No filme Beleza Oculta, Howard Inlet desafia-nos a pensar qual é o nosso porquê. O porquê de escolhermos esta roupa hoje, o porquê de não apreciarmos a paisagem da nossa janela hoje, o porquê de comprarmos este telemóvel, o porquê de ficarmos emocionados com aquela música, o porquê de comprarmos aquele livro, o porquê de irmos trabalhar hoje, o porquê de escolhermos aquele destino de férias... Ele resume a resposta a três palavras: amor, tempo e morte. No final do dia, todos queremos amor, desejávamos ter mais tempo e tememos a morte.
Mas será que tememos mesmo a morte ou tememos não ter vivido o dia, a vida como queríamos? A Dra. Ana Cláudia Quintana Arantes diz-nos, num dos seus livros, que a melhor forma de viver cada dia é vivê-lo de forma a podermos deitar a cabeça na almofada e sentir paz por viver um dia honesto.1 No final dos finais dos nossos dias, será que a soma de todos os dias honestos leva a uma vida honesta e realizada?
Cada idoso é um livro, uma história de amor, um drama ou até mesmo uma comédia. É urgente vermos os nossos idosos como anciãos, todos com sábios ensinamentos para nos encantar, todos um livro em processo de escrita, ainda por ler, e à espera de um final. Podemos usar o tempo e o amor para ajudar a que esse final do livro seja um dia que vale a pena viver.
Nós, médicos de família, estamos no ciclo da vida do idoso e também do seu cuidador, o nosso papel vai desde a prevenção da doença e promoção da saúde até à preparação para a morte, passando pelo tratamento do corpo e do espírito. Cuidar de um utente da nossa lista é muito mais que tratar-lhe as mazelas do corpo ou dar-lhe receitas para o bem-estar físico e mental. Eu arriscar-me-ia a dizer que muitos utentes quando vão ao médico de família sabem já dentro de si o que deveriam fazer para serem mais honestos consigo mesmos e eficazmente melhorarem o seu corpo e a sua vida. O sofrimento dos nossos utentes vai muito mais além do físico, está dependente das abstrações social, familiar, emocional e espiritual e, no final, da fusão de todas elas.
Está já bem enraizada na nossa civilização a necessidade e utilidade dos cursos de preparação para o parto e parentalidade. Não é tabu falar disso, todos compreendem a sua importância. Com o envelhecimento populacional cada vez mais acentuado não será igualmente importante dar formação e apoiar as pessoas em fim de vida e quem delas cuida?
O National Health Service, em Inglaterra, contempla cuidados cada vez mais personalizados aproveitando ao máximo a experiência, a capacidade e o potencial dos utentes, famílias e comunidades. Neste contexto, desde 2016 estão a implementar, em cinco áreas do país, orçamentos pessoais de saúde que oferecem uma oportunidade de atendimento mais personalizado nos últimos meses de vida, com benefícios para os utentes, suas famílias e cuidadores e para o sistema em geral. Por outro lado, têm também implementado um serviço de prescrição social e suporte baseado na comunidade que procura responder às necessidades sociais, emocionais e práticas dos utentes. 2
Na USF Baixa, em Lisboa, iniciaram, em 2018, um projeto de prescrição social que, à semelhança do que acontece em Inglaterra, estabelece a ponte entre os doentes e seus cuidadores e as respostas e apoios sociais disponíveis na comunidade. 3
Em Portugal, o movimento internacional «Comunidades Compassivas» deu os primeiros passos em 2019, existindo já três cidades compassivas (Borba, Porto e Amadora). Este movimento assenta em três pilares fundamentais: sensibilização e consciencialização do processo de fim de vida como um processo normal e expectável para todos os seres humanos; formação e capacitação dos cuidadores; intervenção e criação de redes de cuidados, que vão além das componentes social e de saúde, envolvendo toda a comunidade. 4-5
A Associação pela Dignidade na Vida e na Morte (AMARA), sediada em Lisboa, com estatuto de IPSS e reconhecida pela Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT) como entidade formadora, disponibiliza cursos como Abraçar a Vida, Aceitando a Morte e Doula de Fim de Vida. Estes e outros cursos contribuem para que a doença, o envelhecimento e a morte sejam encarados como parte do processo natural que é a vida. 6
Na zona norte de Portugal existe o projeto Cuidar de Quem Cuida (CQC) que foi reconhecido como uma iniciativa de empreendedorismo social inovadora ao nível da intervenção junto de cuidadores informais (CI). O projeto tem como missão promover respostas de apoio especializado aos CI, com a colaboração de técnicos de diferentes áreas de formação, nomeadamente: serviço social, enfermagem, medicina, fisioterapia, psicologia, direito, entre outras. O modelo de replicação/implementação das respostas CQC assenta no potencial de transformação social e sustentabilidade. Desenvolve-se num formato cascata e parte da mobilização dos recursos (humanos, físicos e/ou materiais) já existentes na comunidade, potenciando a disseminação das boas práticas e rentabilizando recursos já existentes no território. 7
O médico de família tem uma posição privilegiada em todo o ciclo de vida do utente, sendo o profissional de saúde mais apropriado para identificar, precocemente, situações que beneficiem de formação em cuidados de fim de vida. Os projetos referidos anteriormente aplicados aos cuidados de saúde primários, de uma forma sistematizada e com uma abordagem holística deste tema, seriam uma mais-valia para o doente, cuidador e para o sistema de saúde em geral.
Finalizo com uma reflexão. Porque será que tantos de nós têm medo de falar da morte e, mais importante ainda, de falar no tanto que há a fazer antes. O sofrimento existe, é real, faz parte da vida, a morte é real, faz parte da vida. Não é certo que vamos ter a profissão que sonhávamos ou a casa que queríamos, ou fazer aquela viagem mágica, ou ter filhos... mas é certo que vamos morrer. Proponho que o façamos da forma mais honesta e bonita possível. Porque, quando pouco há a fazer pela doença, há ainda muito a fazer pela pessoa e pela sua história de vida.
Agradecimentos
Agradeço à Dra. Manuela Bertão, médica especialista em Medicina Interna, com quem fiz estágio em cuidados paliativos, por me ajudar a ver muito além da componente física da nossa essência. Um dos seus artigos serviu de inspiração a esta minha reflexão: Bertão MV. Precisamos de acabar com o medo de viver [homepage]. Activa. 2021 Oct 11. Available from: https://activa.sapo.pt/diz-quem-sabe/2021-10-11-precisamos-de-acabar-com-o-medo-de-viver/