estrutura, não tem nenhuma sala para atender a pessoa, são vários problemas. (P9)
Para mim a infraestrutura também atrapalha essa assistência. (P10)
D’Oliveira et al. (2009) enfatizam a importância de um ambiente com sala fechada para que os encontros sejam seguros e privativos, evitando que as mulheres sejam ouvidas por outros usuários, profissionais ou familiares. Villela et al. (2011) relatam a falta de estrutura física dos centros de saúde, delegacias e hospitais, o que influencia no constrangimento da mulher.
A sobrecarga da demanda de serviços é destacada como um fator que impacta na qualidade do atendimento. A dificuldade em acionar colegas para consultas compartilhadas e a limitação de recursos humanos afetam a capacidade de oferecer atenção adequada, principalmente em casos sensíveis como violência. Em contrapartida, há facilidade em acolher a paciente, mas a falta de vaga prejudica o atendimento.
[...] Então a gente tem dificuldade de acionar um colega para uma consulta compartilhada porque está sobrecarregada, não tem vaga [...], são várias coisas, às vezes a gente não consegue atender todo mundo da forma que deveria atender e acaba pecando no atendimento daquela pessoa, então eu acho que assim o RH é uma dificuldade. (P8)
É o caso da mulher [...] que veio com outra queixa e no meio da consulta ela começou a falar (da violência), mas eu tinha muito paciente esperando e então passei para a equipe de referência. Assim, às vezes durante uma consulta, ela vem e fala, mas se a gente não tiver um tempo, não tem como dar continuidade, porque às vezes a gente tem um monte de paciente esperando, a gente não pode deixar para depois, essa questão do tempo é um pouco complexo de resolver. (P9)
D’Oliveira et al. (2020) e Kind et al. (2013) descrevem a falta de tempo entrelaçado com a sobrecarga de trabalho que proveniente de metas assistenciais e prioridades de atenção, afirmam que o atendimento sobre violência demanda um tempo considerável. Garantir o acesso para as mulheres em situação de violência é um direito. Os profissionais mencionam que muitos pacientes não percebem a unidade de saúde como uma rede de apoio. A conscientização sobre a disponibilidade de ajuda na unidade é crucial para encorajar as vítimas a procurar assistência. A falta de compreensão por parte dos pacientes sobre o papel da unidade como uma rede de apoio pode contribuir para a não busca de ajuda.
Muitos pacientes, também, não enxergam a unidade de saúde como uma rede de apoio, então quando você explica que nós somos a rede de apoio em todo esses sentidos, eles entendem que poderiam ter buscado ajuda antes. E eu posso ter tudo isso aqui disponível. (P7)
Os profissionais destacam diversas dificuldades na articulação da rede intersetorial para atendimento de mulheres em situação de violência. A mobilidade das mulheres, sobretudo quando desistem de buscar ajuda em meio ao processo, e a complexidade nos encaminham. Quando encaminhado para serviços de referência de apoio social acontece o repasse para outros serviços em que pode ocasionar na demora para a resolução ou ainda quando o próprio serviço de referência social retorna com a mulher para a USF sem resolução. A estratégia utilizada para contornar essa situação é a ligação telefônica para o setor de referência ou a realização de carta com descrição da necessidade da mulher.
A rede na teoria é muito bonita, se você ler o CRAS, a própria CREAS, se você manda um relatório para um CREAS, [...] ele encaminha um e-mail de volta dizendo encaminho para a SAS, assim que é, aí você encaminha para a SAS, a SAS vai encaminhar a mesma coisa para ele de novo e aí vai demorar uns 3 meses para ele fazer essa visita. Se for questão de alimentação ela vai ficar 3 meses sem comer? (P11)
A rede de enfrentamento à violência contra as mulheres tem como composição diversos serviços e de instituições, pois compreende a multidimensionalidade e a complexidade, e para o enfrentamento efetivo é necessário a articulação e integração entre serviços e instituições.
