Introdução
Adoença provocada pelo vírus SARS-CoV-2, conhecida como COVID-19, pode manifestar-se através de uma grande variedade clínica, desde doentes assintomáticos ou com sintomas ligeiros a moderados, até doentes com complicações como pneumonia grave com necessidade de ventilação mecânica. Estima-se que os doentes assintomáticos ou com sintomatologia ligeira a moderada constituam pelo menos 80-85% dos doentes com COVID-19.1 Assim, um melhor conhecimento sobre o curso da doença, bem como possíveis sinais de agravamento, pode ser de grande importância para uma otimização do seguimento de doentes com esta patologia, crucial na antecipação de possíveis complicações.
O objetivo deste trabalho é a caracterização dos doentes com COVID-19 selecionados e mantidos em vigilância sobreativa pelos cuidados de saúde primários, bem como estudar a sua evolução clínica. Estes são doentes que se apresentam com sintomatologia ligeira a moderada que, seguindo as orientações da Direção-Geral da Saúde (DGS), contactaram com o centro de contacto do Serviço Nacional de Saúde (SNS24), com o seu médico de família ou com uma das Áreas Dedicadas COVID-19 (ADC-Comunidade ou ADC-SU), tendo sido considerados suspeitos de infeção por SARS-CoV-2 e tendo realizado pesquisa por RT-PCR para este vírus. (2 Não apresentando sintomatologia que justifique a reavaliação presencial, estes doentes são orientados a permanecer no domicílio em autocuidados, sendo reavaliados regularmente pela sua equipa de saúde através de contacto telefónico.
Após efetuar uma revisão da literatura existente (utilizando os termos: COVID-19, out-patients, clinical features, surveillance e primary care), os autores constataram que, à data da realização deste trabalho, existiam poucos estudos cuja população alvo fosse constituída pelos doentes de menor gravidade, havendo uma maior linha de investigação nos doentes internados, com necessidade de intervenção clínica presencial. Em Portugal, até esta data, não foram encontrados estudos que avaliassem os doentes com quadros ligeiros a moderados, mantidos em vigilância pelo médico de família.
A maioria dos estudos cujo objetivo era definir as características clínicas e o prognóstico dos doentes COVID-19 com sintomas ligeiros a moderados foi desenvolvida na China, onde os doentes positivos eram sempre internados em instituições de saúde específicas para esta patologia, não havendo um sistema de seguimento domiciliário como acontece em Portugal. (3 Nestes estudos, a maioria dos doentes apresentava febre (100%), astenia (83%) e tosse (50%), tendo como outros sintomas odinofagia (33%), cefaleia (25%) e diarreia (17%).3
Um outro estudo, realizado em França, incluiu 1.487 doentes que contactaram a linha de emergência nacional e foram considerados doentes com COVID-19. (4 Este estudo avaliou as características clínicas dos doentes infetados com SARS-CoV-2 que se encontravam no domicílio (de notar que o critério de inclusão como «doente positivo» se baseou em pesquisa de SARS-CoV-2 por PCR positiva ou sintomas de COVID-19 - febre e tosse). Este estudo concluiu que a variabilidade de sintomas é muito elevada, sendo que os mais frequentes são os sintomas gripais: febre, tosse, astenia e mialgia ou cefaleia. Concluiu também que a anosmia e ageusia se tornaram sintomas cardinais de COVID-19, estando presentes nesse estudo em 23% e 28% dos doentes, respetivamente.
Assim, conforme referido, este trabalho tem como objetivo caracterizar os doentes com COVID-19 selecionados e mantidos em vigilância sobreativa pelos cuidados de saúde primários, bem como estudar a sua evolução clínica.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional e descritivo. A população em estudo era constituída pelos indivíduos com infeção confirmada por SARS-CoV-2, inscritos na plataforma Trace COVID-19 e atribuídos à unidade funcional USF Rodrigues Miguéis (USFRM), ACeS Lisboa Norte, desde o dia 26 de março até ao dia 30 de junho de 2020. Definiu-se como critério de inclusão o resultado positivo para pesquisa por RT-PCR de SARS-CoV-2 em amostras do trato respiratório superior. Foram excluídos os doentes que se recusaram a participar, assim como os doentes provenientes de internamento hospitalar motivado por doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2.
