Legado tem a ver com tudo o que se constrói e transmite aos outros e que pela sua importância se mantém atual, o que vai permitir que de geração em geração, ao longo do tempo, se perpetue e que possa vir a transformar outras vidas, outros contextos, outras realidades, com um propósito que pode ser útil para outros.
Vasco António de Jesus Maria nasceu em Pombal a 1 de maio de 1955 e o seu percurso de vida como homem e como médico deixa essência, valor e visão que se eterniza.
Conheci-o na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) desde a década de 90, na docência onde tive o privilégio de lecionar na mesma equipa de Medicina Geral e Familiar. Sempre trouxe inovação, que se perpetuou pela inspiração que fica nos outros, entre os quais eu própria. Deixou legado nas atividades pedagógicas que desenvolveu como Professor universitário, mas também noutros contextos, como nas atividades assistenciais como excelente médico de família, nos importantes cargos públicos que ocupou, nas atividades de investigação de que sempre gostou, nas atividades relacionadas com farmacologia clínica que sempre aprimorou e nas publicações científicas pela qualidade e valor das mesmas.
Em termos de formação académica no âmbito da FMUL tive a honra de aprender com ele valores fundamentais que imprimem a diferença ao longo da vida académica, profissional, pessoal e que a melhoram.
Nesta Faculdade, Vasco Maria colaborou regularmente a partir do ano letivo 1999/2000 no ensino da disciplina, na altura apelidada de Clínica Geral e Medicina Comunitária, ainda sob a regência de José Guilherme Jordão. Procurou sempre veicular inovação pedagógica no ensino/aprendizagem dos diversos temas de que era responsável, utilizando casos-problema e incidentes críticos, no sentido de tornar as aulas mais inovadoras e estimulantes.
Em 2001 participou na reestruturação geral dos conteúdos dos cursos teórico e teórico-prático da disciplina, com o objetivo de os adequar à conceção subjacente à prática da Medicina Geral e Familiar no século XXI, incutindo identidade, valor numa prática clínica de qualidade, centrada nas necessidades da pessoa doente e da sua família.1-3
Com uma equipa consistente, na qual tive a honra de fazer parte, a força motriz de Vasco Maria alicerçava-se na conceção, desenvolvimento e implementação de uma nova experiência pedagógica, consistindo na elaboração de um trabalho prático pelos estudantes nos centros de saúde, sob supervisão de um tutor Médico de Família.
Estes trabalhos visavam proporcionar ao estudante a possibilidade de: i) verificar como são aplicados na prática os conhecimentos transmitidos; ii) permitir um contacto com a realidade da Medicina Geral e Familiar, designadamente nos centros de saúde; iii) desenvolver capacidade de trabalho em equipa, nomeadamente na pesquisa temática, na obtenção de informação, na reflexão individual e de grupo e no desenvolvimento da capacidade inovadora e criativa.
Após o inesperado e dramático falecimento do nosso estimado colega e docente José Guilherme Jordão em 2003, e no seguimento da reestruturação interna do grupo de docentes responsáveis pelo ensino da Medicina Geral e Familiar na FMUL, foi nomeado Regente da disciplina de Medicina Geral e Familiar.
Desde então, procedeu-se à reestruturação geral do programa da disciplina, na qual também tive a honra de participar, com introdução de novos modelos pedagógicos e de novas formas de avaliação da aprendizagem e também de avaliação da qualidade pedagógica do ensino, dedicando um olhar atento ao ensino baseado em competências, desenvolvendo no estudante a capacidade de mobilizar conhecimentos, capacidades e atitudes para lidar com situações e problemas da vida real. 4
Foi ainda Professor Regente da disciplina de Comunicação em Ciência, da Licenciatura de Microbiologia, e Coordenador da Unidade de Farmacoepidemiologia do Instituto de Medicina Preventiva da FMUL; coordenou o Centro de Estudos Clínicos e Epidemiológicos, do Instituto de Medicina Preventiva da FMUL e colaborou no ensino pós-graduado, tendo participado em vários cursos de mestrado em Saúde Escolar, de Educação Médica, de Imunologia Médica, Medicina Legal e Ciências Forenses, Comunicação em Saúde e mestrados de Epidemiologia, sendo responsável por módulos de Investigação em Saúde e Investigação Aplicada. Participou ainda na organização de atividades de ensino pós-graduado ao nível de entidades externas à FMUL, de que se destacam: a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, o Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), a Universidade de Évora e a Universidade Católica Portuguesa.
