Introdução
A língua pilosa preta caracteriza-se pelo alongamento e pela pigmentação das papilas gustativas, conferindo-lhes uma aparência semelhante a pelos.1 É uma condição benigna rara com uma prevalência de 0,2 a 11,3%.2
A sua patogénese é incerta; contudo, parece relacionar-se com alterações da microflora oral. O caso clínico corrobora uma das etiologias desta patologia descritas na literatura científica, que consiste na toma de amoxicilina num utente com hábitos tabágicos.3-4 Concomitantemente à língua pilosa preta, o utente apresentava uma clínica sugestiva de uma infeção fúngica (disgeusia, glossodinia e halitose).5 Neste sentido, a abordagem terapêutica consistiu na aplicação tópica do antifúngico nistatina, em conjunto com uma higiene oral adequada e diminuição tabágica. Com uma resolução clínica completa em cerca de catorze dias, o caso clínico documenta o sucesso terapêutico desta abordagem.
A língua pilosa preta é uma doença da mucosa oral cujo diagnóstico é clínico, não havendo a necessidade de exames complementares de diagnóstico. Por conseguinte, este relato traduz-se num caso clínico onde a suspeição clínica à anamnese e ao exame objetivo foi determinante para o diagnóstico.
Uma das características da medicina geral e familiar consiste na heterogeneidade da patologia que trata. Assim, considera-se pertinente publicar o caso de forma a capacitar o profissional de saúde em relação aos fatores predisponentes da língua pilosa preta, bem como a sua abordagem diagnóstica e terapêutica.
Descrição do caso
Utente de 34 anos, sexo masculino, raça caucasiana. Solteiro. Natural e residente no concelho de Braga. Motorista de pesados. Fumador de 12 unidades de maço ano. Diagnóstico recente de gastrite crónica com Helicobacter pylori de atividade moderada, sem displasia. Hábitos alcoólicos adequados (um copo de vinho maduro ao almoço). Negava ingestão de café. Sem outros antecedentes pessoais de relevo.
O utente recorreu a uma consulta de urgência na Unidade de Saúde Familiar Bracara Augusta por queixas de alteração da cor da língua, de diminuição do paladar, de ardência da língua e de mau hálito. Este quadro terá surgido aquando do tratamento para a erradicação da Helicobacter pylori prescrito pelo seu médico de família. A terapia tripla de erradicação consistiu na toma bidiária de amoxicilina 1000mg, claritromicina 500mg e pantoprazol 20mg durante dez dias. Inicialmente o utente aguardou a resolução espontânea do quadro após término dos dez dias de tratamento. Contudo, por persistência das queixas, ao 12º dia de evolução recorreu à consulta de urgência com o receio de se tratar de uma patologia maligna da cavidade oral. O utente negava outros sintomas ou sinais associados, como febre, náuseas, vómitos ou dor.
À inspeção da cavidade oral observavam-se projeções semelhantes a pelos no dorso da língua com coloração esverdeada, não removível à raspagem (Figura 1). O utente apresentava 24 peças dentárias com o esmalte escurecido devido ao tabagismo. Sem cáries dentárias aparentes. Sem úlceras ou massas orais. Palato, úvula e orofaringe sem alterações. Sem áreas endurecidas ou dolorosas à palpação da cavidade oral. Sem adenomegalias da cabeça ou pescoço. Confirmava-se a presença de halitose. Observava-se descoloração dos pelos periorais pelo fumo do tabaco. Restante pele e mucosas do corpo normais.
Tratando-se da primeira vez que se observava um caso com esta apresentação foi necessário fazer uma pesquisa médico-científica acerca do provável diagnóstico. Concluiu-se então que se trataria de um caso de língua pilosa preta com sobreinfeção fúngica.
Neste sentido foi prescrito ao utente o antifúngico nistatina [cerca de 6ml de uma suspensão oral com 100.000 UI (unidades internacionais) de nistatina por mL (mililitro)], com indicação para bochechar durante alguns minutos e posteriormente expelir, cerca de quatro vezes ao dia. Foi também aconselhado o reforço da higiene oral através da lavagem dos dentes com posterior fricção da língua, cerca de três vezes por dia. Por último, foi sugerida a cessação tabágica. Na consulta de reavaliação, sete dias após adesão ao tratamento, verificou-se uma redução da coloração dos pelos da língua (Figura 2), bem como a diminuição da halitose, glossodinia e disgeusia. O utente confessou ter mantido os hábitos tabágicos; contudo, reduziu para metade o consumo diário. Negou qualquer efeito adverso do tratamento farmacológico e mostrou-se satisfeito com a melhoria, pelo que concordou em manter a estratégia terapêutica por mais sete dias. Ao 14º dia de tratamento foi feito contacto telefónico com o utente para reavaliação, visto nessa data ele estar a efetuar um transporte internacional de mercadoria. O utente referiu resolução completa das queixas. No contexto desta situação aguda foi reforçada a importância da cessação tabágica. O utente, ao entender que o tabagismo é um importante fator de risco para patologia benigna e maligna da cavidade oral, concordou em continuar a reduzir os consumos com vista à cessação tabágica.