No início do processo de recolha de dados foram identificados os doentes com infeção confirmada por SARS-CoV-2, inscritos na plataforma Trace COVID-19 e atribuídos à unidade funcional USFRM. Foi pedido que sempre que um médico assistente desta USF identificasse na plataforma Trace COVID-19 um doente da sua lista de utentes com infeção confirmada por SARS-CoV-2 obtivesse, aquando do contato telefónico de vigilância, o consentimento verbal do doente para notificar os investigadores. Caso existisse consentimento, o médico preenchia os campos de caracterização do doente da ficha de notificação em formato Microsoft Word® e, à data da alta, notificava os investigadores, que contactavam telefonicamente o doente ou o seu representante legal e, mediante consentimento telefónico, recolhiam os dados em falta na sua ficha individual. Para além disto obtiveram-se dados a partir do processo eletrónico da USFRM (Medicine One®) ou do Registo de Saúde Eletrónico (RSE) por consulta do processo do doente ou representante legal aquando da recolha de consentimento.
O conjunto de dados obtidos foi reunido e organizado numa base de dados em formato Microsoft® Excel, especificamente destinada ao estudo, acessível apenas aos investigadores, onde se procedeu à análise estatística. Foram avaliadas as seguintes variáveis: número de casos; caracterização demográfica dos casos; caracterização clínica dos casos, nomeadamente sintomas mais frequentes, duração da sintomatologia e comorbilidades; caracterização da evolução da doença, nomeadamente quantificação do número de casos com necessidade de avaliação em ADC-Comunidade, serviço de urgência e/ou internamento ou óbito; caracterização laboratorial, nomeadamente instituição em que o doente se encontrava, sendo que esta informação foi transmitida no intervalo de tempo entre diagnóstico e cura laboratorial. Os dados incompletos ou em falta foram considerados como desconhecidos e tidos em conta na análise estatística qualitativa, sendo retirados da análise quantitativa.
Questões éticas
Obtiveram-se autorizações e consentimentos para a realização do estudo da diretora executiva do ACeS Lisboa Norte, da coordenadora e dos médicos de família da USF Rodrigues Miguéis. O estudo foi ainda submetido à apreciação da Comissão de Ética para a Saúde, da ARS Lisboa e Vale do Tejo, tendo sido deliberado parecer favorável sem restrições de natureza ética a 10 de julho de 2020 (parecer n.º 035/CES/INV/2020).
O consentimento informado foi obtido por via oral, aquando do contacto dos investigadores para a recolha de dados. Este foi padronizado de acordo com o “guião para consentimento informado, esclarecido e livre verbal (contacto telefónico)”, elaborado previamente pelos investigadores, e validado por meio de gravação da chamada telefónica (se autorizada pelo doente). Foi garantida a proteção e confidencialidade dos dados pessoais e de saúde dos utentes selecionados.
Resultados
No período de análise identificou-se um total de 51 indivíduos com infeção confirmada por SARS-CoV-2 inscritos na plataforma Trace COVID-19 e atribuídos à unidade funcional USF Rodrigues Miguéis. Foram excluídos dez indivíduos, quatro dos quais porque nunca atenderam os contactos telefónicos efetuados pelos investigadores, outros quatro seguidos por médicos fora da instituição e ainda dois provenientes de internamento hospitalar motivado por doença provocada por infeção pelo vírus SARS-CoV-2.
Deste modo, a amostra final foi de 41 indivíduos, dos quais 22 (53,7%) eram do sexo feminino. A média de idades da amostra foi de 44,9 anos, variando entre uma idade mínima de três e máxima de 97 anos, sendo a mediana de 43 anos.
Do total da amostra, 12,2% dos doentes não apresentava qualquer sintoma (n=5). Nos doentes sintomáticos foi possível verificar que a duração média dos sintomas foi de 16,4 dias, variando entre o mínimo de um dia e o máximo de 57 dias, sendo que a mediana foi de 13,5 dias. Relativamente à duração da vigilância realizada através da plataforma Trace COVID-19 constatou-se que a duração média de dias de vigilância foi de 30,6 dias, variando entre o mínimo de 10 e o máximo de 58 dias de vigilância (Tabela 1).