A USF está dentre os serviços não-especializados de atendimento à mulher, sendo também os hospitais gerais, delegacias comuns, polícia militar, polícia federal, Centros de Referência de Assistência Social/CRAS, Centros de Referência de Assistência Social/CREAS, Ministério Público, defensorias públicas. E os serviços especializados de atendimento à mulher são os que atendem exclusivamente as mulheres e que possuem a mestria com relação à violência contra a mulher (Brasil, 2011).
3.3Estratégias para conduzir o atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica
No primeiro contato de atendimento na APS, recomenda-se iniciar com o Acolhimento, para depois realizar o preenchimento de formulários ou prontuários. O acolhimento, com escuta qualificada, pode ser realizado por uma equipe multiprofissional, concretiza-se em um atendimento humanizado, visando criar um ambiente de confiança e respeito.
Isso implica na vigilância das condutas dos profissionais para evitar a vitimização e na consciência para lidar com a raiva, medo e impotência que podem surgir durante o atendimento. A identificação do motivo do contato da mulher na atenção básica pode ser feita através de perguntas diretas ou indiretas, dependendo do conforto do profissional (Brasil, 2016). Conforme a Política Nacional de Humanização, no acolhimento todos devem ser atendidos a partir de avaliação de vulnerabilidade, gravidade e risco (Brasil, 2013).
O Agente Comunitário de Saúde(ACS) é o profissional de saúde com um elo mais forte entre toda a comunidade e a USF, por realizar visitas periodicamente todo o mês. E os casos são trazidos para discussão de condutas em reuniões semanais de equipe ou conforme a urgência busca-se apoio no profissional diretamente para atendimento, sendo domiciliar ou consulta individual na unidade.
A ACS passou um caso de violência doméstica, mas não estava dentro da planilha, ela fraturou o braço. Na visita a ACS me orientou: ‘ela não sabe que sabemos da violência. Então vamos fazer uma visita para te apresentar como nova enfermeira da equipe’. Ela não deixou claro que tinha sofrido violência do esposo. Geralmente eles (ACS) procuram a gente a qualquer momento e falam que precisamos fazer visita pois é caso de violência, e a gente vai. (P8)
É importante enfatizar que o ACS não tem como papel central a detecção, orientação e assistência de casos, por ter uma posição de risco devido à quebra de sigilo e vulnerabilidade à violência, mas sim na divulgação de serviços e informações de direitos e “não devem ser responsabilizadas pelo cuidado aprofundado ou por ações de detecção de violência nas casas, por exemplo, agindo como ‘olheiras’ do serviço de saúde ” (D’Oliveira, 2019, p. 25).
Diante da dificuldade para vínculo, os profissionais usam estratégias como agendamento de consultas individuais, domicílio, tratamento das dores crônicas ou ainda marcando consulta diretamente com médico para segundo momento passar em consulta com psicólogo na tentativa de buscar ajudar a mulher.
Marcamos consultas de retorno, fazemos visitas domiciliares ou preventivos. Ela tem dores crônicas? Então vamos avaliar as dores e convidar para fazer fisioterapia, para ver se ela consegue se abrir. (P2)
[...] Se eu marcar uma consulta com a psicóloga pode levar um susto, então se eu marcar com o médico para uma consulta de rotina, solicitar alguns exames, talvez o baque seria menor e se não tiver nada a psicóloga vai atender. (P6)
A sensibilidade do profissional de saúde em respeitar a mulher, especialmente na dificuldade de se expressar verbalmente, deve-se ao ato de escutar, acolher e observar suas expressões. É fundamental permitir tempo para que ela relate o sofrimento decorrente da violência, estabelecendo um vínculo que propicie uma relação terapêutica, marcada pelo respeito ao tempo necessário para as decisões sobre a terapia. Nesse processo, é essencial construir em conjunto o plano de cuidado, sempre considerando a vontade da mulher (Brasil, 2016).
