Introdução
A síndroma da origem anómala da coronária direita a partir da artéria pulmonar (síndroma ARCAPA, em inglês) é uma malformação cardíaca congénita rara, com uma prevalência estimada de 0,002%. Até à data existem apenas cerca de 200 casos descritos mundialmente.1 Do ponto de vista clínico, a maioria dos doentes mantém-se assintomática durante vários anos, sendo o diagnóstico estabelecido habitualmente de forma acidental. 2
Quando sintomáticos, os doentes podem apresentar dor torácica, dispneia ou, ao exame objetivo, a presença de um sopro cardíaco. Em casos mais graves, a síndroma ARCAPA pode cursar com enfarte agudo do miocárdio, insuficiência valvular ou morte súbita. 3 Dados os riscos descritos, a literatura é consensual em recomendar a intervenção cirúrgica, inclusive em doentes assintomáticos. 1
Numa fase assintomática, o diagnóstico pode gerar incompreensão e dificuldade de aceitação por parte do doente e seus familiares. Tendo em conta o potencial impacto sobre a saúde e bem-estar que o diagnóstico pode causar, o médico de família (MF) deve ser capaz de adotar uma abordagem focada nos aspetos biológicos e clínicos, conjugando-os com a componente psicossocial da doença. Neste artigo pretende-se descrever um caso raro de síndroma ARCAPA, bem como ilustrar o papel do MF na gestão das repercussões desta patologia.
Descrição do caso
Identificação
Doente do sexo masculino, 48 anos, casado, com o décimo segundo ano de escolaridade. Trabalha como chefe de equipa numa empresa multinacional, sendo que, pela necessidade de cumprimento de objetivos, se encontra inserido num ambiente de elevado stress. Apresenta como antecedentes pessoais perturbação da ansiedade generalizada, medicado com escitalopram 10 mg id. Nega antecedentes familiares de doença cardíaca. Fuma três cigarros por dia (12,5 Unidades Maço-Ano) e nega hábitos alcoólicos ou tóxicos. Pratica exercício físico de alta intensidade (ciclismo de estrada e corrida) pelo menos três vezes por semana, desde há vários anos. Desconhece alergias alimentares ou medicamentosas.
Pertence a uma família nuclear, com três elementos, em fase V do ciclo de Duvall, de classe socioeconómica média alta (classe II na classificação de Graffar). Trata-se de uma família altamente funcional, segundo o APGAR familiar de Smilkstein (9 pontos).
História da doença atual
Em 19/03/2019, o utente recorreu à consulta com o MF para reavaliação da perturbação da ansiedade generalizada. Referia sentir-se bem, sem agravamento da sintomatologia e com boa adaptação à medicação habitual. Relatou que, há cerca de um mês, tinha recorrido ao serviço de urgência hospitalar por febre e dispneia com três dias de evolução. Por suspeita de pneumonia realizou tomografia computorizada (TC) de tórax que, para além de confirmar a suspeita clínica (“consolidação peribroncovascular compatível com broncopneumonia”), mostrava ainda “ectasias vasculares pericárdicas extensas, a merecer estudo por angioTC cardíaco (varizes?)”. Encontrava-se assintomático do ponto de vista cardiorrespiratório e a auscultação pulmonar e cardíaca não apresentavam alterações de relevo. Pelo achado imagiológico procedeu-se à referenciação para o serviço de cardiologia do hospital da área de residência.
Nova avaliação em consulta com o MF em 19/09/2019, após observação prévia em consulta de cardiologia. Segundo a informação verbal fornecida pelo utente encontrava-se ainda em investigação, sem diagnóstico estabelecido. Com autorização do doente consultou-se o Registo de Saúde Eletrónico e constatou-se a realização de coronariografia em 09/09/2019, salientando-se “(…) coronária esquerda única extremamente ectásica com trajetos fistulosos aparentemente múltiplos. Aorta de calibre normal, sem insuficiência aórtica significativa”. Na sequência deste exame, o utente foi informado de que o diagnóstico definitivo teria de ser firmado por coronariografia por TC (angioTC). Ao longo da entrevista foi percetível a preocupação e ansiedade do doente face ao seu estado de saúde. Como tal, optou-se por manter a medicação instituída na mesma dosagem, tendo sido ainda decidido o agendamento periódico de consultas de reavaliação para uma maior vigilância do estado de saúde e do humor do doente. Durante o período inicial da pandemia de COVID-19, este seguimento manteve-se através de consultas telefónicas, segundo plano de contingência adotado pela unidade funcional.