Comentário
A língua pilosa preta caracteriza-se pelo alongamento e pela pigmentação das papilas gustativas, conferindo-lhes uma aparência semelhante a pelos. A sua coloração varia de esverdeada a preta. Maioritariamente afeta a região dorsal da língua.1 Esta condição benigna, quando associada a uma infeção fúngica nomeadamente candida albicans, pode apresentar glossodinia, disgeusia e halitose.5
A patogénese da língua pilosa preta é incerta; contudo, parece relacionar-se com alterações da microflora oral. Os possíveis fatores que predispõem a esta patologia são: a higiene oral deficitária, os hábitos tabágicos, o consumo excessivo de café, a imunossupressão (como a infeção por VIH), entre outras.1,5-6 Está também frequentemente associada ao uso de medicação psicotrópica (olanzapina, antidepressivos tricíclicos, benzodiazepinas e fluoxetina) e de antibióticos (tetraciclinas, amoxicilina e linezolida).3-4 Esta associação ficou documentada no caso clínico, visto que os antecedentes tabágicos do utente associados à toma da amoxicilina estiveram na provável origem do quadro.
O diagnóstico diferencial da língua pilosa preta é feito com outras patologias que apresentem alteração da cor da língua, nomeadamente a acantose nigricans, o líquen plano oral e a leucoplasia oral.1,3 A acantose nigricans apresenta o escurecimento de outras zonas, para além da língua, como os lábios, o pescoço, as axilas e as virilhas, o que não se verificava neste utente.3 Em relação ao líquen plano, este caracteriza-se por uma coloração branca da língua, diferente da coloração apresentada pelo utente.3 A leucoplasia era o diagnóstico mais preocupante devido ao seu potencial maligno. Contudo, nesta patologia verificam-se múltiplas placas de coloração branca nas zonas dorsal e ventral da língua.1 Neste sentido, como ao exame objetivo o utente apresentava coloração esverdeada da língua, assumiu-se a língua pilosa preta como o diagnóstico provável.
O prognóstico da língua preta pilosa é excelente, apresentando uma resolução clínica entre quatro dias e duas a quatro semanas.7-9 O tratamento consiste numa higiene oral adequada, com fricção da língua através de escova de dentes ou raspador de língua.3,5 Caso a fricção não seja suficiente para a descamação da língua está recomendado o uso de agentes queratolíticos ou retinoides (como a tretinoína).11 Por último, na falha deste tratamento não invasivo poderá realizar-se a abrasão da mucosa lingual com recurso a laser ou mesmo cirurgia.3,5
A língua pilosa preta, quando associada a uma infeção fúngica, deve ser tratada adicionalmente com um antifúngico tópico. No caso clínico, dada a clínica sugestiva de uma infeção por candida albicans (disgeusia, glossidinia e halitose), optou-se por iniciar um antifúngico tópico. Os antifúngicos sugeridos na literatura científica são a nistatina, o clotrimazol, o cetoconazol e o fluconazol.5 Perante a clínica do utente optou-se pelo uso da nistatina, visto esta ser mais eficaz em infeções fúngicas na região dorsal da língua.5
O caso clínico relatado foi um desafio diagnóstico, na medida em que a língua pilosa preta é uma patologia pouco frequente na prática diária do médico de família. Contudo, o facto da anamnese e do exame objetivo do utente serem altamente sugestivos da patologia acabou por facilitar o seu diagnóstico.
Um dos pilares da medicina geral e familiar consiste na promoção da saúde e prevenção da doença. Deste modo, durante a prática clínica diária, perante a necessidade de prescrição de medicação psicotrópica (olanzapina, antidepressivos tricíclicos, benzodiazepinas e fluoxetina) ou de antibióticos (tetraciclinas, amoxicilina e linezolida) num utente com hábitos tabágicos, justificar-se-á uma avaliação atenta da cavidade oral, bem como o reforço de uma higiene oral adequada e da importância da cessação tabágica.
Considerou-se pertinente publicar o caso de forma a capacitar o profissional de saúde em relação aos seus fatores predisponentes, bem como a sua abordagem diagnóstica e terapêutica.