Introdução
A miosite aguda benigna da infância é uma doença muscular rara que acompanha infeções virais agudas e é observada principalmente em crianças em idade escolar.1 Tem uma incidência estimada, durante a época de gripe, de 2,6 casos por 100.000 crianças. 2
Trata-se de uma doença que é reportada sobretudo durante as epidemias de Influenza A e B, por estar relacionada com estes vírus. 3-4 Ocorre normalmente 24 a 48h depois da resolução dos sintomas respiratórios superiores iniciais (febre, tosse, coriza) e é habitualmente autolimitada. A queixa principal é a mialgia, que surge mais frequentemente na região do dorso e membros inferiores (sendo comum dor nos gastrocnemius), podendo dificultar a marcha. 1 Apresenta-se tipicamente com um quadro de uma criança que se recusa a andar por dor súbita nesta região, associada a marcha em pontas por dor à tentativa de dorsiflexão dos pés. 5-6
Existe elevação das enzimas de lesão muscular até 20 a 30 vezes superior ao normal, embora a rabdomiólise seja rara. O diagnóstico faz-se pela clínica, associada a elevação da CK e estudo virológico de secreções. (11) O quadro tipicamente resolve-se entre três a dez dias, com necessidade apenas de tratamento de suporte. 7,11
O presente relato de caso pretende alertar para este diagnóstico, pouco frequente nos cuidados de saúde primários, cuja clínica súbita leva a preocupação dos pais, devendo ser corretamente avaliada e referenciada de forma atempada. Apesar de situações de rabdomiólise serem raras beneficiam de urgente avaliação e estudo analítico para adequado tratamento.
Descrição do caso
Criança do sexo masculino, oito anos, de nacionalidade portuguesa, raça caucasiana, a frequentar o 3º ano escolar com bons resultados. Inserido numa família nuclear na fase IV do ciclo familiar de Duvall. Vive com os pais numa habitação com boas condições higieno-sanitárias e tem um cão desparasitado e vacinado.
Como antecedentes pessoais apresenta: parto pré-termo de 34+5 semanas, com necessidade de internamento no serviço de neonatologia por baixo peso e icterícia; seguimento em consulta de cardiologia até aos quatro anos por sopro cardíaco, que resolveu espontaneamente; adenoidectomia e amigdalectomia bilateral em 2019. Desde a alta de internamento no período neonatal apresenta desenvolvimento estato-ponderal harmonioso e adequado à idade. Sob alimentação diversificada e sem intolerâncias. Sem antecedentes familiares de relevo. Tem o Plano Nacional de Vacinação atualizado, incluindo vacina BCG e duas doses da vacina contra o rotavírus.
Recorre à consulta aberta em novembro de 2019 por febre com pico máximo de 38,8 °C, que cede ao paracetamol, e tosse com dois dias de evolução, sem diarreia, vómitos ou outra sintomatologia. Ao exame objetivo não apresentava alterações de relevo. Foi medicado com paracetamol para controlo da temperatura e reforço de hidratação oral.
Volta à consulta aberta três dias depois por manutenção do quadro de febre, com cerca de quatro picos diários, que cediam ao paracetamol, tosse com acessos emetizantes. Associadamente refere desenvolvimento de dor na região do músculo gastrocnemius bilateralmente, associada a dificuldade na marcha.
À observação objetiva-se orofaringe ruborizada, dor à palpação dos gastrocnemius bilateralmente e marcha em pontas com incapacidade total de colocar a planta do pé no chão.
Foi referenciado para avaliação no serviço de urgência hospitalar pediátrico, que confirmou a história clínica e exame objetivo, motivando a realização de estudo analítico. Este revelou elevação de AST 191U/L [N: 5-34U/L], CK 7110U/L [N: 30-200U/L], mioglobina 1935ng/mL [N<146,9ng/mL], função renal e ionograma sem alterações (Na+ 139mEq/L, K+ 3,8mEq/L, CL- 101mEq/L). Realizou ainda sedimento urinário, que não apresentou alterações. Por suspeita de miosite vírica foi proposto internamento para fluidoterapia intravenosa e manutenção de cuidados, o qual foi aceite pelo tutor da criança.
No primeiro dia de internamento foi identificado o vírus Influenza B no estudo virológico de aspirado nasofaríngeo e iniciada terapia antivírica com oseltamivir, que cumpriu durante quatro dias. Determinou-se, assim, o diagnóstico de miosite vírica por Influenza B.
Teve alta por melhoria clínica e analítica (AST 58U/L, CK 784U/L, mioglobina 27,6ng/mL à data de alta) após quatro dias de internamento, com indicação para reforço da hidratação oral e repouso no domicílio.
Comentário
A infeção pelo vírus Influenza pode despoletar o atingimento de diversos órgãos e sistemas. Na maioria dos casos apresenta-se como um quadro ligeiro, mas pode levar a complicações como pneumonia, encefalite, miocardite e miosite. Nestes casos é importante um diagnóstico rápido e uma abordagem urgente das complicações. 8 Com este relato de caso pretende-se alertar para potenciais complicações que possam advir de um diagnóstico vulgar de infeção da gripe sazonal.
A miosite vírica pode ser compreendida como uma complicação rara da gripe sazonal que, apesar de maioritariamente benigna na idade escolar, pode complicar ainda com rabdomiólise e subsequente lesão ou falência renal.9 Na maioria dos casos, a miosite vírica surge com mialgias ligeiras que, por conferir uma clínica mais frustre, pode não sugerir o diagnóstico. 11
Como evidenciado no caso relatado, o prognóstico de miosite por Influenza B é bom e não existe risco de evolução para miosite crónica, como na maioria das miosites víricas. As exceções de organismos potencialmente causadores de miosite crónica são o Echovirus e o vírus da imunodeficiência humana. 10
Nos cuidados de saúde primários, o médico de família deve estar alerta para a sintomatologia adicional suspeita e menos habitual de quadros víricos, para efetuar uma referenciação e investigação atempada e adequada. Sabe-se que a rabdomiólise pode ocorrer até 14 dias após início dos sintomas respiratórios superiores, devendo este ser um diagnóstico à cabeça sempre que existir história de sintomas respiratórios ligeiros nas duas semanas anteriores. 11
Realça-se o benefício de aumentar a acessibilidade na reavaliação de certos casos com sintomatologia respiratória aguda, minimizando complicações e eventuais sequelas que possam advir de quadros víricos com atingimento de outros órgãos. Ainda mais num período de pandemia, em que o atendimento de doentes respiratórios é realizado com um elevado número de condicionantes, é importante definir meios para feedback e reavaliação dos doentes. Como meios de feedback sugerem-se, como alternativas: a) agendamento de consulta telefónica para o médico de família para reavaliação do quadro após um a três dias; b) criação de contactos de email ou telefónico específicos para a necessidade de reavaliação de situações agudas, fornecidos em consultas que o médico entende ser necessário - a resposta a estes contactos poderia ser feita em horário específico com escala médica rotativa; c) elaboração de documento de autorização de consulta extra horário, a ser fornecido pelo médico em situações específicas e a ser efetivado de acordo com os sinais de alarme explicitados; d) alocação de uma a duas vagas de consulta aberta/agudos por dia e por unidade para situações de reavaliação de quadros agudos previamente observados num dos recursos de consulta do ACeS.