Em tempos de pandemia vivem-se desafios de sobrevivência e de reorganização aos níveis individual e coletivo. A comunicação por canais digitais no sentido de favorecer a saúde de cada pessoa parece acontecer hoje mais do que nunca. Contudo, a medicina in absentia já era praticada no século XVII, quando as amostras de urina de doentes eram enviadas a médicos à distância.1 Desde o uso do telégrafo até aos vários equipamentos que permitem hoje a comunicação eletrónica na prestação de cuidados de saúde à distância, as tecnologias de informação e comunicação (TIC) apresentam um potencial na promoção da eficiência das respostas em saúde2 perante recursos limitados e com o previsível aumento da procura no futuro, dadas as características demográficas da população.
Apesar das vantagens, como a flexibilidade e capacidade de transpor barreiras nomeadamente no âmbito do acesso, é necessário atender à adequação desta transformação digital na saúde. A saúde à distância - telessaúde - envolve múltiplos atores, o que se traduz numa intervenção complexa.3 Esta intervenção complexa começa desde o desenho dos sistemas até às expectativas do utilizador. Um relatório da Organização Mundial da Saúde documentou que a falta de financiamento, infraestruturas, priorização e legislação são as barreiras mais frequentes na implementação de programas de telessaúde.4
A repercussão da saúde à distância na relação médico-doente, a salvaguarda dos aspetos ético-legais e a formação de todos os profissionais e doentes envolvidos no processo são temáticas essenciais. Além disso, é fundamental ter em conta as características do próprio doente, o seu consentimento e a confidencialidade de todo o processo. Pode ser difícil aplicar ferramentas digitais a casos de doença grave ou situações nas quais não é possível excluir uma patologia de alto risco para o doente. Contudo, o exame físico pode ser possível de se realizar em teleconsultas.5
Pelas suas características, as TIC representam uma oportunidade para alcançar populações com necessidades específicas, como os mais jovens, pessoas com uma vida profissional complexa ou mesmo em determinadas patologias e situações nas quais o doente se poderá sentir mais confortável em verbalizar os seus sentimentos, crenças e expectativas não estando no mesmo espaço físico que o profissional de saúde.
Do ponto de vista dos sistemas de saúde, o paradigma atual separa os cuidados de saúde primários (CSP) dos cuidados hospitalares. O uso de TIC em saúde pode melhorar o diálogo entre os vários profissionais de saúde e o doente.6 O reforço da medicina centrada no doente, apoiando os médicos de família na prestação de cuidados longitudinais para múltiplas condições de saúde, pode reduzir a fragmentação dos cuidados7 e também tem o potencial de melhorar o trabalho em equipa entre os profissionais de saúde.8
O lugar de destaque dos CSP no acompanhamento longitudinal de cada pessoa, nomeadamente no âmbito da doença crónica, torna este contexto frutífero no que toca ao aproveitamento do potencial das ferramentas de telessaúde. São necessários esforços de liderança e cooperação estreita entre os serviços de saúde, profissionais e estruturas da comunidade para que desta articulação resulte a capacitação das populações, ultrapassando barreiras ligadas à literacia e ao acesso aos equipamentos. Afigura-se urgente investir nos recursos humanos e nas infraestruturas em saúde, numa lógica de integração de cuidados que pode ser potenciada pela transformação digital a que se assiste e que foi estimulada pela atual pandemia.
Estas mudanças que são necessárias hoje podem ainda aumentar a capacidade de uma resposta coletiva a futuras emergências em saúde pública. A medicina poderá evoluir através da transformação digital se este “fogo” for usado em favor da melhoria dos cuidados prestados à pessoa, família e comunidade - o que só se poderá concretizar se todos os intervenientes forem ouvidos e envolvidos no desenho e implementação destas ferramentas.