A abordagem, seja por meio de perguntas diretas ou indiretas sobre a violência, representa uma forma de identificação do problema. Contudo, é crucial realizar isso sem estigmatizar ou julgar, evitando romper o interesse do serviço de saúde no atendimento à mulher (Brasil, 2016).
Especificamente, o fluxograma do atendimento às mulheres em situação de violência, adotado pela Secretaria de Saúde do município de Campo Grande, ocorre por meio do envio mensal, pelo Distrito Sanitário, de duas planilhas: 1 contém uma lista de todos os casos notificados como violência em qualquer serviço da rede de saúde, abrangendo todos os ciclos de vida e suicídios; 2 discrimina a busca ativa dos familiares das vítimas de homicídio, suicídio e intervenção legal. São entregues ao setor de Serviço Social das UBS e USF. A partir disso, o setor de Serviço Social encaminha as informações aos demais profissionais para pactuação de intervenções.
Na USF, durante as reuniões, os casos são compartilhados com a equipe multiprofissional para o matriciamento de saberes. Com o ACS, são discutidos aspectos relacionados ao território e domicílio. A consulta pode ser compartilhada com outros profissionais, conhecida como interconsulta. Avalia-se a sequência do atendimento, podendo ser na modalidade individual, convite para o Grupo de Mulheres ou referenciada a outros profissionais ou serviços da rede.
Para nós chega a (planilha) de Violência [...] nesses casos a gente faz uma busca ativa, vai atrás do paciente, se houver necessidade faz o matriciamento, uma (consulta) compartilhada com a psicologia, com o Serviço Social, a gente já trabalhou em cima dessa planilha. (P10)
Tem casos que chegam direto do Ministério Público, tem casos que a gente identifica que é uma violência: em relacionamentos mais agressivos, abusivos, controle psicológico, financeiro e até agressivo fisicamente [...]. Geralmente ela vem de uma interconsulta, então a ACS já compartilha esse atendimento, a partir disso eu convido para o grupo de apoio às mulheres, não só de violência, mas também de suporte e apoio e encaminhar, também, para o serviço social. (P12)
Carneiro et al. (2019) destacam a importância de grupos reflexivos no fornecimento de suporte social, contribuindo na ressignificação da violência doméstica obtendo novas perspectivas de futuro. Em face do isolamento social que o agressor promove na vida da mulher, a participação em grupo de apoio proporciona à mulher o reconhecimento da desigualdade de gênero na violência vivida e a encoraja na tomada de decisão. E pela violência doméstica ser cíclica e transgeracional a APS tem um potencial de desenvolver ações estratégicas de prevenção e enfrentamento de agravos.
A Organização Mundial da Saúde descreve quatro tipos de necessidades das mulheres a serem detectadas: emocionais e psicológicas imediatas; segurança atuais; saúde física atuais; e saúde mental e suporte médio e longo prazo, e são de competência multiprofissional (D’Oliveira et al., 2019).
O Ministério Público (MP) é um importante parceiro no fortalecimento e monitoramento da rede, acompanhando a execução das ações do programa/projeto na identificação e correção de problemas (Brasil, 2011). Segundo a Lei Maria da Penha, o MP, quando houver necessidade de avaliação mais profunda e complexidade, o juiz determinará avaliação de profissionais especializados (Brasil, 2006).
[...] É porque das duas formas quando vem o relatório com a solicitação do acompanhamento de saúde através do Ministério Público ou do Conselho. [...] Quando eu atendo um caso assim eu já faço tudo, não espero ir para o Distrito (Sanitário) e voltar, eu já a encaminho para todos os lugares possíveis, para quando esse relatório voltar pedindo esse acompanhamento ela já estará em acompanhamento há um tempo, porque são, geralmente, 30 dias para voltar do Distrito (Sanitário). (P11)
Há uma preocupação com a mulher em continuar o atendimento para que mesmo diante do ciclo de violência ou encaminhamento para outro setor da rede permaneça em acompanhamento na unidade de saúde para apoio. Além de consultas na USF, a ligação e visita domiciliar, inclusive como segurança do profissional e da mulher para não se encontrar com o agressor, no caso da ligação telefônica.