À data do período de estudo o critério de cura e consequente alta da vigilância sobreativa era determinado por um teste laboratorial (RT-PCR) negativo. Muitos doentes apresentavam testes positivos após o período de isolamento determinado e mesmo após o término do período sintomático, tendo sido verificado no presente estudo que os sintomas acabavam em média 3,7 dias antes da última pesquisa de SARS-CoV-2 positiva. Constatou-se ainda que o número máximo de dias entre o fim dos sintomas e a pesquisa de SARS-CoV-2 positiva foi de 31 dias. Adicionalmente foi apurado que em 46,3% dos indivíduos o fim dos sintomas foi antes da data da última pesquisa de SARS-CoV-2 positiva.
De entre a sintomatologia estudada, a mialgia foi a mais prevalente (61%), seguida da cefaleia (58,5%) e do cansaço (56,1%). O sintoma menos prevalente foi o vómito (4,9%) (Figura 1). Os sintomas mais comummente observados nos indivíduos com uma duração de sintomas superior a 14 dias (36,1% dos doentes sintomáticos) foram mialgias (30,7%), cansaço (30,7%), anosmia (23,1%), ageusia (23,1%) e cefaleia (23,1%).
Quanto às comorbilidades dos indivíduos estudados, a patologia mais frequentemente encontrada foi a hipertensão arterial (22% dos casos), seguida da obesidade (19,5%) - Figura 2.
De acordo com a evolução clínica, seis doentes (14,6%) tiveram necessidade de ser observados a nível do atendimento de doentes COVID da comunidade (ADC-Comunidade) ou a nível hospitalar (ADC-SU) (Figura 3).
Discussão
No período em que o estudo foi realizado, tendo em conta os Relatórios de situação epidemiológica em Portugal, da DGS, durante o período de 26 de março até 30 de junho de 2020, foram notificados 38.979 casos de infeção por SARS-CoV-2 confirmados em Portugal, o que corresponde a 0,37% da população portuguesa. (5)- (6 Uma vez que na USF Rodrigues Miguéis estavam inscritos à data 14.340 utentes, (7 os 51 indivíduos com infeção confirmada por SARS-CoV-2 inscritos na plataforma Trace COVID-19 atribuídos à USF durante esse período correspondem a 0,35% do total de utentes da USF Rodrigues Miguéis, o que vai ao encontro do valor a nível nacional nessa data.
Do total de indivíduos incluídos no estudo, a maioria era do sexo feminino (53,7%), numa proporção próxima à da população portuguesa e semelhante ao observado em estudos anteriores. (4), (8 A média de idades da amostra foi de 44,9 anos, variando entre uma idade mínima de três e máxima de 97 anos, o que é concordante com a evidência existente, de que a infeção pode ser contraída em qualquer idade. (9
Os resultados deste estudo demonstram que 12,2% dos doentes incluídos não apresentaram qualquer sintoma, o que corrobora a literatura existente. (10 De entre a sintomatologia apresentada, os sintomas gripais como as mialgias (60,98%), as cefaleias (58,5%), o cansaço (56,1%) e a tosse (48,8%) foram os mais frequentemente encontrados, o que se verifica em outros estudos cujo alvo foram os doentes com sintomas ligeiros a moderados. (4), (11 A febre não foi um sintoma muito frequente (31,7%). Outros sintomas, inicialmente subvalorizados no período do estudo em Portugal, têm vindo a ser considerados muito relevantes nos doentes com COVID-19, em especial nos casos ligeiros a moderados, como são a anosmia e a ageusia. A sua prevalência neste estudo, 34,2% e 17%, respetivamente, é mais elevada do que a reportada em estudos prévios. (4
A duração média dos sintomas neste estudo foi de 16,4 dias, variando entre um e 57 dias, sendo que a mediana foi de 13,5 dias. Estes valores não diferem muito do que foi observado em estudos prévios, cuja duração média dos sintomas se situou entre dez e quinze dias. (8 Os sintomas mais comuns observados nos indivíduos que tiveram uma duração de sintomas superior a catorze dias (36,1% dos doentes sintomáticos) foram: mialgias (30,7%), cansaço (30,7%), anosmia (23,1%), ageusia (23,1%) e cefaleia (23,1%).
