Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
ISSN 2182-5173
CLUBE DE LEITURA
Cálcio a mais? Riscos da suplementação com cálcio e vitamina D na pós-menopausa
Too much calcium? Risks of post-menopausal calcium and vitamin D supplementation
Helena Martins
Interna de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar, USF Lagoa, Unidade Local de Saúde de Matosinhos
Gallagher JC, Smith LM, Yalamanchili V. Incidence of hypercalciuria and hypercalcemia during vitamin D and calcium supplementation in older women. Menopause. 2014 Jun 16. [Epub ahead of print]
Introdução
A suplementação com cálcio e vitamina D é amplamente utilizada para prevenção da osteoporose em mulheres pós-menopáusicas. Embora a dose exata de vitamina D e cálcio associada a sintomas tóxicos seja desconhecida, a dose diária máxima recomendada é de 4000 UI e 2000 mg, respetivamente, estando, contudo, descritos casos de toxicidade com doses inferiores. O estudo da Women’s Health Initiative (WHI, NEJM 2006), com 36.282 mulheres, foi, até à data, o único grande estudo prospetivo controlado e de longa duração acerca da suplementação com cálcio e vitamina D, tendo reportado, após sete anos de seguimento, um aumento do risco de nefrolitíase em 17% face ao grupo placebo.
O objetivo deste estudo é avaliar prospetivamente a incidência de hipercalcémia e hipercalciúria com a suplementação de diferentes doses de vitamina D, mantendo um consumo diário de cálcio aproximado de 1200 mg em mulheres pós-menopáusicas.
Métodos
Ensaio clínico aleatorizado e controlado, duplamente cego, que envolveu 163 mulheres caucasianas com idades entre os 57 e os 90 anos, agrupadas de modo a receberem diferentes doses de vitamina D3 (400 a 4800 UI/dia) ou placebo. Todas as mulheres incluídas tinham, à partida, uma deficiência prévia de vitamina D (≤ 20 ng/mL). Foram excluídas aquelas com antecedentes de nefrolitíase, insuficiência renal crónica, hipercalcémia, hipercalciúria, bem como aquelas medicadas com corticóides, bifosfonatos ou qualquer outra medicação com potencial para interferir com as medições. A dieta foi analisada e suplementada com cálcio, de modo a totalizar uma ingestão total diária de aproximadamente 1200 mg (inclusive no grupo placebo). Durante um ano, foram avaliados, trimestralmente, os níveis séricos e urinários de cálcio bem como os níveis séricos de vitamina D. Qualquer resultado acima do valor máximo de referência representou um episódio de hipercalcémia (> 10,2 mg/dL) ou de hipercalciúria (> 300 mg/dia).
Resultados
A adesão média à suplementação com vitamina D3 e cálcio durante os 12 meses foi de 94% e 91%, respetivamente, tendo a taxa de abandono do estudo sido de 9,8%.
Ao longo de um ano foi detetada hipercalcémia em 8,8% e hipercalciúria em 30,6% das participantes pertencentes a ambos os grupos controlo e placebo. Ao contrário da hipercalcémia, que foi transitória, os episódios de hipercalciúria foram recorrentes. Não foi detetada nenhuma associação significativa entre os episódios de hipercalcémia e hipercalciúria com a dosagem dos suplementos de vitamina D ou com os seus níveis séricos.
O modelo de regressão logística multinominal demonstrou que a idade e os níveis basais de cálcio urinário na urina de 24 horas (pré-suplementação) são preditores significativos de hipercalciúria, sendo que o aumento da idade parece ser um fator protetor, enquanto níveis de cálcio urinário basais mais elevados promovem o desenvolvimento de hipercalciúria. O aumento de um ano na idade resultou numa diminuição de 10% do risco de desenvolver hipercalciúria (RR, 0,90; IC 95%, 0,84-0,97; p = 0,0044). Uma mulher com uma calciúria basal superior a 132 mg/dia apresentou um risco 15 vezes superior de vir a desenvolver hipercalciúria durante o estudo (RR, 15,3; IC 95%, 5,44-43,01; p = 0,0001) relativamente àqueles com níveis basais inferiores.
Durante o estudo não foram observados episódios sintomáticos de nefrolitíase.
Discussão/Conclusão:
Este foi o primeiro estudo prospetivo controlado para descrever detalhadamente os efeitos da suplementação com cálcio e vitamina D nos níveis séricos e urinários de cálcio em mulheres na pós-menopausa.
Os episódios de hipercalcémia e hipercalciúria observados não parecem estar dependentes da dose de vitamina D ou dos seus níveis séricos, embora não se saiba se foram causados somente pela suplementação com cálcio ou também pela combinação de cálcio e vitamina D. Mesmo uma suplementação modesta de cálcio de 600 mg/dia (no grupo placebo) foi suficiente para causar, em algumas mulheres, hipercalcémia e/ou hipercalciúria.
