Introdução
Nas últimas décadas assistiu-se a uma acentuada mudança na estrutura etária da população como consequência do envelhecimento, o qual revela uma forte tendência de crescimento. Acompanhando as projeções do Instituto Nacional de Estatística (INE) para a população residente no período compreendido entre 2012 e 2060, prevê-se para Portugal um declínio populacional de cerca de 22,0% (i.e., de 10,5 milhões para 8,6 milhões de habitantes). O mesmo estudo prevê alterações da estrutura etária da população, o que resulta num contínuo e forte envelhecimento demográfico.1
Muito embora o aumento da esperança média de vida seja reconhecido como uma importante conquista, também conduz a mudanças nas principais causas de morbilidade e mortalidade da população, ditando um aumento da incidência de doenças crónicas e degenerativas com fortes implicações na utilização de cuidados e serviços de saúde. Entre as referidas doenças constam a demência, a qual é caracterizada pelo desenvolvimento de deficiências cognitivas que interferem no funcionamento do indivíduo, afetando a sua atividade social e profissional.
De acordo com o relatório divulgado a 18 de fevereiro de 2020 pela Alzheimer Europe no Parlamento Europeu, o número de pessoas com demência poderá mais do que duplicar: de 193.516 em 2018 (1,88% da população) para 346.905 em 2050 (3,82% da população). O relatório refere como fator determinante o aumento significativo do número de pessoas com mais de 70 anos e, em particular, a faixa das pessoas com mais de 85 anos. De acordo com a classificação da 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - 5),2 as demências passaram a ser denominadas de Transtornos Cognitivos Major, podendo definir-se como um declínio cognitivo importante a partir de um nível de desempenho anterior. Esse declínio pode ser em um ou mais domínios cognitivos (memória, atenção, funções executivas, entre outros), com base na preocupação do próprio indivíduo ou um informante e que preferencialmente seja documentado por avaliação neuropsicológica ou, na sua ausência, por outra investigação clínica quantificada. Pelas suas características, as síndromas demenciais representam uma fonte de stress e sobrecarga para os cuidadores, com implicações importantes no tipo de cuidados a prestar a estes utentes.
A disfunção neuro-comportamental associada à demência tem sido descrita na literatura, podendo incluir agressividade, irritabilidade, perturbações do sono, incontinência, desinibição sexual, entre outros.3-4 Apesar de a atividade sexual tendencialmente diminuir com o envelhecimento, o interesse sexual não.5 Na população idosa em que se manifeste deterioração cognitiva, o compromisso do juízo crítico e as alterações na personalidade podem contribuir para mudanças no comportamento sexual. Uma dessas alterações é o comportamento sexual inapropriado, também denominado comportamento sexual desinibido ou hipersexualidade.
O conceito de comportamento sexual inapropriado ou hipersexualidade tem vindo a sofrer alterações ao longo do tempo. Vários autores defendem que a hipersexualidade na demência (HD) deve ser vista como parte integrante de um conjunto de distúrbios comportamentais e psiquiátricos associados à demência, capazes de interferirem negativamente na prestação de cuidados a estes doentes.4 A HD pode definir-se enquanto comportamento disruptivo caracterizado por um ato verbal ou físico de natureza sexual explícita ou percebida como tal, considerado como inaceitável ou inapropriado dentro do contexto social em que é realizado.6 Devido ao número crescente de casos de demência e suas complicações serão cada vez mais os casos de HD, com um impacto significativo para o próprio e para aqueles que o rodeiam. Outra dificuldade resulta do diagnóstico diferencial com outras patologias, dificultando a realização de um diagnóstico preciso. A pouca investigação sobre o tema e consequente falta de evidência científica que fundamente a criação de orientações clínicas validadas contribui para as dificuldades referidas no seu diagnóstico e abordagem.