A vigilância sobreativa em Trace COVID-19, segundo as normas da DGS, corresponde à vigilância diária efetuada pelos médicos de família aos doentes sintomáticos, independentemente do doente ter ou não um teste positivo para o SARS-CoV-2. (12 Existe uma diferença entre a duração média dos sintomas dos indivíduos (16,4 dias) e a duração média de dias da vigilância sobreativa (30 dias), uma vez que à data da realização do estudo a norma de orientação clínica em vigor em Portugal preconizava que a cura dos doentes sem internamento hospitalar era determinada por um teste laboratorial (RT-PCR) negativo, realizado, no mínimo, catorze dias após o início dos sintomas. (2 No que diz respeito à relação entre o fim dos sintomas e a pesquisa de SARS-CoV-2 positiva posteriormente, vários estudos indicam que, mesmo em doentes recuperados, o RNA do vírus SARS-CoV-2 pode ser detetado nas vias respiratórias superiores doze semanas após o início dos sintomas. (13), (14), (15 Estes dados vão ao encontro dos 46,3% dos indivíduos do estudo, em que o fim dos sintomas foi anterior à data da última pesquisa de SARS-CoV-2 positiva. Posteriormente, as orientações internacionais concluíram que, nos doentes COVID-19 com sintomatologia ligeira a moderada, dez dias após o início dos sintomas não foi detectado vírus replicativo competente nas vias respiratórias, (16 o que levou à alteração dos critérios de alta clínica presentes na atual norma de orientação clínica nacional, passando a preconizar a alta destes doentes após dez dias de isolamento, sem necessidade de realização de teste de cura. (2
Dos indivíduos incluídos neste estudo, seis tiveram necessidade de avaliação médica presencial durante a vigilância (14,6%). Três desses doentes tinham asma, tendo sido ajustada a sua terapêutica broncodilatadora e posteriormente dada alta para o domicílio. Dois doentes, que tinham como antecedentes pessoais perturbação depressiva, foram observados no serviço de urgência com queixas de dispneia e toracalgia, tendo ambos tido alta para o domicílio com diagnóstico de ansiedade associada à infeção por SARS-CoV-2. Por fim, apenas um dos doentes avaliados no serviço de urgência teve necessidade de internamento. Este doente apresentava obesidade como única comorbilidade conhecida. Esta é hoje reconhecida como um dos fatores de risco para complicações associadas à COVID-19, a par da idade (acima dos 65 anos), das doenças cardiovasculares, da doença pulmonar crónica, da hipertensão arterial e da diabetes. (10), (17
Em relação a possíveis limitações do estudo existe um possível viés de recolha de dados, uma vez que se trata de um estudo retrospetivo, baseado na recolha de informação através do contacto telefónico com os doentes, o que poderá ter afetado a recolha de datas exatas, já que alguns dos indivíduos tinham tido a doença várias semanas atrás, bem como um possível viés do entrevistador, dado que os investigadores inquiriram diretamente os utentes.
Conclusão
A pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 teve um grande impacto a nível mundial, colocando à prova a saúde mental e física de todos os cidadãos.
Os doentes com sintomatologia ligeira, sobre os quais incidiu o estudo realizado, são seguidos em Portugal pelo seu médico de família. Com este trabalho concluiu-se que a sintomatologia apresentada por estes doentes varia em tipologia e duração, mas ainda assim é próxima à observada em outros estudos semelhantes. Para além disso, constatou-se que os doentes se sentiam agradados pelo contacto diário com o seu médico, havendo a perceção de que o mesmo funcionou igualmente como suporte emocional na vivência desta patologia, à data ainda bastante desconhecida. O médico de família é a peça chave neste seguimento e na integração de cuidados, desde o acompanhamento clínico por telefone à referenciação de doentes COVID, quer para o ADC na comunidade quer para o ADC no serviço de urgência. Ao longo deste período de vigilância tem ainda a cargo as questões burocráticas (como a emissão do certificado de incapacidade temporária), o reforço das medidas de isolamento e possíveis sinais de alarme para os quais o doente deve estar atento. Pelo menos 80 a 85% dos doentes em vigilância sobreativa ficaram a cargo do seu médico de família, que neste período teve de redirecionar a sua atividade clínica em grande parte para esta função.
Se a maioria dos doentes infetados recupera em algumas semanas, outros há em que os sintomas como o cansaço e a dispneia persistem durante muito tempo, causando impacto significativo na vida diária, o designado COVID longo. (18 O médico de família terá aqui também um papel fundamental, não só na deteção desta síndroma, como no acompanhamento a longo prazo destes doentes.