Alguns estudos prévios já haviam reportado a ocorrência de hipercalciúria e/ou hipercalcémia após suplementação de cálcio e de vitamina D. No estudo da WHI, o desenvolvimento de nefrolitíase no grupo suplementado com vitamina D (400 UI/dia) e 1000 mg de cálcio poderá ser parcialmente explicado por uma ingestão total de cálcio excessiva (2200 mg/dia) e pelo facto de terem sido incluídas mulheres com antecedentes de nefrolitíase. Apesar de ser comummente aceite que a vitamina D aumenta a absorção de cálcio, outros estudos, conduzidos pelos mesmos autores deste ensaio clínico, demonstraram que a suplementação diária com 400 UI de vitamina D não influenciou a absorção de cálcio neste grupo de mulheres mais velhas, nem doses de até 2400 UI/dia em mulheres mais jovens. Consequentemente, é pouco provável que a suplementação de 400 UI/dia de vitamina D possa ter causado a hipercalciúria e a nefrolitíase no estudo da WHI.
Alguns estudos epidemiológicos publicados sugerem que níveis mais elevados de cálcio na dieta diminuem o risco de nefrolitíase, enquanto a sua suplementação parece ter o efeito contrário.
Em suma, o risco de hipercalcémia e hipercalciúria decorrente da suplementação com cálcio e vitamina D é muitas vezes ignorado pelos profissionais de saúde. Estes eventos não parecem estar relacionados com as doses de vitamina D administradas ou com os seus níveis séricos, mas antes com a suplementação isolada de cálcio ou se associada à vitamina D. Dado que um nível basal elevado de cálcio na urina de 24 horas pode ser um fator de risco para o desenvolvimento de hipercalciúria, é aconselhável avaliar os níveis séricos e urinários de cálcio previamente e 3 meses após o início da suplementação.
COMENTÁRIO
Este artigo refere-se a um ensaio clínico de curta duração e que, por isso, se consigna apenas a medir endpoints analíticos. Não obstante, esta medição é feita de um modo rigoroso, com exclusão de potenciais fatores de confundimento. A hipercalciúria, apesar de ser um dado meramente laboratorial, poder-se-á tornar clinicamente relevante se outros fatores de risco para nefrolitíase, difíceis de rastrear, se conjugarem no mesmo doente. O facto de terem sido excluídas mulheres com hipercalciúria basal, algo que não reflete a prática clínica comum, pode ter subestimado o efeito da suplementação.
Este estudo apresenta algumas limitações, apontadas pelos autores: suplementação variável de cálcio consoante os níveis na dieta (embora 70% das mulheres tenham recebido 600 a 800 mg/dia); ausência de um grupo placebo sem suplementação de cálcio, pelo que não se pode afirmar que a hipercalciúria se deva exclusivamente à suplementação; os resultados obtidos podem não se aplicar a outros grupos etários ou étnicos nos quais o metabolismo do cálcio e da vitamina D pode ser diferente.
Em abril de 2014 foi publicada uma revisão sistemática da Cochrane1 cujo objetivo era determinar o efeito da suplementação de vitamina D, com ou sem cálcio, na prevenção de fraturas em mulheres pós-menopáusicas e homens com idade média superior a 65 anos. Existe evidência de elevada qualidade que a suplementação de vitamina D e cálcio, comparativamente à ausência de tratamento ou ao placebo, resulta numa pequena redução do risco de fratura da anca (16%), mais expressiva nos indivíduos institucionalizados, e numa redução significativa na incidência de novas fraturas não vertebrais (o efeito na redução do risco de fraturas vertebrais não é significativo). Os efeitos laterais descritos são a hipercalcémia ligeira, mais frequente com o análogo calcitriol, sintomas gastrointestinais e nefrolitíase ou insuficiência renal.
Em síntese, um dos principais méritos deste estudo é o de alertar o clínico para uma terapêutica que, apesar de deter um benefício cada vez mais sólido, poderá ter, a longo prazo, efeitos laterais não menosprezáveis. Tendo em vista a identificação dos indivíduos em maior risco de nefrolitíase, os autores do estudo sugerem a medição dos níveis séricos e urinários de cálcio previamente e 3 meses após o início da suplementação de cálcio e vitamina D. Contudo, são necessários estudos que avaliem o custo-efetividade desta recomendação. Ainda que um indivíduo com alto risco de fratura osteoporótica desenvolva hipercalciúria durante a suplementação com vitamina D e cálcio, a decisão de suspensão da suplementação não será de todo clara face à evidência atualmente disponível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Avenell A, Mak JC, O’Connell D. Vitamin D and vitamin D analogues for preventing fractures in post-menopausal women and older men. Cochrane Database Syst Rev. 2014 Apr 14;4:CD000227. [ Links ]
Conflitos de interesse
A autora declara não ter conflito de interesses.
Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.