Discussão
A prevalência da hipersexualidade na demência (HD) revela grande variabilidade, entre os 7% e os 25%, conforme os estudos,7 podendo ser atribuída a outras etiologias, como fármacos, psicose, mania ou distúrbios neurológicos.8 Tudo isto, acoplado a ideias pré concebidas de que os idosos perdem o interesse na sua sexualidade, à dificuldade do próprio idoso não ser muitas das vezes capaz de explicar as suas ações, dificulta a abordagem do problema.4,9
Relativamente às manifestações sexuais na demência, estas podem ocorrer de forma muito variada, desde uma simples necessidade de proximidade física, passando pela atividade erótica destinada à obtenção de prazer, até à procura sexual inadequada sob a forma de um comportamento sexual desinibido.7
Em termos de categorização, a HD pode subdividir-se pelas manifestações físicas versus verbais e pela apresentação convencional e não parafílico (i.e., o interesse sexual surge dentro de limites sociais e culturais aceites) versus não convencional e parafílico (i.e., o interesse sexual que se desvia das restrições anteriores).10
A etiologia parece estar associada a vários fatores neurobiológicos e psicossociais através de uma interação complexa entre si. Foram implicados na neurobiologia da HD quatro sistemas cerebrais: os lobos frontais, o sistema temporo-límbico, o sistema córtico-estriado e o hipotálamo.4 A disfunção dos lobos frontais, observada na demência fronto-temporal, está comummente associada a um comportamento desinibido, tendo sido associada à HD.11 Lesões bilaterais na região dos lobos temporais podem desencadear a síndroma de Klüve-Bucy, a qual se manifesta através de hiperfagia, comportamento autoerótico e hiperoralidade.12 Acidentes vasculares cerebrais ou tumores na região temporo-límbica foram igualmente associados à hipersexualidade.13-14 No que diz respeito aos fatores neuroendócrinos associados à HD, estes incluem os androgénios, os estrogénios, a progesterona, a prolactina, a oxitocina, o cortisol, assim como alguns neurotransmissores e neuropéptidos, incluindo o óxido nítrico, a serotonina, a dopamina, a noradrenalida, os opioides, a acetilcolina, a histamina e o ácido gama-amino-butírico.15 O consumo/presença de substâncias psicotrópicas pode também associar-se a uma maior agitação e desinibição sexual, algumas delas vulgarmente usadas nesta faixa etária, como a levodopa e as benzodiazepinas.16
Foram também identificados vários fatores psicossociais como potenciais precipitantes ou agravantes da HD, destacando-se entre eles a instabilidade do humor, padrões pré-mórbidos de atividade e interesse sexual, a falta do parceiro habitual ou identificação incorreta de outra pessoa como o parceiro sexual e a falta de privacidade.16 Nos idosos institucionalizados alguns destes fatores precipitantes verificam-se mais frequentemente, agravados pela falta de formação sobre esta temática junto dos prestadores de cuidados nas instituições.
É unânime a importância de uma abordagem abrangente do doente com HD, devendo esta partir de uma colheita de informação o mais completa possível, envolvendo não só o próprio doente, mas também os seus cuidadores e/ou familiares. Dados como os antecedentes pessoais e a história sexual do doente, quem está envolvido na hipersexualidade e sob que forma esta ocorre, quando e em que contextos esta surge, identificação de potenciais fatores precipitantes ou quais as consequências desse comportamento são algumas das questões a esclarecer.16
Existem instrumentos para avaliar as alterações comportamentais na demência que incluem alguns itens especificamente relacionados com a hipersexualidade (como a Ryden Aggression Scale), ou escalas especificamente desenhadas para avaliar a severidade do comportamento sexual inapropriado (como a St Andrew’s Sexual Behavior Assessment).17
A realização de um exame físico completo e do estado mental e a revisão da medicação em curso são recomendados na abordagem inicial de qualquer doente com HD.17 Nos casos de início abrupto dever-se-á ponderar a eventual realização de alguns exames complementares, como análises ou exames de imagem cerebral.17
No que concerne à terapêutica da HD não se encontra disponível nenhum algoritmo de abordagem empírica pela falta de evidência científica robusta. A maioria dos artigos publicados sobre o tema da HD são relatos ou séries de caso, não existindo ensaios clínicos controlados aleatorizados para estabelecer a eficácia e segurança de muitos dos tratamentos propostos ou frequentemente utilizados.18 Para além destas limitações destaca-se ainda o facto de que a maioria dos estudos foi levada a cabo em homens e doentes institucionalizados.18
Apesar de não existirem algoritmos de tratamento é consensual que a primeira abordagem destes doentes deverá ser não farmacológica, por exemplo através de intervenções ambientais ou comportamentais, envolvendo o próprio, cuidadores e/ou familiares.18 São disso exemplos: a mudança de cuidador para uma pessoa do mesmo género, a adequação do vestuário para peças de roupa mais difíceis de despir ou abrir, a evicção de estímulos visuais como programas ou revistas com conteúdo sexual, não esquecendo a importância da formação dos cuidadores sobre formas de atuação perante situações comportamentais inapropriadas.