Em 12/06/2020, o utente realizou angioTC, que evidenciou “origem anómala da coronária direita com ostium no tronco da artéria pulmonar. Desenvolvimento marcado de colaterais e dilatação acentuada de toda a árvore coronária. Sem doença coronária aterosclerótica”. Em consulta de cardiologia foi-lhe explicado o prognóstico da doença, quais as opções terapêuticas disponíveis, tendo ainda sido recomendada a suspensão da prática de exercício físico. Em 16/07/2020 foi reavaliado presencialmente em consulta com o MF, trazendo carta com informação clínica do serviço de cardiologia. Embora o utente se mostrasse esclarecido face à doença e quanto aos riscos associados à continuação da prática de exercício, de um ponto de vista emocional era notória alguma incompreensão face a esta recomendação, nomeadamente pela ausência de sintomatologia associada (“Se me sinto bem, porque é que tenho que parar? Se não me tivessem descoberto isto ia continuar com a minha vida igual”). Mencionava também não se encontrar disponível, de momento, para considerar uma possível intervenção cirúrgica.
De modo a ir ao encontro das expectativas do doente, mantendo o compromisso de assegurar a melhor gestão possível desta patologia, o MF traçou um plano que assentou em três vertentes: revisão da literatura disponível sobre o tema, agendamento de uma reunião com a cardiologista assistente e reagendamento de consulta com o utente a fim de realizar avaliações familiares.
A reunião com cardiologia permitiu conhecer o ponto de vista da especialidade, em particular sobre o prognóstico da doença e do impacto de uma eventual intervenção cirúrgica. Foram também debatidas as opções do doente, nomeadamente a manutenção do exercício físico e a rejeição da cirurgia, mesmo após ter sido informado dos riscos subjacentes a estas decisões.
Foi agendada nova consulta para 25/11/2020, na qual se procedeu à realização do genograma familiar com psicofigura de Mitchell (Figura 1). Pela sua análise verificou-se uma relação excelente com os membros do agregado familiar (esposa e filho) e uma relação distante com os restantes familiares, nomeadamente com pais e irmãos. Face a esta informação foi decidido convidar a esposa a estar presente numa consulta subsequente, tendo o doente consentido.
Em 15/03/2021 recorre a nova consulta com o MF, acompanhado pela esposa. Abordaram-se os temas da última consulta de cardiologia, na qual foi novamente recomendada a redução da prática de exercício físico. Foram explorados os sentimentos de ambivalência face às recomendações dadas, tendo o doente manifestado que o exercício era a sua forma de lidar com a ansiedade gerada pela atividade laboral (“Acho que só me vai fazer pior, o desporto sempre fez parte da minha vida!”). Abordou-se novamente a possibilidade de correção cirúrgica e foram explorados os receios face a esta questão (“Agora estou bem, nada me garante que não «fique» no bloco!”). Foi dado espaço para ventilação e validação das emoções, privilegiando-se a escuta ativa durante toda a consulta. A esposa revelou estar a par da informação sobre a doença e das decisões tomadas, mostrando-se envolvida na partilha da responsabilidade sobre as mesmas. No final da consulta, o utente manteve-se irredutível face à suspensão do exercício.
Na última consulta veio novamente acompanhado pela esposa, trazendo informação clínica do serviço de cardiologia. Tinha realizado ecocardiograma transtorácico, que revelava “imagem compatível com dilatação coronária proximal. Hipertrofia ligeira do septo interventricular. Boa função sistólica global do ventrículo esquerdo (FEVE 71%) e direito. Aparelhos valvulares sem alterações morfológicas. Sem dilatação das câmaras cardíacas”, sem outras alterações. Realizou também prova de esforço máxima, sem evidência de isquémia miocárdica e com boa capacidade funcional. Encontrava-se assintomático do ponto de vista cardiovascular, mantendo exercício físico de alta intensidade. No dia da consulta teria realizado 60 km em bicicleta de estrada, atingindo uma frequência cardíaca (FC) máxima de 150 batimentos por minuto (87,2% da FC máxima para idade, configurando exercício físico de alta a muito alta intensidade). Referia estar em abstinência tabágica desde há três meses.
Mantinha-se consciente da decisão tomada, com um envolvimento maior da esposa na partilha da decisão. Assim, para além do reforço positivo para abstinência tabágica, respeitou-se e apoiou-se a decisão do doente, estabelecendo-se uma relação de confiança, aliança e empatia com o utente. Atualmente mantém-se em seguimento nas consultas de medicina geral e familiar e de cardiologia para vigilância de aparecimento de eventuais sintomas.