É importante para manter o vínculo, não necessariamente uma consulta aqui na unidade, mas podemos ligar para saber como ela está. Ela vai sentir que tem alguém apoiando e não sendo julgada, porque às vezes ela ainda está com o companheiro e [...] e às vezes você liga e ele atende o telefone e você não pode falar quem é você, de onde você está falando, porque ele pode desligar o telefone e agredir ela. Tem todo esse tato que precisamos ter. É complicado. (P11)
Na prática, a importância de continuar o acompanhamento das mulheres está intrinsecamente relacionada ao vínculo, seguindo a lógica da longitudinalidade comumente utilizada como continuidade do cuidado Starfield (2002). Contudo representa uma relação de longa duração entre os profissionais e os indivíduos, que pode ser ligado a um local, percebida como uma atenção direcionada ao longo de um período definido ou indefinido.
Esse tipo de relação assume diversas formas, incluindo consultas menos frequentes, uma vez que problemas podem ser gerenciados por telefone, sem a necessidade de agendar consultas para informações já conhecidas e a redução na hospitalização. A longitudinalidade, enquanto atributo da APS, está correlacionada aos demais atributos da APS, a integralidade e a coordenação do cuidado.
A primeira Casa da Mulher Brasileira foi inaugurada em 2015 em Campo Grande, MS, Brasil, enquanto um dos eixos do Programa Mulher, Viver sem Violência, coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Oferece acolhimento, triagem, apoio psicossocial; delegacia; Juizado; Ministério e Defensoria Pública; promoção de autonomia econômica; cuidado das crianças, alojamento (Brasil, 2015).
Houve a necessidade de encaminhamento para a Casa da Mulher com apoio da Polícia. Os profissionais realizaram as condutas em conjunto com a mulher, buscando apoio de um familiar, mostrando, mais uma vez, a necessidade de encaminhamento para a rede intersetorial e, nesse caso, para a rede especializada.
Fizemos uma consulta compartilhada [...] e fizemos um encaminhamento para a Casa da Mulher Brasileira. Pedimos para abrigar ela porque estava com medo de voltar para casa [...] ela estava muito desesperada, bastante machucada e não queria que chamasse a Guarda, a Polícia, a gente encaminhou para todas redes possíveis [...] esse é o acompanhamento de saúde, mas é até o momento que ela desejar, tem que respeitar. (P11)
4.Considerações Finais
Os profissionais relataram atender poucos casos, o que pode estar associado a subnotificação e a dificuldade de identificar a violência, caracterizado pela inexperiência e falta de capacitação diante do problema. Além das dificuldades de estrutura física inadequada, gerenciamento de tempo e vagas limitadas e sobrecarga de trabalho. Os profissionais acabam dependendo excessivamente de uma categoria profissional, levando-os a definir critérios próprios de atuação e encaminhamento, conforme seu conhecimento sobre a Rede e compreensão sobre a complexidade da violência doméstica.
A possibilidade de um fluxo voltado para a APS com características na realidade local, é crucial para a articulação intersetorial efetiva com atendimentos de qualidade e disseminado entre as redes, afastando o atendimento improvisado e evitando a violência institucional. Traria luz a queixas das mulheres sujeitas a iatrogenias e as frustrações dos profissionais de saúde.
Contudo, a construção de ferramentas e capacitações periódicas para a sensibilização de práticas são importantes para a estruturação dos serviços e para garantir a segurança técnica dos profissionais na condução de casos complexos. Também se torna essencial promover um trabalho integrado entre os serviços específicos e não específicos da rede de atendimento, fortalecendo a eficácia da rede de enfrentamento à violência contra a mulher.