Contudo, na prática, aquilo que se verifica é que a abordagem não farmacológica é preterida pela farmacológica, sendo usadas diferentes classes de fármacos cuja ação passa pela redução da líbido e/ou sedação do doente.19 Entre estes constam um vasto leque: antidepressivos, inibidores da colinesterase, antagonistas do recetor histamínico H2, antipsicóticos, anticonvulsivantes, cimetidina, betabloqueantes, antiandrogénios, entre outros.18-19 Salienta-se que nenhum destes ou outros fármacos está aprovado para o tratamento da HD, sendo a sua utilização off label.18-19 Será importante relembrar que na população idosa é frequente a polifarmácia, existindo um maior risco de interações medicamentosas e efeitos adversos.18-19 Uma vez que não existe evidência científica robusta que suporte o uso de determinados fármacos como primeira linha versus segunda linha, a escolha de qualquer tratamento deverá ser individualizada e os seus potenciais riscos/benefícios previamente discutidos com o doente (quando ainda seja possível fazê-lo) e seus cuidadores/familiares. Devido ao facto de a população alvo ser mais frágil e vulnerável, dever-se-á apenas fazer uso da abordagem farmacológica quando se verifique a falência da não farmacológica, tendo presente a regra de prescrição em geriatria start low, go slow.18-19
Por último, relembra-se, pela sua importância, as implicações éticas e médico-legais da avaliação do comportamento sexual inapropriado neste segmento populacional mais envelhecido.18-19
Considerações finais
Devido ao envelhecimento populacional e às mudanças na organização da sociedade e na estrutura e dinâmica das famílias, a demência é um problema cada vez mais prevalente, assim como as suas complicações, como a hipersexualidade. Devido à melhoria da qualidade dos cuidados de saúde pestados prevê-se que esse envelhevimento populacional continue, impondo desafios cada vez maiores à sociedade em geral e aos serviços de saúde. No caso da HD, esta representa um desafio para os próprios doentes, mas acima de tudo para aqueles que os rodeiam e/ou lhes prestam cuidados. Por isso, torna-se urgente a sensibilização e capacitação dos médicos de família e de outros profissionais ou técnicos de saúde para o seu reconhecimento e abordagem. Também o desenvolvimento de soluções que promovam uma sociedade mais integradora devem constituir intervenções prioritárias.
Devido à ausência de evidência científica que fundamente o uso de determinadas classes farmacológicas na abordagem da HD, a abordagem não farmacológica ainda permanece como o tratamento de escolha. Não se recomenda, assim, o uso rotineiro de fármacos devido à existência de informação clínica limitada e insuficiente. Quando se decida optar pelo uso de terapêutica farmacológica importa relembrar que o mesmo será off label. A escolha de qualquer classe de fármaco deverá ser efetuada caso a caso, ponderando os seus potenciais riscos/ benefícios, os quais deverão ser sempre discutidos com o próprio, quando possível, e seus cuidadores/familiares.
Face ao envelhecimento populacional e suas implicações económicas, sociais e no setor da saúde deverão ser revistas e criadas políticas que visem a proteção destes doentes e respetivas famílias. Também a capacitação e formação dos profissionais de saúde sobre as síndromas demenciais e suas complicações revela-se essencial.