Colaborou em atividades pedagógicas organizadas pela Coordenação do Internato Complementar de Clínica Geral em vários cursos de Introdução à Metodologia de Investigação. Foi membro do Grupo de Coordenação Pedagógica da Formação no âmbito da Investigação, do Instituto de Clínica Geral da Zona Sul (ICGZS). Foi responsável pelo Curso Avançado de Metodologia de Investigação, na Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral (APMCG), percursora da APMGF.
De destacar que foi um médico de família exemplar e desenvolveu atividade assistencial nos Centros de Saúde do Cacém e Alvalade, uma interface necessária com as atividades de ensino e investigação ao nível da FMUL, em que cuidados centrados na pessoa, a continuidade e a integração de cuidados do doente e das suas famílias5 num envolvimento próximo da comunidade e com a comunidade foram parte de leão da sua prática clínica, contribuindo, de acordo com o core da governação da Medicina Geral e Familiar, para a qualidade de vida e bem-estar físico, mental e social das pessoas e famílias que acompanhou no seu dia-a-dia, como médico. 6 A capacidade de desenvolver investigação aplicada, refletida na prática clinica em Medicina Geral e Familiar, levou-o a publicar vários artigos em que o binómio boas práticas clínicas na área do medicamento foram relevantes. 7-12
No âmbito do Ministério da Saúde foi Vice-Presidente do Conselho Diretivo do INFARMED, de 2000 a 2001, e depois Presidente durante o ano de 2002. Foi de novo Presidente, de 2005 a 2010. Foi nomeado membro da Comissão de Avaliação de Medicamentos em 1996 e Presidente da mesma Comissão desde 2010, cargo que ainda mantém. Foi ainda membro da Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC). Participou em vários Comités e Grupos de Trabalho da União Europeia, de que gostaria de destacar o Steering Committee do Pharmaceutical Forum (Grupo de Alto Nível da Comissão Europeia), tendo feito parte do Conselho de Administração da Agência Europeia do Medicamento (EMEA), assim como do Grupo dos Chefes de Agências do Medicamento (Heads of Medicines Agencies - HMA). No INFARMED, ao longo de vários anos foi responsável pela conceção, organização e docência de diversos cursos pós-graduados, da iniciativa do INFARMED ou em colaboração com instituições de ensino públicas e privadas, tendo também realizado publicações de grande interesse. 13-14 Contribuiu para o desenvolvimento, o reforço e a consolidação da atividade regulamentar na área do medicamento, designadamente através de: i) reorganização e reforço de competência técnica e científica do INFARMED; ii) melhoria da qualidade e acesso a informação sobre medicamentos por parte dos profissionais de saúde e do público em geral; iii) produção e disponibilização de publicações e instrumentos de apoio à prescrição e utilização racional de medicamentos; iv) reforço da capacidade inspetiva e de controlo de qualidade dos medicamentos no mercado; v) reforço da participação nacional no sistema europeu de avaliação e supervisão do medicamento. De destacar contributos muito relevantes na área do medicamento, nomeadamente ao nível da Avaliação de eficácia e segurança de medicamentos, avaliação de Benefício-Risco de medicamentos e Inspeções de Farmaco-vigilância. Também se revelam de grande importância os seus contributos na avaliação de medicamentos ao nível da eficácia e segurança de existência de alternativas terapêuticas de pedidos de Utilização Excecional; na avaliação de tecnologias de saúde, definição de procedimentos de avaliação e organização e gestão do sistema de avaliação. Uma nota importante para a criação e desenvolvimento do Sistema Nacional de Farmacovigilância, com a definição e implementação do sistema a nível nacional, assim como a formação e treino dos profissionais de saúde e ainda a avaliação de problemas de segurança com medicamentos.
Todo um destaque também para a formação e treino em Farmacoepidemiologia, com a organização de cursos de formação pós-graduada, com orientação de dissertações de mestrado, teses de doutoramento e projetos de investigação em Farmacoepidemiologia, que foi uma área que sempre privilegiou no seu percurso profissional.
A tese de Doutoramento em Imunologia, intitulada Estudos de Imunidade Celular em Hepatopatias Medicamentosas, concluída em 1996 (com provas em 1997), é o resultado de diversos trabalhos de investigação sobre o tema, investigação essa desenvolvida entre 1984 e 1996.
Dessa atividade resultaram inúmeras publicações em diversas revistas científicas e que reforçam este legado que testemunha uma vida com propósito e foco na saúde e no medicamento. 15-29
Foi uma honra conhecê-lo.