Introdução
A doença alérgica é complexa e multifatorial e envolve uma interação entre múltiplos fatores genéticos e ambientais.1-4 Sabe-se que o aleitamento materno exclusivo, durante os primeiros seis meses de vida, é um fator protetor para o desenvolvimento destas doenças.4-5
A prevalência de doença alérgica na população pediátrica é elevada6-7 e apresenta a seguinte distribuição: 7-8% alergias do tipo alimentar, 15-20% atopia/eczema e 31-34% asma/sibilância recorrente.7 Representa um importante problema de saúde pública pelo impacto na vida dos indivíduos afetados, sendo uma causa frequente de absentismo escolar e laboral.4,7
Vários estudos sugerem que o uso de fórmulas hidrolisadas (constituídas por péptidos derivados de proteínas do leite de vaca caracteristicamente menos imunogénicas)2,8-9 em lactentes cuja alimentação não é realizada exclusivamente com leite materno pode reduzir o desenvolvimento de doença alérgica.6-7 Contudo, o uso destas fórmulas não é consensual na comunidade científica.
Este trabalho tem como objetivo rever a evidência existente acerca da eficácia da suplementação com fórmulas hidrolisadas na prevenção de doença alérgica em crianças de termo.
Métodos
Pesquisa bibliográfica sistemática, realizada em março de 2019, de normas de orientação clínica, meta-análises, revisões sistemáticas e ensaios clínicos aleatorizados e controlados, limitados a estudos em humanos. Foram pesquisados artigos publicados entre janeiro de 2009 e janeiro de 2019, em inglês, nas bases de dados The Cochrane Database, MEDLINE/PubMed, National Guideline Clearinghouse, Guideline Finder e Canadian Medical Association.
O query de pesquisa incluiu os termos MeSH: Protein hydrolysates; Hypersensitivity; Allergy and immunology; Rhinitis; Allergic, Seasonal; Asthma.
Os critérios de inclusão foram: lactentes de termo (população), utilização de leite hidrolisado (intervenção), fórmula convencional de leite de vaca/leite materno (comparação), redução da doença alérgica (outcome). Os critérios de exclusão foram: lactentes pré-termo e doença alérgica documentada antes do estudo. Para a atribuição dos níveis de evidência e forças de recomendação utilizou-se a Strenght of Recomendation Taxonomy, da American Academy of Family Physicians (SORT).
Resultados
Foram obtidos 23 artigos, dos quais três cumpriram os critérios de inclusão: duas meta-análises e um estudo de coorte. O organigrama de seleção dos artigos está representado na Figura 1 e os resultados estão descritos nas Tabelas 1 e 2.
Legenda: ECA = Estudo controlado e aleatorizado; FCLV = Fórmula convencional de leite de vaca; FEH = Fórmula extensamente hidrolisada; FPH =Fórmula parcialmente hidrolisada; NE = Nível de evidência.
Legenda: ECA = Estudo controlado e aleatorizado; EQE = Estudo quase-experimental; FCLV = Fórmula convencional de leite de vaca; FEH = Fórmula extensamente hidrolisada; FH = Fórmula hidrolisada; MT = Meta-análise; RS = Revisão sistemática.
Em 2010, Berg e colaboradores2 realizaram um estudo coorte prospetivo duplamente cego, com o objetivo de avaliar o impacto da alimentação no desenvolvimento de eczema atópico. A amostra incluiu 5.991 crianças nascidas em duas regiões da Alemanha entre setembro de 1995 e junho de 1998, com e sem predisposição familiar para alergia. As crianças com predisposição familiar para doença alérgica, cujos pais aceitaram participar no estudo, constituíram o grupo submetido a intervenção e foi-lhes aleatoriamente atribuído, após o nascimento, um dos seguintes tipos de fórmula: leite de vaca vs leite parcialmente hidrolisado vs leite extensamente hidrolisado (n=2.252). As restantes 3.739 crianças, com e sem predisposição familiar para doença alérgica, representaram o grupo não submetido a intervenção alimentar. Verificou-se que as crianças com predisposição familiar para doença alérgica, que não receberam intervenção nutricional com fórmula parcialmente hidrolisada ou extensamente hidrolisada, apresentaram um risco 2,1 vezes superior de desenvolver eczema do que as crianças sem história familiar de alergia e que o risco de eczema foi menor no grupo com intervenção alimentar. Apesar dos resultados positivos do estudo foi-lhe atribuído um nível de evidência 2, uma vez que ao fim de seis anos menos de 80% das crianças mantinham seguimento, não se podendo obter resultados estatisticamente significativos.
Vandenplas e colaboradores10 realizaram, em 2014, uma revisão sistemática que incluiu três estudos (revisões sistemáticas), com um total de aproximadamente 11.964 participantes, todos crianças com elevado ou sem risco de doença alérgica.