Conclusão
As malformações cardíacas congénitas compreendem um amplo espectro de alterações. Dentro deste grupo destacam-se, pela sua raridade e gravidade, as anomalias das artérias coronárias, com uma incidência que varia entre 0,2% e 5,6%.4 Também estas podem ter diversas apresentações clínicas, consoante a origem respetiva das artérias coronárias. A origem anómala da coronária esquerda a partir da artéria pulmonar (ALCAPA) é diagnosticada na infância, sendo que, sem intervenção cirúrgica, a mortalidade no primeiro ano de vida é superior a 90%.5 Pelo contrário, na ARCAPA o tempo de evolução até ao surgimento de sintomas é variável, dependendo do tipo de anomalia, da direção do fluxo de sangue nos vasos anómalos e da extensão da circulação colateral. Em termos fisiopatológicos, na ARCAPA o sangue oxigenado circula retrogradamente pela artéria anómala, dada a diferença de pressão entre a circulação sistémica e pulmonar, induzindo-se um fenómeno «de roubo» entre as artérias coronárias direita e esquerda. 3 Caso não haja capacidade para suprir a necessidade tecidular de oxigénio, pode ocorrer isquémia miocárdica e, como tal, o surgimento de outras manifestações clínicas, como angina, dispneia, enfarte agudo do miocárdio ou morte súbita. É este mecanismo fisiopatológico que explica a variabilidade da sintomatologia desta síndroma e, por conseguinte, que o diagnóstico possa ser estabelecido desde a infância até à idade adulta avançada. 2
Na maioria dos casos, a artéria anómala pode ser identificada com recurso a ecocardiografia. 6 No entanto, sendo uma técnica de imagem dependente do operador, pode estar sujeita a erros de diagnóstico. A angioTC, apesar do seu elevado custo, fornece imagens mais detalhadas sobre a origem e o trajeto da artéria anómala. 7
No caso apresentado, as alterações imagiológicas inicialmente interpretadas na TC de tórax como varizes traduziam a extensa circulação colateral e o ingurgitamento dos respetivos vasos. Apenas com recurso à angioTC foi possível a confirmação da malformação cardíaca.
É também de assinalar a excelente condição física em que o utente se encontrava, não manifestando qualquer sintoma, quer durante a prática habitual de exercício quer durante a realização da prova de esforço.
Poderá ser ainda colocada a hipótese de que a prática de exercício físico de elevada intensidade, que o utente mantinha desde longa data, possa ter favorecido um maior desenvolvimento da circulação colateral, contribuindo para a ausência de sintomas.
Do ponto de vista da medicina geral e familiar é compreensível que o caso não se esgote na vertente puramente clínica de diagnóstico e tratamento da doença. A atuação do MF foi fundamental para apoiar o doente ao longo de todo o processo, sobretudo durante a investigação diagnóstica levada a cabo pela cardiologia. Sendo um utente com patologia ansiosa seria expectável um agravamento da mesma, dado o atraso no estabelecimento de um diagnóstico. Nesse aspeto, e antevendo esta possível descompensação, o MF, com o agendamento de consultas sucessivas, foi conseguindo o controlo desta doença sem necessidade de ajustar a medicação já instituída.
Outro dos pontos que merece discussão prende-se com os limites da nossa intervenção terapêutica e qual o impacto da mesma sobre a qualidade de vida do utente. Após o diagnóstico, uma das principais recomendações clínicas foi a suspensão imediata do exercício físico. O prejuízo que esta mudança causaria na qualidade de vida do utente foi geradora de sentimentos de incompreensão face à doença. Ademais, embora a literatura seja consensual na recomendação da intervenção cirúrgica/correção cirúrgica, esta deverá ser bem ponderada num utente assintomático, tendo sempre em consideração a opinião do mesmo. É neste contexto que o MF deve atuar, munindo o utente da informação necessária para tomar a sua decisão. Assim, fazendo uso da boa relação médico-doente e alicerçado em técnicas de comunicação eficazes, o MF capacitou o utente na defesa da sua opção, permitindo-lhe que partilhasse os seus medos sem receio de se sentir julgado. Tendo o utente tomado a decisão, informada e consciente, de prosseguir com o exercício e de rejeitar a cirurgia, este caso torna-se um bom exemplo da aplicação de um dos princípios mais importantes da bioética: o princípio da autonomia. O respeito pela autonomia começa pelo reconhecimento da legitimidade e da capacidade de a pessoa poder assumir as suas escolhas pessoais.
Noutro ponto, as avaliações familiares permitiram a identificação de um elemento fulcral para aquilo que viria a ser o apoio emocional do doente nas consultas subsequentes. O envolvimento progressivo da esposa nas decisões tomadas face à doença contribuiu para a partilha de responsabilidade e para o reforço da relação familiar.
É ainda de destacar a cooperação estabelecida entre a MGF e a cardiologia na abordagem deste caso. É fundamental a manutenção de pontes de comunicação entre os cuidados de saúde primários e os secundários, de modo a potenciar a prática de uma medicina personalizada, em prol do doente.
Concluindo, nunca é demais reconhecer a importância do método clínico centrado na pessoa, principalmente na abordagem deste caso. Foi através deste método que o MF conseguiu enquadrar o utente na vertente biopsicossocial, dando resposta a alguns dos seus receios e dúvidas face a uma doença rara, envolvendo simultaneamente a família no apoio emocional.