• Um dos estudos avaliou o efeito da utilização de fórmula hidrolisada vs leite materno vs fórmula convencional de leite de vaca durante um curto período e demonstrou que nas crianças de baixo risco não existe diferença estatisticamente significativa no desenvolvimento de doença alérgica no primeiro ano de vida. Porém, no mesmo estudo, a utilização prolongada (4-6 meses) de fórmula convencional de leite de vaca vs fórmula parcialmente hidrolisada em crianças com elevado risco de doença alérgica demonstrou que havia redução estatisticamente significativa da doença alérgica até ao primeiro ano de vida (RR=0,79; IC95%, 0,66-0,94).
• Uma revisão sistemática que foi incluída, com 12 populações independentes em estudo, analisou a associação de dermatite atópica e a utilização de fórmula parcialmente hidrolisada Whey e verificou que havia redução estatisticamente significativa da doença alérgica [11 estudos (RR=0,56; IC95%, 0,4-0,77) e quatro estudos (RR=0,45; IC95%, 0,30-0,70)].
• Outro dos estudos comparou o efeito das fórmulas parcialmente hidrolisadas Whey vs fórmula convencional e revelou uma redução estatisticamente significativa de doença alérgica em diferentes grupos etários: 3-6 meses (cinco ECA; RR=0,48; IC95%, 0,23-1,00); 12 meses (quatro ECA; RR=0,62; IC95%, 0,45-0,85) e 30-36 meses (um ECA; RR=0,42; IC95%, 0,19-0,90).
Foi atribuído um nível de evidência 2 a esta revisão sistemática pelo facto de conter estudos de baixa qualidade, com amostras de pequenas dimensões e ter aspetos pouco claros na metodologia.
Uma meta-análise da Cochrane, realizada por Osborn e colaboradores,7 em 2018, incluiu um total de dezasseis estudos. Onze destes foram estudos controlados aleatorizados e cinco estudos quase-experimentais, tendo envolvido um total de 9.563 lactentes. O objetivo desta meta-análise era comparar os efeitos na doença alérgica em crianças alimentadas com fórmulas hidrolisadas vs fórmula convencional de leite de vaca ou leite materno.
Como resultados obteve-se o seguinte:
• Dois estudos avaliaram o efeito da suplementação com fórmula infantil extensamente hidrolisada vs leite materno durante três a quatro dias após o nascimento, concluindo que não houve diferença estatisticamente significativa no desenvolvimento de doença alérgica (RR=1,43; IC95%, 0,38-5,37). Quando comparado o efeito da suplementação com fórmula infantil extensamente hidrolisada vs fórmula convencional de leite de vaca concluíram que também não havia diferenças estatisticamente significativas no desenvolvimento de doença alérgica (RR=1,37; IC95%, 0,33-5,71). No entanto, os autores consideram que estas conclusões são de baixa qualidade, uma vez que consideram existir potenciais vieses e imprecisões nos estudos utilizados.
• Os restantes estudos avaliaram o efeito da alimentação prolongada com fórmula infantil hidrolisada vs fórmula convencional de leite de vaca, mas também não revelaram diferenças estatisticamente significativas no desenvolvimento de doença alérgica em lactentes (RR=0,88; IC95%, 0,76-1,01) e crianças (RR=0,85; IC95%, 0,69-1,05). A análise de subgrupos encontrou algumas evidências do benefício da alimentação prolongada e exclusiva com fórmula hidrolisada comparativamente à fórmula com proteínas do leite de vaca, associada a uma redução de alergia alimentar (mas não do eczema, asma ou rinite); contudo, existem poucos ensaios clínicos que avaliem o efeito da alimentação exclusiva com fórmula hidrolisada, de modo que a evidência é insuficiente para uma análise adequada. Novamente houve potenciais vieses e imprecisões nos estudos selecionados; por isso, a qualidade da evidência também foi considerada fraca.
As autoras atribuíram um nível de evidência 2 à meta-análise, uma vez que a qualidade da evidência dos estudos utilizados foi considerada de baixa qualidade pelos próprios autores por potenciais vieses e imprecisões nos estudos utilizados. Outro dos problemas está relacionado com a dimensão das amostras utilizadas nos estudos selecionados, sendo por vezes demasiado pequenas.
Conclusões
Alguns estudos sugerem que a suplementação com leite hidrolisado poderá reduzir o risco de doença alérgica; contudo, após a análise dos mesmos não foi estabelecida uma relação causal, em grande parte devido ao tipo, desenho e validade dos estudos.
Atualmente não existe evidência científica que apoie a utilização de suplementação com leite hidrolisado na prevenção de doença alérgica. Esta afirmação tem força de recomendação B, pois a evidência disponível sobre esta temática carece de estudos metodologicamente adequados, robustos e de alta qualidade que validem a evidência encontrada.